O nível do enunciado e o nível da formulação em J.-J. Courtine – DROPS #29

COURTINE, Jean-Jacques. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos. São Paulo: EdUFSCAR, 2009, p. 92-96.

Seja (1) um enunciado extraído do corpus da pesquisa:

(1) Nossa política em relação aos cristãos não tem absolutamente nada de uma tática de circunstância, é uma política de princípio.


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Esse enunciado provém de uma sequência discursiva respondendo a CP determinadas: é extraído de uma entrevista concedida ao jornal La Croix, por Georges Marchais, secretário-geral adjunto do PCF (Partido Comunista Francês), e publicada na edição de quinta-feira, 19 de novembro de 1970. Pode-se, pois, relacioná-lo a um sujeito enunciador, que o enuncia em uma situação de enunciação determinada, a partir de um lugar definido no seio de um aparelho e isto em uma conjuntura caracterizada por um certo estado das relações sociais.

Esse enunciado constituirá aqui um ponto de referência, escolhido arbitrariamente, a partir do qual queremos mostrar a possibilidade de um tal enunciado inscrever-se em uma rede de formulações.

Observemos, de início, que esse enunciado toma lugar, entre outras formulações, no intradiscurso da sequência discursiva, no interior da qual ele se produziu: o enunciado (1) figura num contexto intradiscursivo de formulação, ou seja (2):

(2) (Pergunta da entrevista). No fundo, qual é a razão da política dita da mão estendida? Trata-se de uma tática destinada a aumentar sua influência política (…)? O Sr. procura um reforço eleitoral (…)?/(Resposta de G.M.) (1)/ Sobre o que ela repousa? Repousa no fato de que (…).

O enunciado (1) insere-se, pois, no interior da sequência discursiva constituída pelo texto da entrevista num contexto intradiscursivo de formulação com o qual mantém uma relação particular (nesse caso (1) é tomado com efeitos de diálogo, pelo fato de que constitui uma resposta a uma série de perguntas da entrevista…). Trata-se aí de uma relação horizontal, referente a uma descrição do intradiscurso.

Mas (1) tece outros laços com formulações localizáveis no seio do processo discursivo inferente à FD que o domina, nesse caso a FD “comunista”: (1) existe igualmente em uma rede discursiva, ou vertical, de formulações como (3)-(9):

(3) De Lille, um pai de família, católico praticamente, escreveu, em julho de 1936, que tinha dado pouca importância ao primeiro apelo que se podia ficar tentado a acreditar ditado pelo interesse eleitoral. Ele não hesitava em dar seu assentimento e nos encorajar comprovando, em seguida, nossa inflexível perseverança. (M. Thorez, outubro de 1937)

(4) Voltou-se contra nós a censura tão pouco original de manobrar, de enganar, de agir com duplicidade. (M. Thorez, outubro de 1937)

(5) E se, hoje, confirmamos nossa posição de 1937, é que, então, não se tratava, como alguns assim querem fazer crer, de um engano, de uma tática ocasional, mas sim de uma posição política perfeitamente em acordo com nossa doutrina: o marxismo-leninismo. (W. Rochet, 13 de dezembro de 1944)

(6a) Para nós a união, não é uma tática ocasional, uma manobra ligada à conjuntura.

(6b) a luta pela união constitui uma constante, um princípio da política de nosso partido.

(6c) Nosso partido sempre se aplicou com paixão e paciência a unir os operários, a agrupar em torno deles todas as vítimas do poder do dinheiro, todas as forças vivas da nação.

(6d) Propomos às diversas camadas sociais que se unam, não na confusão, mas em uma base precisa. (XXI Congresso do PCF, de 24 de outubro de 1974)

(7) Os cristãos verificam cada vez mais que a cooperação, a luta comum que lhes propomos não é uma armadilha, mas um procedimento de princípio. (Princípio da política do PCF, outubro de 1975)

(8) Dizer isso é destacar quanto a política de união é para nós uma política de princípio. (XXII Congresso do PCF, 4 de fevereiro de 1976)

(9) Não, isto não é pela tática momentânea e na confusão ideológica que procuramos apaixonadamente fazer que se encontrem, lado a lado, todos aqueles que querem a libertação do homem – os comunistas porque é seu ideal socialista, e os cristãos porque é seu ideal evangélico. (G. Marchais, 10 de junho de 1976)

É a uma simples determinação empírica que procedemos para reagrupar as formulações (3)-(9): trata-se de uma série cronológica, extraída de diferentes sequências discursivas agrupadas em corpus. Uma análise puramente intuitiva já permite mostrar um conjunto recorrente de elementos (para os quais os termos grifados podem servir de balizas) que ligam essas formulações umas às outras, de tal modo que cada uma delas aparece como uma reformulação possível de qualquer formulação pertencente à rede. Uma rede de formulações tal como essa parece, então, governada por uma forma ou um princípio geral.

Se considerarmos mais uma vez o enunciado (1) tomado como ponto de referência, devemos indicar que a propriedade que ele manifesta, de figurar como “um nó em uma rede”, não se limita ao conjunto (3)-(9) das formulações pertencentes à FD comunista. As formulações (3)-(9), extraídas de sequências discursivas ilustrando um aspecto regional da FD comunista – o discurso comunista “endereçado aos cristãos” – somente têm existência discursiva na contradição que as opõem ao conjunto das formulações (10)-(16), produzidas em CP heterogêneas às suas, em outras palavras, a partir de posições de classe antagônicas:

(10) O comunismo é intrinsecamente perverso, e não se pode admitir, em nenhum terreno, a colaboração com ele. (Pio XI, 19 de março de 1937)

(11) A voz (de Thorez) se esforçava em vão, ternamente urgente como a da camponesa que chama seus bichinhos: “Filhotes! Filhotes!” Eu me dizia: “Não, é impossível que ele avancem”. (F. Mauriac, Le Figaro, 18 de abril de 1937).

(12) Os cristãos se deixam pegar na armadilha de uma filosofia vulgar da história. (R. Aron, O Grande Cisma)

(13) O católico não pode permanecer ingênuo, nem isolado diante da sedução discreta, da impregnação lenta ou da solicitação organizada do comunismo de hoje. (Mons. Fauche, bispo de Troyes, fevereiro de 1976)

(14) Os católicos são chamados, numerosos são os que se deixam prender. (J. Baudarias, Le Figaro, 10 de junho de 1976)

(15) Haveria uma ave católica a depenar? (Y. Levai, Europa 1, 11 de junho de 1976)

(16) E mesmo se Marchais adjurasse sua fé, isso não seria uma das astúcias que Lenin aconselhava precisamente? (G. Senchet, L’Aurore, 11 de junho de 1976)

Os termos grifados em (10)-(16) novamente fornecem, uma vez mais, marcas intuitivas permitindo, na rede de formulações, extrair a repetibilidade de certos elementos, ao mesmo tempo que um conjunto de variações; as duas séries conhecem um desenvolvimento paralelo que pode se perceber a partir da recorrência contraditória, no interior do processo discursivo inerente a cada FD, de elementos de saber opostos e que permanecem estáveis em seu antagonismo, que um enunciado como (17) poderia condensar de maneira aproximativa:

(17) A união com os cristãos não é uma artimanha, é um princípio da política dos comunistas vs A política dos comunistas é uma armadilha na qual os cristão não se devem deixar prender.

A formulação (17) constitui uma aproximação dessas “formas indefinidamente repetíveis” podendo ocasionar “as enunciações mais dispersas” que mostramos nas séries (3)-(9) e (10)-(16): isso equivale a dizer que se trata, nos termos da Arqueologia, de uma relação contraditória entre dois enunciados. E é aí que se situa uma dificuldade maior na definição do enunciado: este termo pode designar, na problemática de Foucault, ao mesmo tempo uma expressão como (17) e uma formulação como (1). Os dois níveis de descrição de uma FD, distinguidos na relação enunciado/enunciação, estão confundidos na definição do enunciado a partir de seu domínio associado.

A definição do enunciado não é, pois, fixada; essa indecisão deve ser relacionada à concepção descrita anteriormente, de uma posição de sujeito como forma vazia, indiferentemente preenchida por locutores intercambiáveis. Veremos aí os efeitos de retorno das questões cuja elisão a Arqueologia produz: aquelas da relação do discurso com a ideologia e da relação do discurso com a língua. O sujeito do discurso é, de fato, ao mesmo tempo sujeito ideológico, na sua relação com o sujeito do saber que assegura o enunciado; e sujeito falante, por poder enunciar os elementos desse saber na formulação. Parece-nos, assim, crucial, na análise das FD, distinguir o nível do enunciado e da formulação, assim como produzir sua articulação, na qual se constituem o discurso e o sujeito.

 – Jean-Jacques Courtine.

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