ALTHUSSER, Louis. Conversa com Waldeck Rochet. Crítica Marxista, n.47, p.185-191, 2018. Disponível em <<https://www.marxists.org/portugues/althusser/1966/07/02.htm>>. Acesso em 29 mar 2023.
Sim, ele diz, eu não estou de acordo com você, não podemos dizer que o marxismo é um anti-humanismo. Anti-humanismo teórico, eu sustento, justamente se eu posso lhe fazer uma crítica, é que você pulou a palavra teórico, e tudo depende dela. Mas, justamente, ele diz, encontramos a questão da teoria e da ideologia, e eu levo em consideração o máximo possível a ideologia. Eu digo: mas nós especificamos essa questão, e você estava de acordo com as precisões que eu lhe dei. Ele diz: sim, mas… Bom, eu afirmo, falemos do humanismo com algumas precisões.
Quando eu digo que o marxismo não é um humanismo teórico, quero dizer duas coisas bastante precisas. A primeira é que existe um humanismo teórico, ou seja, um sistema teórico, um sistema de conceitos teóricos, que podemos pôr sobre a mesa, uns ao lado dos outros, conceitos perfeitamente definidos e definíveis, por exemplo: essência do homem, liberdade, igualdade, amor, alienação, desalie- nação, apropriação da essência do homem pelo homem, autocriação do homem no trabalho etc. etc. Esse sistema é um sistema teórico ideológico, idealista e mesmo espiritualista: é o sistema de Roger. A segunda é que o marxismo é uma ciência, e como toda ciência possui um sistema de conceitos também definidos: forças produtivas, relações de produção, superestrutura, classes sociais, lutas de classe, ideologias etc. etc. Ora, se você põe sobre uma mesma mesa, de um lado, os conceitos teóricos do humanismo e, de outro, os conceitos científicos do marxismo, você constata esse resultado capital; é que nenhum, eu digo nenhum mesmo, dos conceitos humanistas faz parte do sistema de conceitos marxistas. Eu tomo um exemplo: em 1844, Marx é comunista utopista, quer dizer, humanista, e é por isso que emprega o conceito de alienação, como Roger, e o conceito de trabalho alienado. Em O capital, não há mais o conceito de trabalho alienado, mas um outro conceito, o conceito de trabalho assalariado, não é a mesma coisa, é muito diferente! Não é mais questão de alienação do proletariado, mas de exploração econômica de classe do proletariado, não é a mesma coisa, é um conceito científico. Ora, Roger sempre retorna aos conceitos que Marx abandonou: isso é revisionismo teórico, é como Dühring, é como Bernstein, é como Léon Blum. Não devemos abandonar nossos conceitos científicos para sucumbir aos conceitos ideológicos. Ele ouve, incapaz de refutar e responder, mas indiscutivelmente muito incomodado. Silêncio.
Depois de um momento, ele deixou escapar: mas você compreende, politicamente falando, é muito importante que nós digamos que somos humanistas. Eu digo: o que você quer dizer exatamente? Silêncio. Em seguida: mas mesmo assim, nosso objetivo é a felicidade dos homens, é a liberação do homem. Não, eu afirmo, esse não é nosso objetivo, é um dos efeitos do nosso objetivo, não nosso objetivo. Nosso objetivo é fazer a revolução para instaurar o modo de produção socialista; quando ela for feita, produzirá toda uma série de efeitos, entre os quais a supressão da exploração de classe, novas relações de produção etc., que terão por resultado efetivo a mudança da vida dos homens. Silêncio. Eu digo: você compreende, é muito importante, pois se nosso objetivo é a revolução, o meio de fazer a revolução é a luta das classes, é a luta de classes, não é o homem, não é o humanismo. Pensamos e agimos com conceitos científicos, os nossos, e não com conceitos ideológicos humanistas que pertencem à ideologia pequeno-burguesa. Ele afirma: mesmo assim, você vai longe demais. Silêncio. Mas é preciso falar com as pessoas na sua linguagem, eles se dizem humanistas, nós somos humanistas, podemos falar-lhes com o humanismo.
Eu afirmo: ouça, Waldeck, quais são as pessoas que falam de humanismo? Não são as pessoas em geral, são pessoas muito específicas: aquelas que pertencem à pequeno-burguesia ou são influenciadas pela ideologia pequeno-burguesa. Mas eu vou lhe fazer uma questão muito séria, com base na minha experiência pessoal, com base na experiência que eu tenho do que pensam e dizem os operários e os camponeses que conheço: você crê de verdade que os operários e os camponeses falam a linguagem do humanismo e têm a necessidade de que lhes falemos a linguagem do humanismo? Eu lhe digo as coisas sem rodeios: a meu ver, os operários e os camponeses não se importam com o humanismo. Eles falam uma linguagem completamente diferente, massivamente, graças a Deus! Ele responde: sobre os camponeses, você tem razão! Silêncio. E sobre os operários?, eu pergunto. Silêncio. Em seguida: é verdade, mas, ainda assim, há todos esses intelectuais, todas essas pessoas para as quais é necessário falar em prol de nossa política de unidade… Você compreende, politicamente não podemos renunciar ao humanismo, e não podemos dizer que o marxismo não é um humanismo. Eu desisto da questão dos operários, e digo: justamente o que escrevi, e escrevi há cerca de quatro anos, sem desconfiar que isso faria tanto barulho, então o que escrevi permite fazer uma distinção importante. O marxismo como ciência não tem nenhuma necessidade de conceitos humanistas, mas deve se defender deles como da peste. Você está de acordo? Ele não pode dizer não. Retomo: eu disse também que o humanismo era uma ideologia, e uma ideologia existe, é preciso levar isso em conta, é preciso transformá-la. Isso é a luta ideológica. Mas é preciso saber que é uma ideologia, e quando nos servimos de quaisquer de seus conceitos ou de suas palavras, isso não pode ser em geral, mas em condições e limites bastante precisos, bastante limitados, definidos justamente pela ciência. Um cirurgião, quando opera, não opera em geral, mas num ponto preciso, e sobre indicações, conclusões precisas que resultam da ciência médica. Para nós é parecido: não temos o direito de nos servir em geral de conceitos humanistas, muito menos do humanismo em geral, mas somente em casos bastante precisos, com indicações bastante precisas, que são para nós conclusões científicas, e isso é normal. Ele ouve, não pode replicar. Silêncio.
Ele abre um dossiê, e diz: justamente há X… que veio me dizer que o que os soviéticos diziam em seus últimos congressos, tudo pelo homem, liberdade, igualdade, fraternidade, que tudo isso afinal é ideologia… assim não! Eu respondo: mas essa camarada tinha razão, não foi ela quem inventou isso, foi Marx o primeiro a dizer, e quantas vezes! Se os soviéticos dizem uma besteira, é preciso ajudá-los a retificá-la, isso faz parte dos deveres do internacionalismo proletário. Silêncio.
Ele diz: você compreende, quando utilizo o termo humanismo, o que tenho em vista é me dirigir a todas essas pessoas que o empregam, em prol de nossa política de unidade. Eu lhe respondo: de fato, você se dirige antes de tudo aos pequeno-burgueses, porque são eles que vivem, massivamente, na ideologia humanista e falam sua linguagem. Mas eu quero lhe dizer outra coisa: o que você acabou de descrever é o sentido que essa palavra tinha para você, em sua intenção, tal qual você a empregava. Ora, a intenção não basta. Para nós, marxistas, em todo caso, isso não pode ser suficiente. O que conta para nós são nossos atos e não nossas intenções subjetivas. Quando empregamos a palavra humanismo com tal intenção, devemos nos fazer uma questão prévia e fundamental: qual vai ser o efeito objetivo de nossa intenção? E não podemos responder a essa pergunta sem examinar a lagoa onde a nossa pedra irá cair, ou seja, a conjuntura na qual vai cair nossa palavra. Quando pronunciamos a palavra humanismo, podemos levar a esse resultado objetivo, contrário ao que queremos: ao invés de os humanistas se inclinarem em direção aos nossos conceitos científicos, são nossos conceitos científicos que se inclinam em direção ao humanismo, isto é, em direção à ideologia pequeno-burguesa. É o que se passa com Roger. Ele se inclina totalmente em direção à ideologia pequeno-burguesa. Sua interpretação de Marx não tem nada a ver com Marx, é simplesmente espiritualismo. Longo silêncio. Ele acaba dizendo: você me compreende, politicamente somos obrigados, em prol de nossa política, a empregar a palavra humanismo… somos obrigados.
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