Da série “Necropolítica”.
Índice
Martírio e sobrevivência
Há duas lógicas que se movimentam entre os colonizados na Palestina, diz Achille Mbembe: a “lógica do martírio” e a “lógica do sobrevivência“. Ambas separam dois conjuntos de questões: de um lado, morte e terror e de outro lado, terror e liberdade.
Deve-se começar pelo entendimento de que morte e terror não se separam no desenrolar das duas lógicas acima já ditas. Ambos estão no coração de cada um. “O sobrevivente é aquele que, tendo percorrido o caminho da morte, sabendo dos extermínios e permanecendo entre os que caíram, ainda está vivo”[1].
O sobrevivente lutou contra seus inimigos, não só sobreviveu como os derrotou. Ele venceu duplamente: o perigo e os agentes do perigo. Sobrevive quem vence adversidades que colocam a morte sempre como destino próximo. “O grau mais baixo da sobrevivência é matar”, o que leva a vida humana ao seu atributo de perigosa, como vida do perigo. O homem é o lobo do homem. O sobrevivente mata para viver, mata o outro, mata um outro quase sobrevivente, “o horror experimentado sob a visão da morte se transforma em satisfação quando ela ocorre com o outro”[2].
O corpo morto do inimigo é a sinalização em carne da vitória na sobrevivência. Existe um sentido confuso, pois para mais segurança, é necessária a morte do máximo número de inimigos. A vida reativa, que sobrevive, precisa da morte do outro.
Já no lado do martírio, temos uma lógica que pode ser traduzida pela figura do homem-bomba. “O ‘homem-bomba’ não veste nenhum uniforme de soldado e não exibe arma. O candidato a mártir persegue seus alvos; o inimigo é uma presa para quem uma armadilha é disposta”[3]. Em vez de usar um helicóptero cheio de misseis, o homem-bomba usa seu próprio corpo como máquina de guerra, como atividade de matar. Se mata enquanto leva seus inimigos. Dois específicos modos de matar e de morrer. O desejo da eternidade é fundamental na dinâmica específica do corpo do martírio: o corpo por si só não tem qualquer valor, que só aumenta conforme o processo da morte explicita características qualitativas diferentes para o momento derradeiro.
Em seu desejo de eternidade, o corpo sitiado passa por duas fases. Primeiro, ele é transformado em mera coisa, matéria maleável. Depois, a maneira como é conduzido à morte – suicídio – lhe proporciona seu significado final […] O corpo sitiado se converte em uma peça de metal cuja função é, pelo sacrifício, trazer a vida eterna ao ser. O corpo se duplica e, na morte, literal e metaforicamente escapa do estado de sítio e ocupação.[4]
Há um quê poético no destino prescrito pela lógica do martírio. Uma energia de libertação através do sacrifício, da recompensa existencial através da aniquilação.
Liberdade e sacrifício
Mbembe pensa com Martin Heidegger e conclui que “se é livre para viver a própria vida somente quando se é livre para viver a própria morte”. A determinação da morte garante a liberdade da vida. Autodeterminação para a própria morte é a garantia de uma liberdade de fato. A morte, pensa Mbembe com Bataille, deve ser morrida com consciência de si mesmo em seu acontecimento.
Não há dúvidas de que, nesse caso, o sacrifício consiste na espetacular submissão da si à morte, de tornar-se vítima por seu próprio empenho. O “autossacrificado” prossegue a fim de tomar posse de sua própria morte e de encará-la firmemente.[5]
Uma morte que atinge o caráter de transgressão, que abre a perspectiva da liberdade como dominação do momento da morte. Diferentemente de uma vida cotidiana em um território ocupado no Oriente Médio com uma morte previsível, o sacrifício coloca a morte num patamar sublime.
Considerações finais
A morte no sacrifício atinge o nível de aniquilamento, de destruição total. Destrói-se o assassino, mas também o assassinado. Trata-se de um ritual específico de libertação que torna a morte um excesso, um escândalo. A morte enquanto elemento do martírio, como encontro da liberdade com a destruição do outro e, assim, também na luta pela sobrevivência.
Aqui, a sobrevivência encarna outro nível: não se vê aquele que se mata, não há sentimento possível de sobrevivência. Todos morrem. O ser, interpretado como aquilo que está para além da carne, no exterior da coisa, que não é interrompido com a destruição corporal, observa racionalmente sua libertação no controle detalhado da morte enquanto transgressão do corpo do outro e também do eu.
Essa preferência pela morte diante da servidão contínua é um comentário sobre a natureza da liberdade em si (ou sua falta). Se essa falta é a própria natureza do que significa para a existência do escravo ou o colonizado, essa mesma falta é também precisamente o modo pelo qual ele ou ela reconhece sua própria mortalidade. Referindo-se à prática de suicídio em massa ou individual por escravos encurralados pelos caçadores de escravos, Gilroy[6] sugere que a morte, nesse caso, pode ser representada como agenciamento, já que a morte é precisamente aquilo por que e sobre o que tenho poder. Mas também é esse espaço em que a liberdade e a negação operam.[7]
A morte é antecipada no presente, que se dilacera num ponto de eternidade. O necropoder aproxima os mecanismos das concentrações escravagistas e dos pontos de ocupação colonial tardia, separando aqueles podem viver dos que devem morrer através de mecanismos propositivos de morte, de tal maneira que o espaço em que o necropoder opera permite o nascimento de duas lógicas de vida e morte: a sobrevivência e o martírio, sendo que esta última carrega consigo a proposta da liberdade num momento de eternidade inserido no aniquilamento total no presente, na morte como elemento de excesso, de escândalo.
Referências
[1] MBEMBE, Achille. Necropolítica. Arte & Ensaios – revista do ppgav/eba/ufrj, n. 32, dezembro 2016, p.142.
[2] MBEMBE, Achille. Necropolítica… p.142.
[3] MBEMBE, Achille. Necropolítica… p.142.
[4] MBEMBE, Achille. Necropolítica… p.143.
[5] MBEMBE, Achille. Necropolítica… p.145.
[6] Paul Gilroy, historiador britânico e diretor fundador do Centro de Estudos de Raça e Racismo da University College London.
[7] MBEMBE, Achille. Necropolítica… p.146.
Cite este artigo:
SIQUEIRA, Vinicius. O homem-bomba – Achille Mbembe. Colunas Tortas. Acesso em [DD Mês AAAA]. Disponível em <<https://colunastortas.com.br/o-homem-bomba-achille-mbembe/>>.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.