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Resumo do caso
O Fragmento de uma Análise de Histeria é um relato do Caso Dora, ocorrido em 1901, com duração de aproximadamente três meses, publicado quatro anos depois. É um escrito crucial para entendimento da importância da transferência na análise, assim como ilustração que a interpretação dos sonhos é análoga a dos sintomas.
Ei-lo: Dora, 17 anos, foi levada ao consultório de Freud por seu pai, preocupado com sua saúde após encontrar uma carta em que expôs não possuir desejo em viver, cujo confronto sobre culminou em um ataque de perda de consciência. A jovem já apresentava uma série de sintomas: uns ligados ao corpo, outros relacionados à falta de disposição psíquica.
No início da análise, relata a situação além de sua capacidade de simbolização em que se encontrava: na cidade B, sua família aproximou-se do casal K. Ela supunha que seu pai mantinha relações amorosas com a Sra. K.. O Sr. K., que parecia consentir com o fato, a assediava. Um momento emblemático foi sua lembrança de, aos 14 anos, ter um beijo roubado por ele – encontro traumático que deixou um enigma em sua relação com o próprio corpo. Outro, posterior, foi o de um encontro em um lago, no qual ele faz uma proposta amorosa e ela responde agredindo-o fisicamente e fugindo.
O caso desenvolve-se em duas direções: uma da admiração que Dora mantém pela Sra. K., introdutora do saber sexual, lugar em que poderia esclarecer sua incógnita. Outra é a de ambivalência em relação ao seu pai e ao Sr. K.. Seus desdobramentos consistem nas descobertas rememorativas que apontam a direção do desejo da paciente e a forma pela qual apropria-se dele. Ao processo, foi cara a interpretação de dois sonhos, detalhadamente analisados.
Quadro clínico
Vale contextualizar a história da jovem. Ela encontrava-se em cômoda situação econômica. Seu quadro familiar consistia em seu pai, por quem nutria carinhoso apego, padecedor de diversas enfermidades; sua mãe sofredora de “psicose da dona-de-casa”[1], fator que tornava as relações pouco afetivas; um irmão um ano e meio mais velho; tia paterna em que Freud detectou sinais de psiconeurose e tio paterno descrito como “solteirão hipocondríaco”[2]. A paciente passou pelas doenças habituais da infância sem sofrer danos permanentes. Os sintomas neuróticos iniciaram-se em seus oito anos, quando apresentou crônica dispneia com ocasionais acessos agudos. Aos doze, começou a sofrer de enxaquecas e acessos de tosse que resultavam em rouquidão – a dor desapareceu quatro anos depois, enquanto a segunda queixa perdurou.
Seu pai relatou a íntima amizade com o casal K. e o estranhamento resultante da súbita recusa da filha de passar o verão na casa deles enquanto viajava. Posteriormente, ela falou à mãe (que por sua vez contou ao pai) que o motivo desta fora a proposta amorosa que o Sr. K. fizera em um passeio no lago. Ao prestar contas, o acusado negou o fato, alegando que, conforme sabia pela esposa, Dora mostrava interesse por assuntos sexuais e lia livros sobre amor, portanto, poderia ter criado a cena. O pai, ao concordar com o amigo, recusava-se a atender o pedido da filha de romper relações com o casal.
Superadas as dificuldades iniciais do tratamento, Dora iniciou os relatos a respeito da experiência traumática com o Sr. K., cena até então guardada em segredo. Aconteceu que, na loja dele, quando se encontraram sozinhos, teve um beijo roubado, sentiu repugnância e fugiu à rua. Desde aquele momento, sem explicar-se, passou a evitar sua presença. No mais, queixou-se da permanência da sensação do toque do homem em seu tórax. Freud, então, apresenta hipóteses: o despertar de sentimento desprazeroso diante uma oportunidade de excitação sexual seria uma histeria. Ademais, uma vez recalcada a sensação do membro ereto sobre seu ventre, deslocar-se-ia para a que foi adquirida.
Outra ocorrência de censura encontrada seria em relação ao seu pai, que supunha não querer esclarecer o comportamento do Sr. K para não ser questionado a respeito do seu com a esposa dele, que além do teor sexual, desalojou Dora da posição de cuidadora durantes seus períodos enfermos. Além do mais, havia a sugestão de que tais doenças eram criadas como um pretexto e exploradas em proveito próprio. A partir desta ideia, notou-se que, uma vez que o Sr. K. passava parte do ano viajando, ao voltar, encontrava sua esposa adoentada, embora ela tivesse gozado de boa saúde até o dia anterior – inferindo, assim, que esta considerava a doença bem-vinda para escapar dos deveres conjugais. Logo, quando questionada sobre a duração de seus ataques, respondeu que persistiam por “três a seis semanas”, justamente o tempo de ausências do Sr. K.: se a Sra. K. com os males demonstrava aversão, com suas doenças, Dora exprimira o contrário. Mais uma relação encontrada com as viagens do ser. K. consiste no fato de perder a voz em suas ausências, mas manter a escrita, que utilizava na troca de cartões – a interpretação simbólica consistia em renunciar à fala, sem utilidade no momento, enquanto mantinha o meio utilizado de contatar o ausente.
Primeiro sonho
No momento em que havia perspectivas de esclarecimento de um ponto obscuro da infância de Dora, ela trouxe um sonho. Ele ocorreu três noites sucessivas em L (o lugar no lago onde ocorrera a cena com o Sr. K.), e em Viena voltou a tê-lo. Transcrevo seu relato:
Uma casa estava em chamas. Papai estava ao lado da minha cama e me acordou. Vesti-me rapidamente. Mamãe ainda queria salvar sua caixa de jóias, mas papai disse: ‘Não quero que eu e meus dois filhos nos queimemos por causa da sua caixa de jóias.’ Descemos a escada às pressas e, logo que me vi do lado de fora, acordei.[3]
Questionada a respeito ao que os elementos da narrativa onírica remetiam, lembrou que, em L, uma vez que a casa onde se acomodaram não possuía para-raios, seu pai manifestou angústia diante à possibilidade de um incêndio. Outrossim, informou que, na tarde seguinte ao passeio no lago, recostou em um sofá e, ao acordar, viu o Sr. K. tal como no sonho, parado frente a ela. O fato a levou a pedir à Sra. K. uma chave, que sumiu no dia seguinte ao que a recebeu. Também falou que o Sr. K. já a havia presenteado com uma caixa de jóias. Quanto ao termo, reconheceu que “caixa de jóias” é uma expressão utilizada para referir-se ao genital feminino.
Na sessão seguinte, Dora relatou o que esquecera de contar: todas as vezes, depois de acordar, sentia cheiro de fumaça. Reconheceu que, além do elemento combinar com fogo e com a expressão muito utilizada pelo analista “onde há fumaça, há fogo”, havia a variável de seu pai, Sr. K. e Freud serem fumantes apaixonados. Assim, Freud inseriu que o beijo outrora roubado, lembrança da qual ela se protegia por meio do asco, cheiraria a fumo. Considerando a transferência, poderia ter ocorrido que o mesmo se repetiria em um contato com o analista.
Segundo sonho
Ocorrido algumas semanas após o primeiro, sua resolução culminou na interrupção da análise. Transcrevo seu relato:
Eu estava passeando por uma cidade que não conhecia, vendo ruas e praças que me eram estranhas. Cheguei então a uma casa onde eu morava, fui até meu quarto e ali encontrei uma carta de mamãe. Dizia que, como eu saíra de casa sem o conhecimento de meus pais, ela não quisera escrever-me que papai estava doente. ‘Agora ele morreu e, se quiser, você pode vir.’ Fui então para a estação [Bahnhof] e perguntei umas cem vezes: ‘Onde fica a estação?’ Recebia sempre a resposta: ‘Cinco minutos.’ Vi depois à minha frente um bosque espesso no qual penetrei, e ali fiz a pergunta a um homem que encontrei. Disse-me: ‘Mais duas horas e meia.’ Pediu-me que o deixasse acompanhar-me. Recusei e fui sozinha. Vi a estação à minha frente e não conseguia alcançá-la. Aí me veio o sentimento habitual de angústia de quando, nos sonhos, não se consegue ir adiante. Depois, eu estava em casa; nesse meio tempo, tinha de ter viajado, mas nada sei sobre isso. Dirigi-me à portaria e perguntei ao porteiro por nossa casa. A criada abriu para mim e respondeu: ‘A mamãe e os outros já estão no cemitério [Friedhof]’.[4]
O reconhecimento das fontes do cenário consistiu em fotos da Alemanha, presente de um pretendente que lá ocupou um posto. Ademais, na noite da véspera, em meio a uma reunião doméstica, o pai requereu que fosse buscar o conhaque, logo, Dora pediu à mãe a chave do bufê, mas ela estava absorta na conversa e não lhe deu resposta alguma até que o gritou. “Onde está a chave?” a Freud pareceu ser o equivalente masculino da pergunta “Onde está a caixa?”. Portanto, seriam demandas pelos órgãos genitais. Ademais, no mesmo evento, um convidado fizera um brinde ao pai de Dora, expressando a esperança de que por muito tempo ainda ele gozasse da saúde. Nisso, reparando a expressão que toldou o rosto cansado do pai, ela compreendeu os pensamentos mórbidos que ele sufocava. Assim, foi cara a atenção ao conteúdo da carta no sonho: o pai estava morto e ela saíra de casa por seu próprio arbítrio. A partir do escrito, o analista relembrou o que a paciente elaborara para que os pais encontrassem, cuja interpretação da motivação consistiu em vontade de assustar o pai que ele se afastasse da Sra. K., ou ao menos, ser vingado.
A interlocução, então, passou a ser conduzida de volta à cena do lago, seguida de mais um pedido de descrição minuciosa. Eis que o Sr. K. fizera uma introdução que Dora, mal compreendendo do que se tratava, deu-lhe uma bofetada no rosto e se afastou às pressas. As palavras que ele usara foram “sabe, não tenho nada com minha mulher”[5]. Naquele momento, para não tornar a encontrá-lo, ela quisera voltar para L contornando o lago a pé, e perguntou a um homem com quem cruzou a que distância ficava. Ante a resposta “duas horas e meia”, desistiu dessa intenção e voltou em busca do barco, que partiu logo depois. Então, assumiu que o bosque do sonho era muito parecido com o na orla do lago no qual se desenrolara a cena. Justamente um bosque denso é o que ela vira na véspera, num quadro de exposição secessionista. Ao fundo da pintura, viam-se ninfas. Nesse ponto, Freud apresentou mais uma hipótese: Bahnhof [“estação”; literalmente, “pátio de ferrovia”] e Friedhof [“cemitério”; literalmente, “pátio de paz”], lembraram uma palavra de similar formação, “Vorhof” [“vestíbulo”; literalmente, “pátio anterior”], termo anatômico para designar uma região específica da genitália feminina. Com o acréscimo de “ninfas” – vocábulo que denomina os pequenos lábios da vulva – fecha-se a interpretação de que o sonho consistia em uma fantasia de defloração.
A terceira sessão, a seguinte, fora última. Ela fora iniciada com o seguinte diálogo:
– O senhor sabe, doutor, que hoje estou aqui pela última vez?
– Não posso saber, pois você não me disse nada a esse respeito.
– É, eu me propusera agüentar até o Ano Novo, mas não quero esperar mais pela cura.
– Você sabe que tem sempre a liberdade de se retirar. Mas hoje ainda vamos continuar trabalhando. Quando foi que tomou essa decisão?
– Faz uns quatorze dias, creio.
– Isso soa como uma empregada ou uma governanta: um aviso prévio de quatorze dias.
– Havia também uma governanta que deu aviso prévio na casa dos K. quando os visitei em L , no lago.
– É mesmo? Você nunca me contou nada sobre ela. Conte-me, por favor.[6]
Então, Dora contou que a governanta relatou a ela que o Sr. K. havia feito investidas românticas, com as mesmas palavras que a ela dirigiu. Freud conectou que o motivo da agressão física, então, poderia ser ciúme e irritação por ser tratada como uma serviçal. Não à toa delatou-o à mãe exatos 14 dias depois, tal como em um aviso prévio.
No fim da sessão, Dora despediu-se calorosamente, e como avisou, não mais retornou. Seu pai visitou Freud algumas vezes pois esperava que seria dissuadida da ideia de que haveria romance entre ele e a Sra. K., desistindo ao compreender que não era intenção da análise promover este resultado.
Considerações finais
Freud apresentava diversas intenções com a publicação. Uma foi complementar A Interpretação dos Sonhos, mostrando como essa compreensão é útil para a descoberta do recalcado. Outra foi externar a importância da sexualidade, e como as patologias estão relacionadas à ela.
Como ganho, houve a ilustração das transferências, “toda uma série de experiências psíquicas prévia é revivida, não como algo passado, mas como um vínculo atual com a pessoa do médico”[7]. Na fantasia em questão, concluiu-se que Freud substituía o pai de Dora.
Referências
[1] FREUD, Sigmund. Um caso de histeria IN: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p.14.
[2] FREUD, Sigmund. Um caso de histeria… p.14.
[3] FREUD, Sigmund. Um caso de histeria… p.40.
[4] FREUD, Sigmund. Um caso de histeria… p.59.
[5] FREUD, Sigmund. Um caso de histeria… p.62.
[6] FREUD, Sigmund. Um caso de histeria… p.66.
[7] FREUD, Sigmund. Um caso de histeria… p.72.
Psicóloga (CRP 06/178290), graduada pela PUC-SP. Mestranda em Psicologia Social na mesma instituição. Pós-graduanda no Instituto Dasein.
Instagram: @akkari.psi
Acho a filosofia mágica, porém não consigo fazer qualquer juízo de valor quanto o texto, não consigo entender, é como se o texto estivesse além do meu entendimento.
Meu grande desejo, é, um dia, chegar a entender a filosofia, ou melhor, os textos filosóficos.
Oi, Zildenir!
O que te deixou confuso?
Olá Paula, quando você diz; ”outra foi externar a importância da sexualidade, e como as patologias estão relacionadas à ela.” é referência a ela ter desenvolvido tosse severa que culminou após o assédio do beijo roubado ?
Olá!
Sim, este é o raciocínio do autor. Também foram os outros eventos envolvendo a sexualidade, junto à relação da paciente com ela, que culminariam na histeria e nos seus sintomas.
Aos que se sentiram curiosos acerca dos debates inciados por Freud no caso Dora, cabe lembrar do registro feito por Lacan em texto intitulado “Intervenção sobre a transferência”, presente nos Escritos.
Excelente texto, parabéns pela síntese, me ajudou muito a relembrar o que foi lido. Quando li a autora fiquei muito satisfeito, sigo você no instagram! Parabéns mais uma vez!
Obrigado pelo comentário, Danilo!