O modelo de poder da tecelagem – Michel Foucault

O poder pastoral tem entrada na Europa a partir do pensamento oriental, principalmente hebreu, mas também pitagórico. O pensamento grego, por sua vez, redireciona a análise do homem político para o paradigma da tecedura, em que cabe ao político organizar, unir e dar condição para o exercício dos pastorados particulares na cidade: é a tecedura que permite uma administração para favorecer o pastorado do ginasta, do médico, do pedagogo e etc.

Da série “Biopoder“.

Índice

Introdução

Segundo Michel Foucault, a tradição do pensamento grego abordou o modelo de poder baseado na relação pastor-rebanho, no entanto, ela não parece ter “tido alguma importância para os gregos […] não é para os gregos um bom modelo político”[1]. A relação pastor-rebanho só foi reavivada no Ocidente “como matriz de procedimentos de governo dos homens”[2] a partir do(s) cristianismo(s) nascente(s).

Há três séries de textos que fundamentam o entendimento acerca da participação do pastorado na retórica grega: 1) o vocabulário homérico presente nas Ilíadas e Odisseia. O rei que aparece como pastor dos povos essencialmente quando se fala sobre Agamêmnon; 2) textos que se referem à tradição pitagórica em que o pastor é aquele que faz a lei e, na figura do magistrado, é o philánthropos, aquele que ama os homens que lhes são submetidos; 3) no vocabulário político clássico, Foucault encontra duas teses, uma do filósofo alemão Otto Friedrich Gruppe que, em seus Fragmentos de Arquitas (Ueber die Fragmente des Archytas), explica que a metáfora do pastor não está presente entre os gregos, salvo nos locais em que houve influência hebraica. O bom magistrado é como um bom pastor nestas aparições (em que os pitagóricos estão incluídos); a outra tese é de Armand Delatte, filósofo belga que nega o monopólio dos pitagóricos sobre o tema do pastorado e o insere como lugar-comum no vocabulário político da época clássica, o que é tão logo rejeitado por Foucault[3].

Modelo de poder da tecelagem em Foucault

O objetivo deste artigo é opor a metáfora raramente utilizada no pensamento grego[4] do pastor com a metáfora grega da tecelagem, que aparece no Político de Platão e é definida por Foucault como o modelo adotado pelos gregos.


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Três pastorados de Platão

Especificamente em Platão, há três formas que a relação pastor-rebanho aparece em seus textos, sendo que a primeira, presente em Crítias, anuncia o tipo de poder que os próprios deuses teriam sobre os homens no início da criação. Um indício:

Em determinada altura, os deuses dividiram toda a terra em regiões – sem recurso a disputa; nem seria correcto dizer que os deuses ignoravam o que era apropriado a cada um deles, nem tampouco que, apesar de saberem o que era mais adequado para os outros, tentavam, entre si, apropriar-se disso para si próprios por meio de disputas –, e, havendo obtido a região que lhes agradava, de acordo com as sortes da Justiça, povoaram esses lugares. Depois de os terem povoado, criaram-nos como se fossem bens ou animais, à semelhança de pastores com o gado, só que não subjugavam corpos com corpos, como os pastores que orientam os rebanhos à pancada, mas da melhor maneira para lidar com uma criatura que é guiá-la pela proa: tomando, de acordo com o seu próprio desígnio, a alma como um leme, por meio da persuasão, conduziam e governavam deste modo todos os seres mortais.[5]

Os deuses guiam os homens, lhes alimentam, lhes dão seus princípios de conduta baseados numa relação, de certa forma, de cuidado e carinho. Em seguida, a figura do magistrado-pastor aparece nas Leis. Apresentarei, abaixo, citações do livro X e XI, sendo o primeiro dito por Foucault como aquele em que a características de intermediador aparece com mais importância.

No livro X, ao falar sobre a função do magistrado de intermediar tensões de casais:

Se um marido e a esposa, por discórdia gerada por diferença de temperamentos, não conseguem de modo algum entrar em acordo, será conveniente que fiquem sob o constante controle de dez membros do corpos dos guardiões das leis […] É visto ser provável que tais pessoas não tenham um temperamento dócil, os magistrados terão que se esforçar para uni-los a parceiros de temperamento mais dócil e tranqüilo.[6]

Ainda no livro X, ao comentar o castigo do ímpios:

Para aqueles que desobedecem esta será a lei relativa à impiedade: se alguém cometer impiedade quer por palavras quer por ações, aquele que o encontrar em seu caminho defenderá a lei comunicando o fato aos magistrados, e os primeiros magistrados a serem informados conduzirão a pessoa à corte.[7]

Já no livro XI, a respeito de furtos e roubos:

E se alguém acusar outra pessoa de estar de posse de um bem de sua propriedade, seja este grande ou pequeno, e a pessoa acusada admitir a posse do tal objeto, mas negar que pertença ao acusador – neste caso, se o bem em questão tiver sido registrado com os magistrados em conformidade com a lei, o reclamante (que fez a acusação) convocará a pessoa que detém o objeto à presença do magistrado, o qual deverá expô-lo na corte.[8]

Mas se o bem não foi previamente registrado com os magistrados, então

ficará sob a tutela dos três magistrados mais velhos até a época do julgamento; e se o bem em litígio for um animal, aquele que perder o caso em relação a ele pagará aos magistrados por sua manutenção, e os magistrados decidirão o caso dentro de três dias.[9]

O magistrado-pastor não é um senhor, não pertence à cúpula da sociedade, ao mesmo tempo, não está na base, pois trabalha para dar proteção e executar as normas locais de organização. “Ou seja, não é tanto a própria essência da função política, a essência mesma do que é o poder da cidade, que será representada pelo pastor, mas simplesmente uma função lateral”[10].

Por fim, a última série de textos está na República, principalmente no livro I quando Sócrates discute com Trasímaco sobre as características do governante. Seu interlocutor provoca a discussão inserindo a possibilidade do pastor ser justamente aquele que se preocupa com seu rebanho para poder vendê-lo melhor, para aproveitar cada animal num outro fim. Antes desta parte do diálogo, Sócrates havia definido o verdadeiro médico, que funciona como modelo para o entendimento do verdadeiro pastor:

Pensas que, na qualidade de pastor, êle engorda os seus carneiros, não com vistas ao maior bem dêstes, mas, como um guloso que deseja oferecer um festim, com vistas à boa mesa, ou, como um comerciante, com vistas à venda, e não como pastor. Mas a arte do pastor propõe-se apenas a prover ao maior bem do objeto ao qual se aplica, pois que ela própria é suficientemente provida de qualidades que lhe asseguram a excelência, enquanto permanece conforme à sua natureza de arte pastoril. Pela mesma razão, eu supunha há pouco que éramos forçados a convir que todo govêrno, enquanto govêrno, se propõe ùnicamente o maior bem do súdito que governa e que lhe incumbe, trata-se de uma cidade ou de um particular.[11]

Foucault apresenta este momento do diálogo como uma irrupção da influência pitagórica no pensamento grego, de um “lugar comum que não parece ser tão comum”[12]. O verdadeiro pastor é aquele que se dedica ao seu rebanho e não nutre objetivos egoístas perante seus governados.

No Político, a situação muda e Sócrates e seu interlocutor (o Estrangeiro) investem esforços para rejeitar o modelo do pastor em proveito da tecelagem.

Político

O homem político é aquele que detém um conhecimento específico e consegue executar uma arte específica: a arte de comandar, de prescrever. Entretanto, deve haver uma especificidade ao tipo de comando, ao tipo de prescrição que deve ser dada, afinal, adivinhos, mensageiros e arautos também levam ordens, também comandam, mas não ocupam o lugar do Rei. No diálogo, o Estrangeiro:

E então? Confundiremos a arte do rei com a do intérprete, do patrão de barco, do adivinho, do arauto e muitas outras semelhantes, que têm em si, realmente, um poder diretivo? Ou preferes que, prosseguindo a nossa comparação, forjemos, por analogia, um outro nome, pois nenhum existe para designar esse gênero de dirigentes cujo mando deriva deles mesmos? Este característico servirá para a nossa divisão e assim poremos o gênero real na classe autodirigente sem nos preocuparmos com as demais e darmos a elas outro nome qualquer, pois a nossa pesquisa tem por objeto o dirigente e não o oposto do dirigente.[12]

Ou seja, uma ordem que parta de si próprio, que não faça do sujeito seu meio, mas tenha nele seu princípio, porém, ao mesmo tempo, uma ordem que pode ser dividida entre dois diferentes alvos: 1) os seres inanimados, como um arquiteto que impõe sua vontade sobre a madeira e a pedra; 2) os seres animados, que podem ser comandados singularmente (como quando se ordena um caminho a um cavalo) ou em rebanho (local próprio em que se situa o homem político).

Não consideremos o político como criador de indivíduos, tal como o lavrador que cuida do seu boi ou do tratador que cuida de seu cavalo, mas sim como o criador de todos os cavalos ou de todos os bois.[13]

No entanto, na intenção de definir corretamente qual tipo de rebanho o homem político seria responsável, o diálogo caminha para uma divisão interminável entre os animais, desde aqueles com fendas nos pé até os aquáticos e terrestres. “Vai-se ter uma tipologia dos animais, mas não se avançará nada na questão fundamental que é a seguinte: o que é essa arte de prescrever?”[14].

O segundo movimento do diálogo envolve uma mudança de foco: se não é produtivo entender a arte política através da classificação pormenorizada do tipo de rebanho que o homem político seria responsável, cabe ao filósofo descrever no que consiste ser um homem político:

Uma coisa, porém, sabemos, e que ninguém negará, é que isso também se estende ao criador de bois. É ele que alimenta o seu rebanho, é ele o médico e só ele escolhe os coitos: tanto na procriação como no nascimento, é o único parteiro competente.[15]

No entanto, numa cidade, o homem político não comanda sozinho: se ele comanda a cidade, não é ele quem supre as necessidades de alimentação da cidade, nem mesmo é ele quem supre as necessidades terapêuticas, o arranjo das uniões e etc. Os outros comandantes que surgem na execução dessas tarefas são os rivais do político.

Sabes que todos os comerciantes, agricultores, moleiros, inclusive atletas e médicos, protestariam energicamente junto a estes pastores de homens a quem chamamos políticos afirmando que eles é que cuidam da criação dos homens, não apenas dos membros do rebanho, mas também dos governantes?[16]

Desta forma, o raciocínio que se inicia na suposição do magistrado-pastor e na subdivisão de grupos pastoreados, que passa pela definição do homem político e seus rivais, agora caminha ao encontro do pastor divino, aquele que seria o real pastor da humanidade na criação, quando esta vive de fato na felicidade, no mundo de abundância em que o divino pastor, aqui sem rivais, pode exercer seus planos sobre a totalidade:

Nesse tempo, a direção e a vigilância de Deus se exercia, primeiramente, tal como hoje, sobre todo o movimento circular, e essa mesma vigilância ainda existia localmente, pois todas as partes do mundo estavam distribuídas entre os deuses encarregados de governá-las. Aliás, os próprios animais então se dividiam em gêneros e rebanhos sob o bordão de gênios divinos e cada um deles provia, plenamente, todas as necessidades de suas ovelhas não havendo feras selvagens, nem acontecendo que uns, devorassem a outros, nem guerras, sem desentendimentos; e eu poderia contar, ainda, milhares de outros benefícios a esse tempo dispensados ao mundo.[17]

O pastorado perfeito da Divindade evita a necessidade propriamente de política. Esta só começa quando o mundo passa a girar no seu sentido inverso, quando a Divindade se ausenta de suas funções e, ao perceberem isso, os deuses também abandonam seus locais de governo e passam a ajudar a humanidade indiretamente (ensinando as artes, entregando-lhes o fogo), não mais lhes entregando a vida plena de bom grado, não mais numa extensão do pastorado divino. Os homens, neste momento, precisam se relacionar e, assim, fazer política, não obstante os homens encarregados de dirigir não sejam diferentes do dirigidos, não estejam num degrau superior, não sejam de fato pastores.

O modelo da tecelagem

O quarto movimento de análise consiste em inserir o paradigma da tecedura como modelo. Como parte das defesas que se pode ter para a proteção do corpo, o tecelão atua unindo tramas e urdiduras com objetivo de criar um objeto útil à vida, à sobrevivência.

Concordas, por Zeus, meu caro Sócrates, que na falta de melhor, tomemos a tecedura por exemplo? Se assim concordas, tomemos não toda e qualquer tecedura, mas somente a de lã: pode ser que somente ela baste para testemunhar o que nós procuramos.[18]

Com o modelo da tecedura, evita-se uma busca às origens que o pastorado poderia causar, ao mesmo tempo, se torna mais simples entender as diferentes atuações políticas, em diferentes níveis e graus, dentro da cidade. A partir do modelo da tecedura e da divisão entre causas próprias e causas auxiliares, é possível determinar a importância central do tecelão em todo processo que esbarre na arte da vestimenta, da mesma forma, com ele é possível encontrar a importância central do Rei, homem político, no centro de diversas funções auxiliares (como a criação de gado, as artes terapêuticas, os ensinamentos de guerra). “O homem político é um tecelão”, conclui Foucault.

Vai se poder pôr à parte, primeiro, tudo o que constitui as artes adjuvantes da política, isto é, as outras formas segundo as quais podem-se prescrever certas coisas aos homens e que não são propriamente política. De fato, a arte da política é como a arte do tecelão, não uma coisa que se ocupa globalmente de tudo, como o pastor deveria se ocupar de todo o rebanho.[19]

Afinal, a arte do tecelão precisa de outras artes: aquela que fabrica os instrumentos de trabalho, aquela que ensina o pisoteio, o remendão. Todas são “causas auxiliares de cada tecido fabricado”[20]. Seguindo o mesmo raciocínio, a presença do médico, do pedagogo e do ginasta é necessária, são formas de pastorado e formas miúdas de governo, mas seriam inconcebíveis como modelo de governo para o Rei, figura centralizada que, diferentemente dos pastores, une a urdidura com a trama a fim de organizar a cidade.

Mas àquela que dirige a todas, que tem o cuidado das leis e dos assuntos referentes à pólis, e que une todas as coisas num tecido perfeito, apenas lhe faremos justiça escolhendo um nome bastante amplo para a universalidade de sua função e chamando-a a política.[21]

Nasce, então, o modelo de governo, de ação política, o paradigma da tecedura como elemento para se compreender o governo da cidade, um território grande, complexo, recheado de tensões e demandas.

Considerações finais

O simplicidade do pastorado perde seu lugar para a complexidade da arte tecelã. O modelo majoritariamente oriental do pastorado não dá conta dos tortuosos e infinitos caminhos de governo numa cidade. A cidade pede um poder centralizado que governe as diferentes artes, que una as diferentes ações em prol de um objetivo específico que é a ordem da pólis.

É possível encontrar, nesta batalha, a distância da proposta grega acerca da política em relação às propostas pitagórica e hebraica, mas também a negação de um cuidado personalizado: o Rei da monarquia descrita por Platão no Político não é um rei da presença, do cuidado individual, trata-se de um rei da distância, um rei da coordenação, não exatamente da ação global e imediata.


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Referências

[1] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 182.

[2] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 196.

[3] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 182-184.

[4] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 185.

[5] PLATÃO. Crítias IN Timeu-Crítias. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 1ª edição, 2011, p. 221.

[6] PLATÃO. As Leis. São Paulo: Edipro, 1999, p. 459.

[7] PLATÃO. As Leis… p. 430.

[8] PLATÃO. As Leis… p. 438.

[9] PLATÃO. As Leis… p. 439.

[10] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 186.

[11] PLATÃO. A república. São Paulo: Difusão européia do livro, 1º volume, 1965, p. 92.

[12] PLATÃO. Política. 5ª edição, São Paulo: Nova Cultural, 1991, p. 202-203.

[13] PLATÃO. Política… p. 203-204.

[14] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 190.

[15] PLATÃO. Política… p. 212.

[16] PLATÃO. Política… p. 211-212.

[17] PLATÃO. Política… p. 217.

[18] PLATÃO. Política… p. 225.

[19] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 190.

[20] PLATÃO. Política… p. 227.

[21] PLATÃO. Política… p. 254.

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