MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Lisboa: Editora Antígona, 2014, p. 13-16.
Por neoliberalismo entenda-se uma fase da história da Humanidade dominada pelas indústrias do silício e pelas tecnologias digitais. O neoliberalismo é a época ao longo da qual o tempo (curto) se presta a ser convertido em força reprodutiva da forma-dinheiro. Tendo o capital atingido o seu ponto de fuga máximo, desencadeou-se um movimento de escalada.
O neoliberalismo baseia-se na visão segundo a qual «todos os acontecimentos e todas as situações do mundo vivo (podem) deter um valor no mercado» (Joseph Vogl, Le Spectre du capital). Este movimento caracteriza-se também pela produção da indiferença, a codificação paranóica da vida social em normas, categorias e números, assim como por diversas operações de abstracção que pretendem racionalizar o mundo a partir de lógicas empresariais. Assombrado por um seu duplo funesto, o capital, designadamente o financeiro, define-se agora como ilimitado, tanto do ponto de vista dos seus fins como dos seus meios. Já não dita apenas o seu próprio regime de tempo. Uma vez que se encarregou da «fabricação de todas as relações de filiação», procura multiplicar-se «por si mesmo» numa infinita série de dívidas estruturalmente insolúveis (Joseph Vogl, Le Spectre du capital).
Já não há trabalhadores propriamente ditos. Já só existem nómadas do trabalho. Se, ontem, o drama do sujeito era ser explorado pelo capital, hoje, a tragédia da multidão é não poder já ser explorada de todo, é ser objecto de humilhação numa humanidade supérflua, entregue ao abandono, que já nem é útil ao funcionamento do capital. Tem emergido uma forma inédita da vida psíquica apoiada na memória artificial e numérica e em modelos cognitivos provindos das neurociências e da neuroeconomia. Não sendo os automatismos psíquicos e os tecnológicos mais do que duas faces da mesma moeda, vai-se instalando a ficção de um novo ser humano, «empresário de si mesmo», plástico e convocado a reconfigurar-se permanentemente em função dos artefactos que a época oferece.
Este novo homem, sujeito do mercado e da dívida, acha-se um puro produto do acaso natural. Tal espécie de «forma abstracta sempre pronta», como diz Hegel, capaz de se vestir de todos os conteúdos, é típica da civilização da imagem e das novas relações que ela estabelece entre os factos e as ficções (Ver, deste ponto de vista, Francesco Masci, L’Ordre Règne à Berlin). Apenas um entre os outros animais não tem nenhuma essência própria a proteger ou salvaguardar. Não tem, a priori, nenhum limite para a modificação da sua estrutura biológica e genética (Ver Pierre Dardot e Christian Laval, La Nouvelle Raison du monde. Essai sur la société néoliberale). Distingue-se, em vários aspectos, do sujeito trágico e alienado da primeira industrialização. Em primeiro lugar, é um indivíduo aprisionado no seu desejo. A sua felicidade depende quase inteiramente da capacidade de reconstruir publicamente a sua vida íntima e de oferecê-la num mercado como um produto de troca. Sujeito neuroeconómico absorvido pela dupla inquietação exclusiva da sua animalidade (a reprodução biológica da sua vida) e da sua coisificação (usufruir dos bens deste mundo), este homem-coisa, homem-máquina, homem-código e homem-fluxo, procura antes de mais regular a sua conduta em função de normas do mercado, sem hesitar em se auto-instrumentalizar e instrumentalizar outros para optimizar a sua quota-parte de felicidade. Condenado à aprendizagem para toda a vida, à flexibilidade, ao reino do curto prazo, abraça a sua condição de sujeito solúvel e descartável para responder à injunção que lhe é constantemente feita – tornar-se outro.
Acresce a isso o facto de o neoliberalismo representar a época na qual capitalismo e animismo, durante muito tempo obrigados a manter-se afastados, tendem finalmente a fundir-se. Passando doravante o ciclo do capital a ir da imagem para a imagem, a imagem tomou-se um factor de aceleração das energias instintivas. Da potencial fusão do capitalismo e do animismo resultam algumas. consequências determinantes para a nossa futura compreensão da raça e do racismo. Desde logo, os riscos sistemáticos aos quais os escravos negros foram expostos durante o primeiro capitalismo constituem agora, se não a norma, pelo menos o quinhão de todas as humanidades subalternas. Depois, a tendencial universalização da condição negra é simultânea com a instauração de práticas imperiais inéditas que devem tanto às lógicas esclavagistas de captura e de predação como às lógicas coloniais de ocupação e exploração, ou seja, às guerras civis ou razzias de épocas anteriores (Ler Françoise Verges, L’Home prédateur. Ce que nous enseigne l’esclavage sur notre temps). As guerras de ocupação e as guerras anti-insurreccionais visam não apenas capturar e liquidar o inimigo, mas também levar adiante uma distribuição do tempo e uma atomização do espaço. Uma parte do trabalho consiste agora em transformar o real em ficção e a ficção em real; a mobilização militar aérea, a destruição de infra-estruturas, os golpes e feridas são acompanhadas por uma mobilização total através das imagens. Elas fazem agora parte de dispositivos de uma violência que se desejava pura.
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