Formação discursiva em Foucault e Pêcheux: diferenças e semelhanças

Michel Foucault e Michel Pêcheux utilizam a noção de formação discursiva para dar conta de seus desenvolvimentos na análise dos discurso. Para Foucault, trata-se de uma noção que dá conta das contradições internas do próprio discurso, da própria maneira de se ver seus objetos, enquanto Pêcheux trabalha esta noção através dos processos de identificação e assujeitamento, o que prolifera em quantidade a presença das formações discursivas.

Índice

Introdução

A noção de formação discursiva é central ao funcionamento da engrenagem de análise discursiva tanto de Michel Foucault como de Michel Pêcheux. É com esta noção que o sujeito será deslocado do centro da análise e as posições serão colocadas em jogo, a situação imediata será elaborada como parte de um sistema, em conjunto com a possibilidade de se observar regularidades no discurso.

No entanto, entre Pêcheux e Foucault há diferenças fundamentais que levam o leitor para caminhos diferentes. Cada autor coloca, nesta noção, uma localização diferente em sua teoria ou procedimento. O objetivo deste artigo é expôr as diferenças fundamentais entre a noção de formação discursiva para o procedimento analítico de ambos os autores tendo em vista, principalmente, o material enunciativo ambas podem cobrir. Primeiramente, a noção será apresentada sob o ponto de vista de cada autor, depois, haverá a comparação para posterior conclusão a respeito daquilo que as difere.

A formação discursiva para Foucault

Para elaborar a noção de formação discursiva, Foucault buscou aquilo que poderia ser considerado uma unidade na formulação dos discursos, aquilo que poderia lhes conferir uma harmonia. Michel Foucault estabelece diferentes hipóteses de regularidade com diferentes elementos e as coloca à prova[1]:

  1. A regularidade do objeto: não é possível estabelecer um discurso através da regularidade de um objeto específico, pois é perceptível que, no discurso sobre a loucura, por exemplo, não se fala sempre da mesma loucura. O louco, objeto da psiquiatria, não é o mesmo louco pré-revolução francesa, objeto da moral e internado por comportamentos que agridem exatamente esta esfera da vida social. “Desta forma, a unidade dos discursos sobre a loucura não teria a ver com o objeto ‘loucura’ em particular, mas com as regras que permitem a sua emergência em épocas diferentes, que são medidas e categorizadas de acordo com práticas diferentes”[2].
  2. A regularidade dos modos enunciativos: não é possível definir o discurso pela regularidade das maneiras de apresentar os enunciados, a partir de sua forma, de seu tipo e encadeamento. Não há um estilo próprio do discurso. A medicina é o exemplo de Foucault, que modificou seu estilo e se tornou heterogênea após tornar-se ciência e se retirar dos campos da tradição e  do misticismo.

    Se há unidade, o princípio não é, pois, uma forma determinada de enunciados, não seria, talvez, o conjunto das regras que tornaram possíveis, simultânea ou sucessivamente, descrições puramente perceptivas, mas, também, observações tornadas mediatas por instrumentos, protocolos de experiências de laboratórios, cálculos estatísticos, constatações epidemiológicas ou demográficas, regulamentações institucionais, prescrições terapêuticas?[3]

  3. A regularidade dos conceitos: não é possível estabelecer uma unidade do discurso a partir dos conceitos que são construídos por ele. Dentro de uma discurso, até mesmo dentro de uma mesma escola de pensamento presente num dado discurso, há conceitos que tornam a coerência interna impossível, que são incompatíveis. O ponto, diz Foucault, não é encontrar uma unidade da coerência dos conceitos, “não buscaríamos mais, então, uma arquitetura de conceitos suficientemente gerais e abstratos para explicar todos os outros e introduzi-los no mesmo edifício dedutivo; tentaríamos analisar o jogo de seus aparecimentos e de sua dispersão”[4].
  4. A regularidade das estratégias: não é possível, também, definir uma unidade no discurso a partir das estratégias, temas ou teorias utilizadas num discurso, como se algum tipo de identidade pudesse ser encontrada na prática discursiva. O exemplo de Foucault para descartar esta hipótese é o discurso das ciências naturais com base no evolucionismo: até o século XVIII, era mais relacionado com uma ideia de evolução linear interrompida por catástrofes naturais, mas no século XIX, a teoria foca na relação descontínua das espécies com o meio circundante.

    Mais do que buscar a permanência dos temas, das imagens e das opiniões através do tempo, mais do que retraçar a dialética de seus conflitos para individualizar conjuntos enunciativos, não poderíamos demarcar a dispersão dos pontos de escolha e definir, antes de qualquer opção, de qualquer preferência temática, um campo de possibilidades estratégicas?[5]

Compreende-se que visar elementos específicos e suas continuidades não foi produtivo para a acepção de um certo tipo de unidade para os discursos. O discurso não é uma unidade da maneira como entendemos, ele é uma dispersão. Ao longo da rejeição de cada hipótese, Foucault levanta a hipótese de que é mais produtivo o estudo desta dispersão enquanto sistema. Por sua vez, o sistema de dispersão carrega consigo uma formação discursiva:

No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipo de de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva.[6]

Não é importante procurar uma coerência própria nos objetos, modos de enunciação, escolhas estratégicas ou conceitos; o importante é compreender o sistema de dispersão que esses elementos podem formar. Dentro de uma mesma formação discursiva, portanto, há o contraditório, há a incoerência, os opostos estão lá, em luta, regidos pelo mesmo conjunto de regras que definem a regularidade de sua distribuição em seu espaço próprio. O sujeito, assim, é um espaço que pode ser ocupado por indiferentes indivíduos que se constituem pelas relações que essa formação pode fornecer e se relacionam com os outros sujeitos através das diferentes possibilidades de emergência de enunciados. Assim, por exemplo, é possível a polêmica entre diferentes formas de se discutir a teoria da evolução dentro da mesma formação discursiva.

A formação discursiva para Pêcheux

Michel Pêcheux adiciona a ideologia como elemento novo para elaborar a noção de formação discursiva. Para isso, ele constrói a noção de formação ideológica que deve ser entendida a partir das relações de classe vigentes em uma formação social determinada.

Em uma formação social dada, há práticas vigentes através dos aparelhos estatais que são a forma concreta dos antagonismos das relações de classe que, por sua vez, definem um espaço específico de posições de classe possíveis e, no que lhes diz respeito, são posições vazias, pois não representam indivíduos concretos.

A formação ideológica é o “conjunto complexo de atitudes e de representações que não são nem ‘individuais’ e nem ‘universais’, mas que se relacionam mais ou menos diretamente a posições de classes em conflito umas em relação às outras”[7]. É dentro dela onde há formações discursivas (uma ou várias). Assim define-se a formação discursiva:

o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc.) a partir de uma posição dada numa conjuntura dada: o ponto essencial aqui é que não se trata apenas da natureza das palavras empregadas, mas também (e sobretudo) de construções nas quais essas palavras se combinam […] as palavras “mudam de sentido” ao passar de uma formação discursiva a outra.[8]

Por sua vez, há um momento de dissimulação na formação discursiva. Ela é responsável por estabelecer a identificação do indivíduo interpelado em sujeito, para que se torne sujeito do discurso (e da formação discursiva específica que lhe interpela), mas, através da noção de interdiscurso, os nós earticulações de mais de uma formação discursiva é exposto: existe, assim a possibilidade de contraidentificação com seu Sujeito. O indivíduo é interpelado em sujeito pela Ideologia em geral no interdiscurso e interpelado em sujeito do discurso pela formação discursiva, onde acontece o processo de sua identificação com o sujeito universal da formação discursiva determinada. Não há etapas separadas, pois sempre-já o indivíduo é/foi interpelado em sujeito pela Ideologia e pelas diferentes formações discursivas dadas.

Suas diferenças

Aqui, será abordada a diferença da noção de formação discursiva enquanto possibilidade do contraditório e a noção de assujeitamento e interpelação são essenciais para entender a diferença entre as propostas de Foucault e Pêcheux.

Foucault desconsidera o conceito de ideologia e trabalha com a formação discursiva constituindo os sujeitos, na medida em que o sujeito é uma posição vazia que pode ser ocupada por indiferentes indivíduos. A formação discursiva comporta, inclusive, posições opostas a respeito do objeto do discurso: ela é, de certa forma, maior que a noção estabelecida por Pêcheux. Maior num sentido de alcance: a noção de formação discursiva de Foucault estabelece a relação entre estratégias diferentes, até mesmo opostas e conflitantes, regidas por um mesmo conjunto de regras de formação.  Pêcheux trabalha com uma noção delimitada pelas formações ideológicas.

Para Pêcheux, a formação discursiva trabalha dentro de uma formação ideológica, ou seja, posições de classe cobertas por formações ideológicas diferentes geram formações discursivas diferentes para objetos similares. A identificação do sujeito com a formação discursiva é elemento central aqui: quando desidentificado, pode ser interpelado por outra formação discursiva e se tornar sujeito de outro discurso.

Por exemplo, numa hipótese de que há um certo discurso político no Brasil, Foucault trabalharia com as diferentes opiniões e formas de se lidar com a política como estratégias diferentes nesta mesma formação discursiva, assim, o político comunista e o político reacionário estariam numa mesma formação discursiva movendo estratégias diferentes. Em Pêcheux, o político comunista é interpelado por uma formação discursiva distinta daquela que interpela o político reacionário. Comunistas e bolsonaristas seriam sujeitos de formações discursivas diferentes que podem até mesmo se comunicar, se entrecruzar, mas ainda assim impossíveis de serem iguais, na medida em que são a concretude linguística advinda de posições de classe diferentes sob formações ideológicas diferentes.

Considerações finais

Apesar de funcionarem de maneira parecida, deve-se compreender que ambas as noções de formação discursiva são distintas principalmente pela presença da noção de ideologia na obra de Pêcheux, herança do trabalho de Althusser, e de sua respectiva dependência das noções de assujeitamento e interpelação.

Foucault absorve as arengas através do entendimento de que a formação discursiva é um sistema de dispersão, um sistema que não tem o compromisso com a unidade, com a coerência. Ele compreende que a formação discursiva é o local da luta, pois é aquilo que permite qualquer forma de atividade num nível discursivo.

Referências

[1] FOUCAULT, Michel. As formações discursivas IN: A Arqueologia do Saber. 8ª edição, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012, p.41-45.

[2] SIQUEIRA, Vinicius. As formações discursivas – Arqueologia do Saber. Colunas Tortas, 2015. Acesso em 11 jul 2020. Disponível em <<https://tinyurl.com/ydxylse3>>.

[3] FOUCAULT, Michel. As formações discursivas… p.42.

[4] FOUCAULT, Michel. As formações discursivas… p.43.

[5] FOUCAULT, Michel. As formações discursivas… p.45.

[6] FOUCAULT, Michel. As formações discursivas… p.47.

[7] HAROCHE, C. PÊCHEUX, M. HENRY, P. A Semântica e o Corte Saussuriano: Língua, Linguagem, Discurso. Linguasagem – Revista Eletrônica de Popularização Científica em Ciências da Linguagem. Acessado em 2 de abril de 2017. Disponível em <<https://tinyurl.com/y9jbvcvv>>.

[8] HAROCHE, C. PÊCHEUX, M. HENRY, P. A Semântica e o Corte Saussuriano: Língua, Linguagem, Discurso.

Cite este artigo:

SIQUEIRA, Vinicius. Formação discursiva em Foucault e Pêcheux: diferenças e semelhanças . Colunas Tortas. Acesso em [DD Mês AAAA]. Disponível em <<https://colunastortas.com.br/formacao-discursiva-em-foucault-e-pecheux-diferencas-e-semelhancas/>>.

2 Comentários

  1. Nos meus estudos sobre a FD de Foucault e de Pêcheux eu me peguei perguntando sobre uma coisa e queria fazer um comentário e espero que faça algum sentido e seja pertinente, o que quero comentar/perguntar.

    Como os textos de ambos os autores são escritos em outra língua que não a nossa, no caso o francês, nos põe numa posição de confiar na tradução. Eu vejo e concordo com as suas palavras no texto a cima. Porém um elemento me causa curiosidade:

    No recorte do conceito de Foucault sobre a FD no final da frase tem: “diremos, por convenção, que se trata de”
    Vou chamar de elementos só de forma rápida.

    O uso dos elementos “convenção” e “trata de” me faz entender que, Foucault não define exatamente o que é a FD e sim, diz: “convêm tratar como uma FD”. Parece-me que não havendo titulo melhor, ele sugere que tratemos desse modo assim, fica fácil de entender ou de classificar. Isso altera o entendimento de formação discursiva em Foucault, ou não?

    Acho que seria interessante observar, caso haja, mais traduções da arquelogia do saber para que pudéssemos nos debruçar sobre esses pormenores das traduções, inclusive…

    Não sei se é pertinente esse meu pensamento…

    1. Olá, Franklin!

      É pertinente sim. Mas acredito que a questão de Foucault é justamente não se sentir na obrigação de conceituar as ferramentas que utiliza. Daí a precaução no enunciado.

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