O drama da classe média em ascensão – Pierre Bourdieu

Cabe ao pequeno-burguês se adaptar ao novo mundo que quer viver e que, ao mesmo tempo, é impossibilitado pelas relações que firmou com seu antigo mundo. Em todos os pequenos sacrifícios, ele se faz pequeno para tentar ser burguês, sem nenhuma garantia de sucesso e sem rede de apoio.

A distinção, de Pierre Bourdieu.
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A passagem de uma classe social a outra pressupõe, também, uma readaptação ao habitus necessário para transitar nos espaços que essa nova classe circula. Essa readaptação é essencial para o trânsito fluido neste espaços (sejam clubes, reuniões ou eventos sociais), mas também para mitigar todos os sinais que revelam a passagem, que demonstram o não pertencimento, que reprovam a presença e mitigam o acúmulo de capital social.

Pierre Bourdieu exemplifica o funcionamento desta passagem a partir da figura do pequeno-burguês. Este, por sua vez, ao descolar-se da pobreza, distanciar-se da classe trabalhadora (mesmo que infinitesimalmente), adquirir um pequeno ou médio negócio, alcança um lugar novo: agora, o horizonte da melhora está presente, a possibilidade da ascensão à classe alta parece real.

Na ordem da sociabilidade e das satisfações correlatas é que o pequeno-burguês realiza os sacrifícios mais importantes, para não dizer, mais manifestos. Com a garantia de que deve sua posição apenas a seu mérito, ele está convencido de que se deve contar somente consigo para conseguir sua salvação: cada um por si, cada um consigo mesmo para conseguir sua salvação: cada um por si, cada um consigo mesmo (BOURDIEU, 2017, p. 316).

O pequeno-burguês francês talvez seja parecido com seu correlato brasileiro. A meritocracia é seu guia de vida, seu crescimento econômico é diretamente relacionado ao seu mérito. A vida do pequeno-burguês envolve o esforço para ultrapassar as barreiras da pobreza, a eliminando, e driblar as barreiras da riqueza, ou seja, os elementos próprios de um capital cultural que o pequeno-burguês nunca teve. A mimetização de uma vida que não é sua de origem exige rompimentos:

A preocupação de concentrar esforços e reduzir os custos leva a romper os vínculos – até mesmo, familiares – que criam obstáculo à ascensão individual. A pobreza tem seus círculos viciosos e os deveres de solidariedade que contribuem para correntar os menos desprovidos (relativamente) aos mais desprovidos transformam a miséria em um eterno recomeço. A “decolagem” supõe sempre uma ruptura, cuja negação dos antigos companheiros de infortúnia representa apenas um aspecto (BOURDIEU, 2017, p. 316).

Novamente, mais uma característica próxima com a do correlato brasileiro: o pobre francês mantém relações de ajuda que aprisionam os membros da família por correntes de solidariedade. O cristianismo em sua versão brasileira assume que essas relações de solidariedade são uma manifestação da humildade presente nas camadas mais baixas da nossa sociedade, mas sob um olhar sociológico e relacional, são essas relações que impedem o descolamento do sujeito de sua classe de origem. A única saída indolor seria carregá-los consigo, o que não é possível ao pequeno-burguês que precisa romper com sua família e carregar o fardo de ser o “parente arrogante”. E sua arrogância é punida com insegurança:

Exige-se que o trânsfuga vire a mesa dos valores, proceda a uma conversão de toda a sua atitude. Assim, substituir a família numerosa – cujas causas negativas, tal como um controle insuficiente das técnicas anticoncepcionais, não são plenamente convincentes – pela família restrita ou pelo filho único é renunciar à concepção popular das relações familiares e das funções da unidade doméstica; é abandonar, além das satisfações da grande família e do modo de sociabilidade tradicional com suas trocas, festas, conflitos, as certezas proporcionadas por uma descendência numerosa, única proteção mais ou menos segura – sobretudo, para as mães – contra as incertezas da velhice, em um universo obcecado pela instabilidade doméstica e pela insegurança econômica e social (BOURDIEU, 2017, pp. 316-317).

Incorporar um novo habitus não é suficiente, pois é necessário performar um novo estilo de vida. É necessário que o habitus seja incorporado e praticado perfeitamente, seja pelo gosto ou pela necessidade. A família do pequeno-burguês de origem pobre não gera capital social que o alavanca em seu objetivo de ascensão, o habitus adequado para esta convivência é aquele que preconiza justamente a permanência na classe trabalhadora. Toda forma de satisfação psicossocial da família pobre é artigo de luxo do pequeno-burguês esforçado em se tornar burguês.

As relações familiares ou de amizade deixaram de ser para o pequeno-burguês uma certeza contra a infelicidade e a calamidade, contra a solidão e a miséria, uma rede de apoios e de proteções de que é possível receber, em caso de necessidade, uma ajuda, um empréstimo ou um emprego; elas ainda não são o que, em outras circunstâncias, se designa por “relações”, ou seja, um capital social indispensável para obter o melhor rendimento do capital econômico e cultural, mas apenas entraves que devem ser derrubados, custe o que custar, porque a gratidão, a ajuda mútua, a solidariedade, assim como as satisfações materiais e simbólicas que elas proporcionam, a curto ou longo prazos, fazem parte dos luxos proibidos (BOURDIEU, 2017, p. 317).

E a necessidade que arrebata o pequeno-burguês, supera o compromisso ajustado à performance familiar e passa também pela restrição econômica de um ainda-não-rico que deseja pertencer à camada mais alta da burguesia. Ele não tem o capital necessário para se manter longe da pobreza com certa segurança, nem potencial de ganho imediato necessário para tornar os custos de um filho insignificantes perante a escolha centrada em valores e civilidade em não ter muitos filhos.

Ao limitar a família a um pequeno número de filhos, quando não é a um único filho, nos quais se concentram todas as expectativas e os esforços, o pequeno-burguês obedece apenas ao sistema de restrições implicado em sua ambição: por ser incapaz de aumentar a renda, é obrigado a restringir a despesa, ou seja, o número de consumidores. Mas, procedendo desse modo, ele se conforma, por acréscimo, com a representação dominante da fecundidade legítima, ou seja, subordinada aos imperativos da reprodução social: o controle da natalidade é uma forma – sem dúvida, a forma elementar – de numerus clausus. O pequeno-burguês é um proletário que se faz pequeno para tornar-se burguês (BOURDIEU, 2017, p. 317).

Um proletário que se faz pequeno para tornar-se burguês. Um proletário que anula todas as satisfações sociais e simbólicas da vida familiar proletária para atingir o capital simbólico e econômico que a burguesia exige. Um trabalhador que abdica de sua classe e das regularidades própria desta sociabilidade para atingir um patamar social elevado, mesmo que isso custe a própria rejeição dos membros estabelecidos desta classe desejada.

Referências

BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. 2ª ed, Porto Alegre, RS: Zouk, 2017.

1 Comentários

  1. Ótimo texto Vinicius, tocante de certa forma para mim que já pensou em agir como um pequeno proletariado para ascender socialmente, continue com o ótimo trabalho!

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