O discurso – Pierre Bourdieu

O discurso é a materialização de uma verdade latente que está presente na própria condição social de sua existência: o emissor legítimo, o receptor legítimo, a situação legítima e a linguagem legítima são elementos de compressão e expansão da verdade na fala do agente social, que comprime toda a verdade da doxa e a expande na reprodução via produção verbal.

Índice

Introdução

Dizer e não ser escutado é uma situação complexa que existe para além da dissonância entre os códigos expressos por um locutor e a habilidade de decodificação ou domínio destes códigos vindo do ouvinte.

Para Pierre Bourdieu, há uma necessidade de se entender as condições sociais de existência de uma comunicação específica para, assim compreender o funcionamento de um discurso. Subentende-se, assim, que a divisão entre uma língua formalizável e uma fala individual proposta por Ferdinand de Saussure é superada pela visão pragmática social de Bourdieu. Segundo Liráucio Girardi Jr.:

Pierre Bourdieu mantém uma posição crítica ao estruturalismo por meio de uma crítica ao Ferdinand de Saussure. O sociólogo entende que o estatuto objetivo da linguística proposto no Curso de Linguística Geral não pode ser diretamente inserido nas ciências sociais, pois ao separar a língua da fala e tornar a língua o objeto, a teoria da ação tende ser prejudicada. Para Bourdieu, há muitos problemas na separação entre fala e língua que poderia ser traduzida entre a separação entre o individualizável e o formalizável (GIRARDI JR, 2018).

Para Bourdieu, o discurso não pode ser considerado em si mesmo, como um sistema isolado, pois sua compreensão depende das condições sociais de sua própria execução. Torna-se necessário compreender a língua em uso, realizar uma pragmática sociológica para verificar os efeitos da prática discursiva. O objetivo deste artigo é expor o funcionamento do discurso segundo Pierre Bourdieu.

O discurso

O que está em questão a partir do momento em que dois locutores falam é a relação objectiva entre as suas competências, não só a sua competência linguística (o seu domínio mais ou menos consumado da linguagem legítima) mas também o conjunto da sua competência social, o seu direito a falar, que depende objectivamente do seu sexo, da sua idade, da sua religião, do seu estatuto econômico e do seu estatuto social, outras tantas informações que poderiam ser de antemão conhecidas ou ser antecipadas por meio de índices imperceptíveis (é bem educado, tem uma condecoração, etc.) (BOURDIEU, 2003, p. 113).

Quando dois locutores se reúnem, há algo maior que somente a presença dos dois em jogo. Há algo mais complexo do que a intuição de igualdade e tábula-rasa que o senso comum poderia nos indicar acerca da conversa entre dois iguais. A presença dos interlocutores aciona uma série de delimitações e configurações socialmente construídas que define quem é quem na comunicação e, por fim, define os tipos de estratégias que poderão ser aplicadas para o desenvolvimento da situação específica de comunicação (GIRARDI JR, 2018).

Ao exemplificar como uma comunicação se faz numa situação pedagógica, Bourdieu salienta uma estrutura básica: “De maneira abstrata e rápida, a comunicação em situação de autoridade pedagógica supõe emissores legítimos, receptores legítimos, uma situação legítima, uma linguagem legítima” (BOURDIEU, 2003, p. 109). Sendo assim, a observação de uma situação de comunicação pede que e aviste 1) emissores legítimos, 2) receptores legítimos, 3) uma situação legítima e 4) uma linguagem legítima.

A legitimidade que atravessa esses quatro alvos é atribuída pelos grupos dominantes do campo específico em que a situação de comunicação se passa. Justamente por necessitar da legitimidade, é possível compreender que o discurso não se limita a um código a ser decifrado, como uma comunicação codificada que está plenamente passível de ser decodificada por outra pessoa que contém o mesmo código. Para Bourdieu, o discurso envolve signos a serem decifrados, mas também envolve signos de riqueza. Alguns discursos são mais valorizados que outros e a resposta para este desequilibrio não está na língua. O discurso é, também, um signo de riqueza e autoridade (GIRARDI JR, 2018).

O discurso que produzimos, segundo o modelo que proponho, é uma “resultante” da competência do locutor e do mercado no qual se apresenta o seu discurso; o discurso depende numa medida (que deveríamos apreciar mais rigorosamente) das condições de recepção (BOURDIEU, 2003, p. 104).

No discurso, algumas palavras são ditas e há efeitos materiais, como uma prisão determinada por uma policial, uma condenação determinada por um juiz e etc. O discurso, então, é também uma forma de exercício de poder, exercício do poder simbólico. Assim, o discurso contém relações de força, as promove e as reproduz. Ou seja, a assertiva saussureana da língua entendida como um tesouro coletivo é limitada quando se observa a prática da língua em suas condições sociais de existência.

Muitos discursos podem ser compreendidos, não há problema em seu entendimento.  A questão se situa em sua aceitabilidade. Apesar de todos os agentes terem competência técnica para fala, nem todos são ouvidos pois a pergunta subjacente é “falar de que modo?”. É necessário compreender quem pode falar com autoridade, em que momento, se se é legítimo para ser ouvido ou não (GIRARDI JR, 2018).

Toda a situação linguística funciona portanto como um mercado no qual o locutor coloca os seus produtos e o produto que produz para este mercado depende da antecipação que ele tem dos preços que os seus produtos vão receber. […] Nunca aprendemos a linguagem sem aprendermos, ao mesmo tempo, as condições de admissibilidade dessa linguagem. Quer dizer que aprender uma linguagem é aprender ao mesmo tempo que essa linguagem será compenadora nesta ou naquela situação (BOURDIEU, 2003, p. 104).

Este aprendizado que ocorre ao mesmo tempo é incorporado no senso prático, no habitus dos agentes sociais. É, de fato, incorporado, ou seja, transformado em disposições práticas que se situam, no limite, no corpo, que são internalizadas em estruturas mentais que não se manifestam na reflexividade acerca do tipo de linguagem admissível ou reprovável, mas no automatismo do entendimento daquilo que está dentro e daquilo que está fora:

É por isso que muitas vezes, ao se entrevistar alguém, a pessoa diz que não tem nada para falar, mas é um contrasenso, pois todos têm algo a falar. Mas por que ela diz que não tem nada a falar? Trata-se de uma definição de situação: ao colocar o entrevistado enquanto tal e se colocar como entrevistador, automaticamente uma série de características se acoplam nos dois agentes pelas posições sociais que ocupam e pela posição na situação que ocupam. Por isso, enquanto entrevistado, a pessoa tende a compreender que ela, nesta situação, ela não tem o que falar, que frente a um pequisador, sem ser uma pesquisadora, a pessoa não tem o que falar. A doxa torna evidente por si mesma todas as relações e toda a formação imaginária entre os participantes (GIRARDI JR, 2018).

A escola é um espaço privilegiado de se observar a forma como funciona este mercado linguístico, na medida em que “aprendemos inseparavelmente a falar e a avaliar por antecipação o preço que a nossa linguagem receberá; no mercado escolar – e sob este aspecto o mercado escolar oferece à análise uma situação ideal – este preço é a nota, a nota que implica muitas vezes um preço material” (BOURDIEU, 2003, p. 104) que é o preço do salário a ser recebido caso o agente social consiga um emprego após passar na prova discursiva da USP ou de uma universidade sem reconhecimento. As duas formações podem fornecer vantagens na hora de conseguir um emprego, mas os altos cargos serão destinados aos formados em universidades de ponta.

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A magia

Imagine quantas pessoas estão falando coisas importantes no mundo e ninguém está ouvindo. Ninguém está ouvindo. Elas podem falar, podem falar o quanto quiserem, mas quai são as condições para que o dizer tenha socialmente um significado? Sempre depende de um conjunto de circunstâncias (GIRARDI JR, 2018).

As falas se legitimam dentro de determinados ritos de instituição, determinadas situações que são reconhecidas como legítimas e que podem acontecer. Instituir é praticar uma magia social. Trata-se de um ato mágico que os humanos, ao falarem, produzem. Produz-se um discurso que torna certa realidade real, pois as palavras que se utiliza para nomear o mundo (como a oposição entre “música clássica” e “música popular”) também funcionam como ferramentas para construi-lo.

A palavra não rotula o mundo que existiria como uma coisa separada do discurso, em certa medida a palavra o constrói. O ato de nomear é, assim, um ato mágico, uma coisa propriamente humana. Já o ato de instituir é o ato de dar nome ao mundo, de dar existência a ele, e é aquilo que faz que se reconheça, consagre e sancione este mundo nomeado. No jornalismo, a escolha das manchetes e dos enquadramentos é o ato de construir o próprio acontecimento (GIRARDI JR, 2018).

O que torna essa construção de verdade válida é a legitimidade da linguagem utilizada pelos emissores legítimos, sendo que:

A linguagem legítima é uma linguagem de formas fonológicas e sintáticas legítimas, quer dizer uma linguagem correspondentes aos critérios habituais de gramaticalidade, e uma linguagem que diz constantemente, além daquilo que diz, que o diz bem. E por aí deixa crer que aquilo que diz é verdade: o que é uma das maneiras fundamentais de fazer passar o falso por verdadeiro. Entre os efeitos políticos da linguagem dominante há o seguinte: “Ele disse-o bem dito, portanto há probabilidades de ser verdade” (BOURDIEU, 2003, p. 110).

Evidentemente, toda a dinâmica exposta ao longo deste artigo não é mecânica, mas acontece sob estratégias. As estratégias não são necessariamente conscientes, mas são aprendidas ao longo do tempo, incorporadas como habitus e funcionalizadas enquanto um senso prática que, em vez de ser reflexivo, permite a própria reflexividade. Segundo Girardi Jr (2018):

Fui a uma palestra acerca do movimento Mães de Maio. Na mesa de debate, haviam dois acadêmicos e uma mãe, uma senhora que teve a tragédia de ver seu filho morto e abraçou a casa das Mães de Maio. Essa senhora foi a última a falar e ao começar sua fala, cometeu diversos erros de concordância. Era possível ver pessoas da plateia rindo por conta do estranhamento no espaço escolar da maneira como o discurso estava sendo contruído. Mas essa construção aconteceu de tal modo que foi a primeira vez que eu pude ver neste local uma pessoa ser aplaudida de pé. Formalmente, ela não obedecia as regras valorizadas do discurso clássico acadêmico, mas ela reverteu a situação a seu favor. Colocou este mercado linguístico que poderia ser desfavorável a ela, a seu favor. Não se trata de algo pré-definido, então, mas de uma questão de estratégia. Não digo que ela tenha utilizado isso conscientemente, pois as estratégias não são conscientes. Quando falamos que uma pessoa terá um lucro na fala, não estamos falando de um cálculo racional, mas as pessoas tem um senso prático das condições de sucesso.

Através de um cálculo inconsciente, através de um senso prático internalizado, a gente social conseguiu empregar estratégias eficientes para se fazer emissora legítima e tornar o espaço acadêmico, que é propício a uma linguagem culta com terminologias técnicas, um espaço que deveria legitimamente receber seu discurso sob a forma da legitimidade.

Considerações finais

O trabalho público dos porta-vozes do discurso envolve a emissão da verdade a fala, de tal maneira que exprimir o difícil se torna sistematizável e verdadeiro quando inserido num campo de legitimidade. Ou seja, como exemplo, o espaço político feminista é necessário para que um relato de violência doméstica seja legitimado enquanto tal, na medida em que este mesmo relato tende a ser rejeitado pela comunidade, pela família e, no limite, pela própria instituição policial e jurídica.

Tendo competência (no duplo sentido) para falar do mundo e de pôr em forma (religiosa, jurídica etc.) experiências práticas muitas vezes difíceis de exprimir (desconfortos, indignações, revoltas), e de operar uma certa universalização daquilo que enunciam pelo simples fato de torná-lo público, conferindo-lhe assim uma forma de reconhecimento oficial e a aparência da razão e da razão de ser (como, por exemplo, a quase sistematização profética), os profissionais do discurso estão estruturalmente inclinados a um desvio fundado na absolutização de uma razão social entre outras (empresa tecnocrática, república de magistrados, teocracia etc.) (BOURDIEU, 2001, p. 129)

O discurso é, então, a materialização de uma verdade latente que está presente na própria condição social de sua existência: o emissor legítimo, o receptor legítimo, a situação legítima e a linguagem legítima são elementos de compressão e expansão da verdade na fala do agente social, que comprime toda a verdade da doxa e a expande na reprodução via produção verbal.

Referências

BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. 1ª edição, Fim de Século: Lisboa, 2003.

BOURDIEU, Pierre. Meditações pascalianas. Tradução Sergio Miceli. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

GIARDI JR, Liráucio. Bourdieu: mercados linguísticos e poder simbólico. Diálogos entre Pierre Bourdieu e o Jornalismo – FIAM/FAAM – USP. Vídeo no Canal FIAMFAAM do YouTube. Disponível em <<https://youtu.be/ZGBPE7eZ0Bk?si=qymjA-nspNta1Qiq>>. Acesso em 27 de agosto de 2024.

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