O Homem dos lobos – Sigmund Freud

O Homem dos Lobos é o caso de um aristocrata russo que vai se tratar com Freud em Viena em função de fobias, pesadelos e depressões que lhe acometiam. O relato do analista é concentrado na formação da neurose primária do paciente, desenvolvida com fantasias relacionadas à cena primária.

Índice

Introdução

No escrito, Sigmund Freud propõe-se a relatar a neurose infantil do paciente, analisada 15 anos após seu fim.

No que diz respeito a sua doença posterior, apenas diz que causou sua internação em sanatórios alemães, recebendo o diagnóstico de “insanidade maníaco-depressiva”[1], que deve ser considerada como uma condição que se segue a uma neurose obsessiva que acabou espontaneamente, mas deixou por trás um defeito após a recuperação.

O analista relata que os primeiros anos de tratamento foram pouco transformadores. A forma com que venceu a apatia do paciente foi, após estabelecimento de forte laço, determinar uma data fixa para o fim do tratamento, independente do progresso deste. Assim, “sua resistência e sua fixação na doença cederam e então, num período desproporcionalmente curto, a análise produziu todo o material que tornou possível esclarecer as suas inibições e eliminar os seus sintomas”[2]. Nesse contexto, tornou-se possível a compreensão de sua neurose infantil.


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Avaliação geral do ambiente do paciente e do histórico do caso

O homem dos lobos, de Freud
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Freud inicia o capítulo fornecendo um quadro da infância do paciente.

Seus pais, apesar de enfrentarem enfermidades, viviam uma vida feliz. Ele possuía uma irmã aproximadamente dois anos mais velha e uma babá por quem se afeiçoava. Vivia em uma granja e passava o verão em outra, até que os genitores as venderam e mudaram-se para a cidade.

Fora uma criança tranquila nos primeiros anos de vida. Porém, certa vez, quando seus pais regressaram de férias, mostrou-se inquieto e violento. A mãe atribuiu a mudança de comportamento à influência da governanta com quem o deixou, cuja demissão, no entanto, não gerou mudanças.

Ele lembrava desta fase, que atribuiu a fenômenos (que não dispunha em sequência cronológica) ocorridos no período que chamou de “na primeira granja”, de onde supõe ter saído por volta dos cinco anos. Relatou que viveu fobias, perversidades e obsessiva devoção religiosa. Assim, podemos citar a lembrança da irmã aterrorizá-lo com uma gravura de lobo em um livro infantil, dele torturar insetos e se ocupar com pensamentos e comportamentos obsessivos ligados a Deus.

No mais, lembra do pai lhe causar estranhamentos resultantes de sua demonstração de favoritismo pela irmã. Posteriormente, contrariando a boa relação que tiveram, passou a sentir medo dele.

Enfim, ele alega que todos os fenômenos relacionados ao seu mau comportamento desapareceram por volta dos oito anos. Apesar das oscilações, atribuiu o fim delas à influência de mestres e tutores, que substituíram as mulheres que até então cuidavam dele.

A sedução e suas conseqüências imediatas

O paciente lembrou de práticas sexuais da infância, relacionadas à sua irmã. Uma foi a dela mostrar o traseiro quando ia ao banheiro com ele. Outra foi quando pegou em seu pênis ao brincarem, dizendo que a babá fazia o mesmo com o jardineiro.

Os acontecimentos tiveram, como efeito, sonhos em que tentava despir a irmã. Assim, destinavam-se a corrigir as lembranças ofensivas à autoestima masculina do paciente, invertendo-as ao colocá-lo na posição de agressividade. Por essa razão, começou a apresentar o comportamento colérico.

Ele também contou que brincava com seu pênis na presença da babá, que o reprimia, dizendo que ficaria com uma “ferida” no lugar do genital. Tal ideia voltou à tona quando observou a irmã e uma amiga urinarem, vendo a suposta confirmação da ferida e explicando a si que se tratava do “traseiro frontal” das meninas. Assim veio o assunto da castração, que encontrou em novas alusões.

Como consequência da ameaça da babá, abandonou a masturbação, fazendo sua vida sexual retornar à organização pré-genital: assumiu um caráter anal-sádico. Assim, se tornou irritável e passou a obter prazeres às custas de animais que torturava ou humanos que atormentava. Fantasias que lhe surgiram na época continham meninos sendo castigados no pênis. Isso revelou o sadismo sendo convertido em masoquismo e o órgão sexual recebendo as pancadas revelava culpa. “Tal comportamento era também característico da sua vida posterior (…): nenhuma posição da libido que fora antes estabelecida, era, jamais, completamente substituída por uma posterior” [3].

Outra decorrência da rejeição pela babá foi o afastamento de sua expectativa libidinal em direção ao seu pai, que antes era seu objeto de identificação. Quando ele retornou de viagem, atacou-o com gritos e hostilidades, que funcionavam como tentativa de sedução incitando aplicação de castigos, que também satisfariam o sentimento de culpa.

O sonho e a cena primária

A infância do paciente pode, portanto, ser dividida em duas fases: de mau comportamento e perversidade, desde a sua sedução, aos três anos e três meses, até o seu quarto aniversário; e uma fase subsequente, mais longa, na qual predominaram os sinais de neurose[4].

Um sonho foi o evento que tornou possível essa divisão, que resultou em medo de ter terríveis elaborações oníricas até aproximadamente doze anos. Transcrevo seu relato:

Sonhei que era noite e que eu estava deitado na cama. (…) De repente, a janela abriu-se sozinha e fiquei aterrorizado ao ver que alguns lobos brancos estavam sentados na grande nogueira em frente da janela. Havia seis ou sete deles. Os lobos eram muito brancos e pareciam-se mais com raposas ou cães pastores, pois tinham caudas grandes, como as raposas, e orelhas empinadas, como cães quando prestam atenção a algo. Com grande terror, evidentemente de ser comido pelos lobos, gritei e acordei. Minha babá correu até minha cama, para ver o que me havia acontecido. Levou muito tempo até que me convencesse de que fora apenas um sonho; tivera uma imagem tão clara e vívida da janela a abrir-se e dos lobos sentados na árvore. Por fim acalmei-me, senti-me como se houvesse escapado de algum perigo e voltei a dormir.[5]

Sua análise teve os seguintes resultados:

  • O paciente vinculou o conteúdo do sonho à recordação de, na infância, uma vez que sua irmã o aterrorizava com uma ilustração de lobos, ter medo de encontrar desenhos do animal em livros.
  • Associou a cor dos lobos aos rebanhos de ovelhas mantidos nas vizinhanças da propriedade, os quais com o pai ocasionalmente visitava. Após ser instigado, lembrou da ocorrência de uma epidemia no ambiente, que o pai tentou combater com injeções e ocasionou ainda mais mortes.
  • O fato de os lobos estarem na árvore o lembrou de uma história contada por seu avô, que aludia ao complexo de castração:

Um alfaiate estava sentado trabalhando em seu quarto, quando a janela se abriu e um lobo pulou para dentro. O alfaiate perseguiu-o com seu bastão – não (corrigiu-se), apanhou-o pela cauda e arrancou-a fora, de modo que o lobo fugiu correndo, aterrorizado. Algum tempo mais tarde, o alfaiate foi até a floresta e subitamente viu uma alcatéia de lobos vindo em sua direção; então trepou numa árvore para fugir. A princípio, os lobos ficaram perplexos; mas o aleijado, que se achava entre eles e queria se vingar do alfaiate, propôs que trepassem uns sobre os outros, até que o último pudesse apanhá-lo. Ele próprio – tratava-se de um animal velho e vigoroso – ficaria na base da pirâmide. Os lobos fizeram como ele sugerira, mas o alfaiate reconheceu o visitante que havia castigado e de repente gritou, como fizera antes: “Apanhem o cinzento pela cauda!” O lobo sem rabo, aterrorizado pela recordação, correu, e todos os outros desmoronaram.[6]

  • Pensando nos contos de fadas que poderiam estar vinculados ao sonho, lembrou de Chapeuzinho Vermelho e O Lobo e os Sete Cabritinhos. O último explicaria o número de animais no sonho, e ainda a cor, pois o lobo branqueou sua pata após ser reconhecido pelo tom cinzento. Ademais, em ambas narrativas aparecem árvores, a temática do comer e o lobo como vilão.

Freud interpretou os sonhos como fobia simples, cujo objeto, o lobo, era conhecido somente através das histórias. No mais, cita que o animal poderia ter sido um representante paterno, afinal, seu pai possuía hábito de emitir “ameaças afetuosas”, por exemplo, brincar de engolir os filhos.

O paciente prosseguiu na interpretação do sonho. Ele sugeriu a ocorrência de transposições: que o abrir da janela era o de seus olhos, que o olhar dos lobos deveria ser atribuído a ele. Também disse, ao dizer que os animais moviam-se violentamente, ter ocorrido transformação no oposto, ou seja, tornou-se manifesto o conteúdo ao contrário da representação original.

O Homem dos Lobos fazia aniversário no dia de Natal e o sonho ocorreu pouco antes da data. Além disso, a árvore relatada no sonho era justamente de efeito para o Natal. Assim, dado que crianças antecipam a realização de desejos, fora dormir esperando seus presentes. No sonho, já era seu aniversário, e mostrava os presentes transformados em lobos na árvore, de modo que ele foi tomado pelo medo de ser comido pelo lobo (provavelmente seu pai) e fugiu aos braços da babá.

“Dos desejos envolvidos na formação do sonho, o mais poderoso deve ter sido o desejo de satisfação sexual, que ele, naquela época, aspirava obter do pai”[7]. Além disso, quando pensava em seu aniversário, lembrava de seu acesso de raiva devido ao descontentamento com seus presentes. Assim, foi preservada a ligação do feriado com o amor insatisfeito.

No decorrer do processo, evidenciou-se que vieram à tona traços de memória inconsciente da cena dos pais fazendo sexo.

Quando o paciente, com um ano e meio, sofria de malária e apresentou febre intermitente, viu esta cena.

Eis que o menino, quando dormia no quarto dos pais, acordou e presenciou um coito a tergo (por trás). Dessa forma, viu adotarem “postura de animais”: a posição do lobo na temida gravura que a irmã mostrava, era igual a assumida por seu pai no ato. Assim, pode-se entender que as etapas de transformação do material onírico são constituídas por:

Cena primária – história do lobo – conto dos ‘Sete Cabritinhos’, refletem o progresso dos pensamentos do sonhador durante a construção do sonho: ‘desejo de obter do pai satisfação sexual – a compreeensão de que a castração era uma condição necessária para isso – medo do pai.[8]

No mais, quando observou a cena, reparou nas feições de prazer da mãe. A ansiedade fora um repúdio do desejo de também obter prazer:

O medo de “ser devorado pelo lobo” era apenas a transposição (como saberemos, regressiva) do desejo de copular com o pai, isto é, de obter satisfação sexual do mesmo modo que sua mãe. Seu último objetivo sexual, a atitude passiva em relação ao pai, sucumbiu à repressão, e em seu lugar apareceu o medo ao pai, sob a forma de uma fobia ao lobo.[9]

As circunstâncias do caso demonstram que a força impulsionadora da repressão foi a sua libido genital narcísica. Lutava contra uma satisfação que exigia renúncia à genitália interessando-se por ela. Deste narcisismo ameaçado, surgiu a masculinidade com a qual se defendia da vontade sexual direcionada ao pai.

Durante o sonho, ocorreu alteração em sua organização sexual. Até então, considerava atividade e passividade opostas e adotava a segunda postura a partir do toque que lhe foi feito nos genitais. Então, por regressão à fase anal-sádica, nasceu o propósito masoquista de ser castigado, indiferente de atingir tal objetivo com mulheres ou homens. Dessa forma, seu desejo de ser tocado pela babá passou a ser o de ser punido pelo pai. A cena primária foi ativada com o sonho. Já sabendo os significados biológicos de sexo feminino e masculino, seu desejo foi expresso como feminino na forma de “ser copulado pelo pai”, em vez de “ser por ele espancado nos genitais ou no traseiro”[10], sujeitando-se a repressão e tendo o desejo substituído pelo medo do lobo.

Freud acrescenta que a mãe também fora transformada em lobo, assumindo o papel do castrado, que deixava o outro (o pai) subir sobre ele. O paciente identificou-se com a mãe, sendo resumido nas falas do analista “Se você quer ser sexualmente satisfeito pelo Pai, você deve deixar-se castrar como a Mãe”[11].

Dessa forma, evidencia-se as influências da sedução na sexualidade do paciente, que foi desviada pela observação do coito de seus pais. Isso lhe fez regredir a outras formas de satisfação sexual.

A neurose obsessiva

Com quatro anos e meio, ainda em estado de irritabilidade, sofreu uma nova influência que contribuiu ao seu desenvolvimento: sua mãe o apresentou histórias bíblicas.

A iniciação religiosa fez com que a ansiedade fosse substituída por sintomas de neurose obsessiva, que perdurou por mais de seis anos. Se antes tinha o sono ruim por medo de ter pesadelos, nesta fase passou a, antes de deitar-se, orar, fazer inúmeras vezes o sinal da cruz e beijar todas as imagens sagradas que possuía no quarto.

Em seu relato, disse que tinha impressões desagradáveis sobre as narrativas bíblicas. Ele mantinha-se crítico quanto à onipotência de Deus, culpava-o pela maldade dos homens e apresentava objeções à máxima cristã de dar a outra face a um agressor. A parte de suas dúvidas racionalistas, também questionava elementos profanos que entravam em contato com a narrativa sacra de Jesus Cristo: possuir um traseiro ou precisar defecar. Ele encontrou as respostas, pacificando seu medo de ter humilhado Jesus, ao imaginar que as nádegas são continuações das pernas e, tal como o fez vinho de água, poderia transformar comida em nada e não precisaria expeli-las como fezes.

Sua babá ajudou a elucidação ao falar que Cristo fora Deus, mas também um homem. No que também diz respeito a ela, sabemos que o fato de ter recusado a sedução do paciente no início de sua atividade genital contribuiu com sua vida sexual sádica e masoquista – na primeira, mantinha a identificação com o pai, na segunda, escolhia-o como objeto sexual. A operação do sonho, que poderia tê-lo levado à transformação do masoquismo em homossexualidade, apenas resultou em ansiedade.

Poder-se-ia esperar que sua relação com o pai prosseguisse, do objetivo sexual de ser espancado para o objetivo seguinte, ou seja, o de ser possuído por ele, como uma mulher; mas, na verdade, devido à oposição da sua masculinidade narcísica, essa relação foi lançada de volta para uma etapa ainda mais primitiva. Foi deslocada para um substituto paterno e, ao mesmo tempo, dissociada na forma de um medo de ser comido pelo lobo.[12]

Não houve, todavia, a resolução deste conflito.

A partir da época do sonho, em seu inconsciente ele era homossexual e, em sua neurose, estava no nível do canibalismo; ao passo que a atitude anterior, masoquista, continuou a ser a dominante. Todas as três correntes tinham propósitos sexuais passivos; era o mesmo objeto e o mesmo impulso sexual, mas esse impulso tornara-se dividido ao longo dos três diferentes níveis.[13]

No mais, suspeitava ter sentimentos ambivalentes em relação ao pai e atacava a religião devido a relação análoga entre Deus e Jesus Cristo. Sua oposição em relação à doutrina voltou-se à figura divina: passou a temer Àquele que sacrificara o filho e ordenara que Abraão fizesse o mesmo. Facilitado pela coincidência de seu aniversário com o de Cristo, identificou-se com ele e associou seu pai a Deus.

O Deus oferecido pela religião não era um verdadeiro substituto do pai. Na medida em que se defendia do Senhor, imaginava-se se defendendo do próprio pai. O sonho com os lobos o influenciou a ter um impulso hostil contra seu pai, ainda que fosse seu amor a ele a fonte de energia no processo descrito no parágrafo acima.

Erotismo anal e o complexo de castração

A neurose obsessiva que foi descrita desenvolve-se com constituição anal-sádica. Até este momento, o fator sádico foi exposto. Agora, expor-se-á o componente anal.

Freud explica que, “antes da análise, as fezes haviam tido para ele [o paciente] o significado de dinheiro.”[14]. Ele ilustra com fatos do passado, por exemplo, a visita que o paciente fez a um primo pobre e se censurou por não o apoiá-lo financeiramente. Logo em seguida, sentiu uma necessidade urgente de evacuar.

Não à toa, quando adulto, o paciente sofria perturbações na função intestinal, fato que o analista reconheceu como traço característico de histeria encontrado regularmente na neurose obsessiva. Uma consequência do tratamento foi a recuperação do funcionamento normal do órgão.

Tal sintoma vinha da neurose infantil. Retornando à infância do paciente, além de exibir seu ânus, apresentou incontinência, o que foi interpretado como a não repressão do prazer ligado à evacuação. Várias vezes sua babá encontrou sua cama suja, o que não o envergonhou, mas colocou-o na posição de desafiador. Em contrapartida, durante seu período de ansiedade, sujou as calças e “queixou-se de que não poderia continuar a viver daquele jeito”[15], frase que ouviu de sua mãe ao lamentar suas enfermidades, demonstrando identificação por ela. Posteriormente, relatou uma recordação da mãe lhe ordenando a lavar a mãos devido aos casos de disenteria nas imediações da granja. Ao descobrir o que era a doença, alegava que tinha sangue nas fezes e temia morrer, pois lembrava de uma conversa entre a mãe e o médico sobre hemorragias.

Freud apresenta a seguinte interpretação:

Disenteria era, evidentemente, o nome que ele dava à doença da qual ouvira a mãe lamentar-se, e com a qual era impossível continuar a viver; não considerava a enfermidade da mãe como sendo abdominal, mas sim intestinal. Sob a influência da cena primária, chegou à conclusão de que a mãe ficara doente por causa daquilo que o pai lhe fizera; e seu medo de ter sangue nas fezes, de estar doente como a mãe, era a sua recusa a identificar-se com ela nesta cena sexual – a mesma recusa com a qual despertou do sonho. Mas o medo era também uma prova de que, na sua elaboração posterior da cena primária, colocara-se no lugar da mãe e invejara-lhe essa relação com o pai. O órgão pelo qual sua identificação com as mulheres, sua atitude homossexual passiva para com os homens, estava apta a expressar-se, era a zona anal. Os distúrbios na função dessa zona haviam adquirido o significado de impulsos femininos de ternura, preservados também no curso da sua enfermidade posterior.[16]

Assim, o analista foi levado a presumir que, durante o processo do sonho, o menino compreendeu que as mulheres são castradas e possuem uma “ferida” usada nas relações sexuais. Esta suposição o induziu a reprimir atitudes femininas em relação aos homens. Suas novas percepções foram rejeitadas, de forma que se decidiu a favor do intestino e contra a vagina. A atitude feminina reprimida retraiu-se para os sintomas intestinais.

Neste ponto, Freud retornou à suposição de que certo conteúdo da cena primária estava oculto: a criança interrompeu a relação dos pais evacuando, o que lhe deu desculpa para gritar. Ele considera que este fato deve ser considerado como uma característica da constituição sexual do paciente.

Da mesma forma, ele mostra que, como outras crianças, deu significados primitivos às fezes: “são a primeira dádiva da criança, o primeiro sacrifício em nome da sua afeição, uma parte do seu próprio corpo que está pronta a partilhar, mas apenas com alguém a quem ama”[17]. Posteriormente, elas adquirem significado de “bebê”, supostamente nascidos do ânus – no mais, é comum referir-se aos filhos como “dádivas”, termo que também remete a dinheiro.

Assim, tornou-se possível analisar lembranças do passado. Uma foi a do acesso de raiva no Natal, que mostrava a falta de satisfação sexual própria da fase anal. Outra foi o fato de maltratar animais pequenos, que tinham o significado de bebês.

A explicação procedeu-se com a elucidação de que uma coluna de fezes estimula a mucosa erógena do intestino, tal como um pênis atuaria na cloaca. Assim, o ato de ceder as fezes em favor (pelo amor) de alguém, torna-se um protótipo de castração, é a primeira ocasião na qual um indivíduo partilha um pedaço do seu próprio corpo com a finalidade de ganhar os favores de qualquer outra pessoa a quem ame.

De modo que o amor de uma pessoa pelo próprio pênis, que é em outros aspectos narcísico, não deixa de ter um elemento de erotismo anal. “Fezes”, “bebê” e “pênis” formam, assim, uma unidade, um conceito inconsciente (sit venia verbo) – a saber, o conceito de um “pequeno” que se separa do corpo de alguém.[18]

A última colocação a respeito da castração foi feita a partir de uma alucinação que o paciente teve aos cinco anos:

Estava brincando no jardim perto da babá, fazendo cortes com meu canivete na casca de uma das nogueiras que aparecem em meu sonho também. De repente, para meu inexprimível terror, notei ter cortado fora o dedo mínimo da mão (direita ou esquerda?), de modo que ele se achava dependurado, preso apenas pela pele. Não senti dor, mas um grande medo. Não me atrevi a dizer nada à babá, que se encontrava a apenas alguns passos de distância, mas deixei-me cair sobre o assento mais próximo e lá fiquei sentado, incapaz de dirigir outro olhar ao meu dedo. Por fim, me acalmei, olhei para ele e vi que estava inteiramente ileso.[19]

Ele alegou que a alucinação foi instigada pela história de uma conhecida, que nasceu com 6 dedos e teve um deles decepado. Dessa forma, imaginou que as mulheres terem seus pênis cortados ao nascerem – fantasia fortalecida pelo conhecimento dos rituais de circuncisão. Assim, além de ser associado a figura de Deus, seu pai também converteu-se na autoridade que o ameaçava com a castração.

Conclusão

Com o decorrer da análise, emergiram novas lembranças. A de tentar apanhar uma bonita borboleta com listras amarelas foi dita periodicamente. Ao vê-la pousando em uma flor, o paciente se dizia tomado por medo e fugia aos gritos.
Um dia, ele contou que, na sua língua, borboleta é chamada de ‘babushka‘, ‘vovó’, acrescentando que elas lhe pareciam ser como mulheres.

Posteriormente, o paciente alegou que ver o bater das asas do animal deu-lhe uma sensação estranha, parecendo uma mulher abrindo as pernas na forma de um V (cinco em algarismos romanos), que era a hora em que caía em estado mental depressivo.

Certo dia, trouxe a recordação de, em terna idade, possuir uma ama com o mesmo nome de sua mãe. Ele corrigiu a recordação dizendo que os nomes se fundiram em suas lembranças: pensou, então, em uma pera com listras amarelas na cascas que guardava em uma dispensa da primeira granja. A palavra que designa o nome da fruta na sua língua é “grusha” e este era também o nome da ama.

Assim, tornou-se claro que, por trás da lembrança encobridora da borboleta, havia a da ama. Ela influenciou suas paixões posteriores, como a atração por uma mulher que estava na posição em V que ele lembra ter observado no passado. Outra lembrança foi de vê-la rebaixada esfregando o assoalho, em uma alusão à cena de sexo entre os pais.

Ele revelou a conexão através de um sonho, em interpretação dada no seguinte diálogo:

“Tive um sonho”, disse ele, “em que um homem arrancava as asas de uma Espe.” “Espe?”, perguntei, “o que quer você dizer com isto?” “O senhor sabe; aquele inseto com listras amarelas no corpo, que dá uma picada. Isto deve ser uma alusão a Grusha, a pera de listras amarelas.” Agora eu podia corrigi-lo: “Você quer dizer uma Wespe [vespa].” “Chama-se Wespe? Na verdade eu achava que o nome era Espe.” (Como tantas outras pessoas, ele usava as suas dificuldades com a língua estrangeira como uma forma de encobrir os atos sintomáticos.) “Mas Espe, então, sou eu mesmo: S.P.” (eram as suas iniciais). A Espe era, é claro, uma Wespe mutilada. O sonho dizia claramente que ele estava se vingando de Grusha, por causa da sua ameaça de castração.[20]

Por fim, Freud termina o relato explicando a queixa do paciente de parecer que o mundo lhe estava oculto por um véu. Pouco antes do fim dois encontros, o paciente contou que nascera com um âmnio que o fazia sentir-se especial. Ao contrair uma infecção gonorreica e ver-se debilitado, recebeu um golpe em seu narcisismo. “Assim, o âmnio era o véu que o escondia do mundo e que escondia o mundo dele. A queixa que fez era, na realidade, uma fantasia plena de desejos, realizada: mostrava-o outra vez de volta no útero e era, na verdade, uma fantasia plena de desejos de fugir do mundo. Pode traduzir-se assim: ‘A vida torna-me tão infeliz! Tenho que voltar para dentro do útero!’”[21].


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Referências

[1] FREUD, Sigmund. História de uma neurose infantil. IN: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. X. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 07.

[2] FREUD, Sigmund. História de uma neurose… p. 09.

[3] FREUD, Sigmund. História de uma neurose… p. 18.

[4] FREUD, Sigmund. História de uma neurose… p. 19.

[5] FREUD, Sigmund. História de uma neurose… p. 19-20.

[6] FREUD, Sigmund. História de uma neurose… p. 21.

[7] FREUD, Sigmund. História de uma neurose… p.24.

[8] FREUD, Sigmund. História de uma neurose… p. 28.

[9] FREUD, Sigmund. História de uma neurose… p. 29.

[10] FREUD, Sigmund. História de uma neurose… p. 29.

[11] FREUD, Sigmund. História de uma neurose… p. 30.

[12] FREUD, Sigmund. História de uma neurose… p. 40-41.

[13] FREUD, Sigmund. História de uma neurose… p. 41.

[14] FREUD, Sigmund. História de uma neurose… p. 47.

[15] FREUD, Sigmund. História de uma neurose… p. 49.

[16] FREUD, Sigmund. História de uma neurose… p. 49-50.

[17] FREUD, Sigmund. História de uma neurose… p. 52.

[18] FREUD, Sigmund. História de uma neurose… p. 54.

[19] FREUD, Sigmund. História de uma neurose… p. 54.

[20] FREUD, Sigmund. História de uma neurose… p. 60.

[21] FREUD, Sigmund. História de uma neurose… p.64.

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