Introdução
O Caso Schreber é um importante estudo de Freud, publicado em 1911 sob o nome de Notas Psicanalíticas Sobre Um Relato Autobiográfico De Um Caso De Paranóia (Dementia Paranoides). Foi feito a partir da leitura de Memórias de um Doente dos Nervos, de 1903, escrito pelo paciente Daniel Paul Schreber, que nunca conheceu.
História clínica
Dr. Schreber relatou que sofreu distúrbios nervosos duas vezes, “e ambas resultaram de excessiva tensão mental”[1].
A primeira ocorrência, com duração do outono de 1844 a fins de 1885, se deu na época de sua apresentação como candidato à eleição para o Reichstag, enquanto era Landgerichtsdirektor (cargo de diretoria na Corte Regional) em Cheminitz. Para tratar-se, em outubro do mesmo ano, passou algumas semanas no Asilo de Sonnenstein. Em dezembro, institucionalizou-se na clínica de Flechsig, onde descreveram o distúrbio como crise grave de hipocondria. Recebeu alta no dia 1º de junho de 1886. Exatamente sete meses depois, tomou posse no Landgericht de Leipzig.
A segunda enfermidade manifestou-se após sua posse de Senatspräsident (cargo de presidência no Senado), em outubro de 1893. Após acessos de insônia, retornou à clínica. Em seu relatório, constam os sintomas de hipocondria, seguidos de ideias de perseguição baseadas em percepções ilusórias e hiperestesia. Como evolução do quadro, menciona-se ocorrências de estupor alucinatório, ânsia pela morte e caráter místico nos delírios, mas desacompanhados de sinais de inibição psíquica ou de prejuízo de inteligência e memória.
Para detalhar o panorama, cito um fragmento do relatório de 1899:
O ponto culminante do sistema delirante do paciente é a sua crença de ter a missão de redimir o mundo e restituir à humanidade o estado perdido de beatitude. Foi convocado a essa tarefa, assim assevera, por inspiração direta de Deus, tal como aprendemos que foram os Profetas. (…) A parte mais essencial de sua missão redentora é ela ter de ser procedida por sua transformação em mulher. Não se deve supor que ele deseje ser transformado em mulher; trata-se antes de um ‘dever’ baseado na Ordem das Coisas.[2]
Assim, podem ser destacados dois pontos em seu delírio: sua a assunção de papel de Redentor e sua fantasia de emasculação, que inclusive acarretaria em engravidar por “raios divinos”[3].
No mais, aponta-se que, em dias anteriores à doença, o paciente ocupou-se com dúvidas sobre assuntos religiosos e que a primeira vez em que lhe ocorreu a ideia de ser do sexo feminino fora durante o período de incubação da moléstia, quando estava semi-adormecido e imaginou “que deve ser bom ser uma mulher e submeter-se ao ato da cópula”[4].
Freud alega, enfim, que no sistema de Schreber, estes dois elementos estão vinculados na adoção de uma atitude feminina para com Deus.
Tentativas de interpretação
Freud situa, em suas interpretações, que muitos detalhes do caso de Schreber poderiam estar faltantes em seu livro, em qual o estudo baseou-se.
A primeira atenção pormenorizada do analista deu-se na queixa do paciente sobre aves às quais o paciente atribui qualidades extraordinárias, os “pássaros miraculados”[5]. Sua crença consistia neles serem formados por antigas almas humanas impregnadas por veneno e condicionadas a lhe repetir frases sem sentido que se incorporariam à sua alma.
Assim, mesmo que ele não entenda o significado das palavras que os passáros lhe dirigiam, é notável a semelhança de sons com termos parecidos, como por exemplo em ‘Santiago‘ ou ‘Karthago‘, ‘Chinesentum‘ ou ‘Jesum Christum‘, ‘Abendrot‘ ou ‘Atemnot‘ (23-24). Logo, como foi posteriormente sugerido por Schreber ao escrever que compara as aves a mulheres, Freud alega que se tratavam de nomes para referir-se a mulheres.
A partir do terceiro capítulo do livro, o analista debruça-se sobre as ocorrências a membros da família do paciente, que podem estar vinculadas ao seu caso. Assim, Freud pretende remontar o núcleo de sua estrutura diante das relações.
Eis, portanto, uma análise da história de Schereber com seu primeiro médico, Prof. Flechsig, que muitas vezes protagonizou seus delírios de perseguição.
Segundo o paciente, ele tentou cometer um “assassinato de alma”, ato comparável aos feitos dos demônios para tomar posse de uma alma. Então, ocorreu uma mudança nos delírios: se antes Flesching era considerado seu inimigo e Deus seu aliado, ambos passaram a armar contra ele. No entanto, nos escritos frisa não querer atacar a honra do médico, revelando seu esforço para “por distinguir a ‘alma Flechsig’ do homem vivo de mesmo nome, o Flechsig de seus delírios, do Flechsig real.”[6].
No verão de 1894, após ser removido para Sonnestein, Schreber passou a preocupar-se com a alma do Dr. Weber, seu novo médico.
Então, Freud passa a recapitular os acontecimentos: Sabe-se que entre 1884 e 1885, Schreber sofrera a crise, que não parece ter ultrapassado os limites de uma neurose, sobre a qual o analista alegou não obter insights sobre a causa. Foi nesta ocasião que passou seis meses na Clínica da Universidade, em Leipzig, onde Flechsig atuou como seu médico. O tempo entre junho de 1893 e o outubro seguinte fora o período de incubação de sua doença. Nele, sonhou repetidamente que sua mazela retornaria e fora surpreendido por pensamentos sobre ser mulher. Assim, com uma atitude feminina na fantasia, a recordação de seu médico fora despertada. Freud alega que “pode ser que o sonho de sua enfermidade haver retornado simplesmente expressasse algum anseio tal como ‘Quisera poder ver Flechsig novamente!”[7].
As seguintes interpretações do analista consistiram na ligação da paranoia de Schreber com temer um abuso por parte de seu médico. A causa ativadora da doença, portanto, fora uma manifestação de libido homossexual tendo Flechsing como objeto, sendo a luta contra os resultantes impulsos a produtora dos conflitos que originaram os sintomas. Para complementar, convém destacar que o colapso que exerceu efeito decisivo sobre o curso da doença ocorreu quando sua esposa estava de férias em outra cidade. Freud compreende que a presença da mulher o protegia das pulsões.
O analista também explica a possível atuação do processo transferencial: o médico poderia representar outro alguém próximo ao paciente, como seu pai e seus irmão, já falecidos.
A substituição de Flechsig pela figura superior de Deus é um ponto emblemático da história, que apesar de parecer um agravamento do conflito, prepara o caminho para sua solução. Se antes era impossível para o paciente resignar-se a assumir papel feminino para com o médico, seu ego não oferecia resistência diante da ideia de cumprir uma missão divina de recriar a humanidade com uma nova raça nascida de seu espírito. Assim, seu Eu encontrava satisfação na megalomania e sua vontade tornava-se aceitável. Foi o senso de realidade do paciente que o compeliu a adiar a solução para o futuro e contentar-se com uma realização de desejo assintótica.
Freud destaca outro aspecto do delírio: em um processo de decomposição típico da paranóia, o perseguidor se acha dividido em Flechsig e Deus.
“Se o perseguidor Flechsig fora originalmente uma pessoa a quem Schreber amara, então também Deus deveria ser simplesmente o reaparecimento de alguém mais que ele amara”[8]. Acompanhando essa sequência de pensamento, vê-se que a pessoa poderia ter sido seu pai – que, inclusive, fora um respeitável médico, de maneira que não seria inadequado para transfiguração em Deus na lembrança de um menino.
Dando continuidade a hipótese, cita-se que o mundo celestial consistia, como sabemos, nos ‘domínios anteriores de Deus’, também chamados de ‘ante-salas do Céu’ e que continham as almas dos mortos, e de deus ‘inferior’ e Deus ‘superior’ que, juntos, constituíam os ‘domínios posteriores de Deus’. Dessa forma, é evidente uma condensação. Remando à ideia dos pássaros das ‘ante-salas do Céu’ que significariam mulheres, vê-se que o lugar imaginário seria um símbolo do feminino, e os domínios posteriores de Deus, masculinos. Relacionando, enfim, com a questão familiar, “poderíamos supor que a decomposição de Deus em inferior e superior expressava a recordação do paciente de que, após a morte prematura do pai, o irmão mais velho ocupara seu lugar”[9].
Depois, mostra-se nítido que o tema do Sol também apresentou importância na expressão dos delírios. Schereber revela-o como ser humano ou órgão de ser superior, por vezes identificando-o ora com Deus. Uma vez tratando-o como divino, resulta-se que é mais um símbolo sublimado do pai. Em suma, sua luta Flechsig/Deus pode ser explicada como um conflito infantil com o pai.
Considerações finais
No estágio final do delírio, o impulso sexual infantil, junto ao temor a Deus e ao pai, triunfaram. A ameaça paterna de castração forneceu o material para sua fantasia de ser transformado em mulher. Considerando o enorme número de idéias delirantes de natureza hipocondríaca que o paciente desenvolveu, talvez não se deva dar grande importância ao fato de algumas delas coincidirem, palavra por palavra, com os temores hipocondríacos dos masturbadores[10].
Freud acrescenta que fantasias femininas de desejo são associadas com privações. Schreber admite sofrer com uma: seu casamento, ainda que descrito como feliz, não lhe trouxe filhos. No mais, ter um filho homem, além de fornecer continuidade a sua linhagem familiar pela qual orgulhava-se, poderia consolar-lhe pela perda do pai e irmão e drenar suas afeições homossexuais insatisfeitas.
Por fim, o analista alega que “Dr. Schreber pode ter formado uma fantasia de que, se fosse mulher, trataria o assunto de ter filhos com mais sucesso; e pode ter assim retornado à atitude feminina em relação ao pai que apresentaria nos primeiros anos de sua infância”[11]. Dada a interpretação, o delírio de realização adiada, cujo conteúdo consistia em povoar o mundo de uma nova raça de homens nascidos de seu espírito a partir de sua emasculação, seria uma saída para sua ausência de descendentes.
Referências
FREUD, Sigmund. Notas Psicanalíticas Sobre Um Relato Autobiográfico De Um Caso De Paranóia (Dementia Paranoides) (1911) IN: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
[1] FREUD, Sigmund. Notas psicanalíticas sobre… p. 08.
[2] FREUD, Sigmund. Notas psicanalíticas sobre… p. 11.
[3] FREUD, Sigmund. Notas psicanalíticas sobre… p. 14.
[4] FREUD, Sigmund. Notas psicanalíticas sobre… p. 14.
[5] FREUD, Sigmund. Notas psicanalíticas sobre… p. 23.
[6] FREUD, Sigmund. Notas psicanalíticas sobre… p. 26.
[7] FREUD, Sigmund. Notas psicanalíticas sobre… p. 27.
[8] FREUD, Sigmund. Notas psicanalíticas sobre… p. 27.
[9] FREUD, Sigmund. Notas psicanalíticas sobre… p. 32.
[10] FREUD, Sigmund. Notas psicanalíticas sobre… p. 34.
[11] FREUD, Sigmund. Notas psicanalíticas sobre… p. 35.
[12] FREUD, Sigmund. Notas psicanalíticas sobre… p. 36.
Psicóloga (CRP 06/178290), graduada pela PUC-SP. Mestranda em Psicologia Social na mesma instituição. Pós-graduanda no Instituto Dasein.
Instagram: @akkari.psi
1944 e 1985? Caso Schereber?
Obrigado pela correção!