Da série “A Arqueologia do Saber“.
A história das ideias, continua Foucault em sua tarefa de se diferenciar da disciplina tradicional, separa momentos em duas colunas: os originais de um lado e os regulares do outro.
Ela classifica seus elementos como antigos ou novos, repetidos ou inéditos. São dois tipos de formulações que se distinguem na história das ideias,
aquelas valorizadas e relativamente pouco numerosas, que aparecem pela primeira vez, que não têm antecedentes semelhantes, que vão eventualmente servir de modelo às outras e que, nesse caso, merecem passar por criações; e aquelas banais, cotidianas, maciças, que não são responsáveis por si mesmas e que derivam, às vezes, para repeti-lo textualmente, do que já foi dito[1].
Para realizar este tipo de separação, a história das ideias precisa descrever dois tipos de conformações: no primeiro caso, ela descreve uma sucessão de acontecimentos de pensamento, e o analista, por sua vez, irá reconstituir a emergência das verdades ou das formas; no segundo, descreve camadas ininterruptas de efeitos, local em que o arqueólogo deve remeter o discurso a sua relatividade.
A maneira específica da história das ideias de estabelecer a oposição acima indicada apresenta problemas para caracterizar a originalidade. São duas questões metodológicas de difícil resolução: a da semelhança e a da sequência.
Afinal, como é possível indicar a sequência de autores até se chegar num autor específico? A linha do tempo e a delimitação espacial seriam os determinantes, além do próprio discurso expresso pelos autores? Foucault não considera que a precedência seja um dado irredutível e primeiro,
Será na mesma série e segundo o mesmo modo de anterioridade que Saussure é “precedido” por Pierce e sua semiótica, por Arnauld e Lancelot com a análise clássica do signo, pelos estoicos e a teoria do significante? A precedência não é um dado irredutível e primeiro: não pode desempenhar o papel de medida absoluta que permitiria avaliar qualquer discurso e distinguir o original do repetitivo[2].
Em relação à semelhança fica mais claro ainda a dificuldade de aplicá-la corretamente. Como se pode dizer que algo é semelhante a outra coisa? Como se pode afirmar que um enunciado é semelhante a outro? Qual é o critério que se deve utilizar para afirmar que um enunciado já foi dito?
Não há como falar que uma frase se parece com outra somente por atender às mesmas regras gramaticais; ou que uma proposição é idêntica a outra por atender às mesmas regras lógicas. No nível dos enunciados, não é simples demonstrar uma semelhança. A semelhança entre dois autores, entre dois conceitos, não é evidente em si, mas é sim uma analogia que nasce como efeito do campo discursivo em que a delimitamos.
É por isso que indagar o valor de originalidade de um texto é mais ou menos irrelevante. Só serve quando traçamos uma série muito bem delimitada, em campos discursivos suficientemente homogêneos. Isso porque, a arqueologia não se importa com sucessões cronológicas ou semelhanças aparentes, já que ela se dirige às práticas discursivas a que os fatos que se sucedem precisam se referir.
A arqueologia não traça hierarquias de valor. Seu objetivo é estabelecer a regularidade dos enunciados, “designa, para qualquer performance verbal (extraordinária ou banal, única em seu gênero ou mil vezes repetida), o conjunto das condições nas quais se exerce a função enunciativa que assegura e define sua existência”[3].
As invenções não são do interesse do arqueólogo, que não se dedica a encontrar uma lista sucessiva de fundadores e marcos simbólicos de uma teoria, mas sim a identificar a regularidade de uma prática discursiva que é exercida pelos sucessores (pequenos ou vistoso) e até mesmo pelos predecessores dos autores analisados. Essa regularidade dá conta desde o original até o repetido, sem perder nenhuma enunciado do discurso.
Foucault adianta os possíveis rumos de uma pesquisa das regularidades enunciativas, que pode começar com:
1 – Apesar de uma regularidade discursiva descrever um conjunto de enunciados sem que se possa necessariamente identificar os que sejam novos e aqueles que são velhos, os campos discursivos descritos não são iguais. Em Darwin e Tournefort nós temos duas regularidades discursivas pertencentes ao mesmo campo discursivo (que expõe uma mesma formação discursiva, portanto).
A arqueologia, como já dito, não se interessa por nada além da homogeneidade enunciativa. É preciso, afirma Foucault, diferenciá-la de qualquer tradutibilidade do texto, de qualquer analogia linguística que o texto carrega com outros.
É a partir deste esforço que a originalidade se torna algo mais difícil de ser encontrada. Afinal, a arqueologia desenha um número de desligamentos e articulações entre enunciados, sem dar margem para aceitar que a formulação de um princípio ou a definição de um projeto inaugure uma nova fase da história do discurso.
2 – Identificar as hierarquias internas do discurso é também uma tarefa do arqueólogo, que não deve aceitar a descrição de um discurso horizontal. E isso só pode ser encontrado a partir da análise das relações entre os enunciados. Não é possível identificar como um discurso se comporta a partir da redução de um enunciado específico até seu ponto mínimo, o enunciado já é irredutível.
Por isso, “as regras jamais se apresentam nas formulação, atravessam-nas e constituem para elas um espaço de coexistência”[4].
É possível, neste trabalho, descrever uma “árvore de derivação enunciativa”, colocando em sua base, explica Foucault, “os enunciados que empregam as regras de formação em sua extensão mais ampla; no alto, e depois de um certo número de ramificações, os enunciados que empregam a mesma regularidade, porém mais sutilmente articulada, mais bem delimitada e localizada em sua extensão”[5].
O objetivo do filósofo, com esta formulação, é descrever uma árvore de derivação, em que fosse possível encontrar os enunciados que ele chama de “reitores”, que se referem às estruturas observáveis do discurso, ao campo dos objetos mais próximos da superfície, que conseguem fornecer mais possibilidades para a articulação de enunciados; enquanto nas ramificações, encontraria os enunciados específicos, que não emergem em outros pontos do discurso.
Mas as ramificações não são deduções axiológicas dos enunciados reitores, pelo contrário, devem (e podem) ser descritas em sua autonomia e sem a referência à base da árvore de derivação enunciativa. A análise da formação discursiva, assim, não pode ser rebaixada a uma “periodização totalitária”, como se todos pensassem de um jeito determinado em um dado momento.
Pelo contrário, ao lidar com a raridade dos enunciados, com as árvores de derivação enunciativa, ela trata da diversidade que um discurso possibilita aos sujeitos que, através dele, precisam se expressar. A prática discursiva, portanto, não é uma camisa de força, mas sim o exercício de um sistema regular que não toma o objeto para se mostrar, porém vive em seus interstícios.
Referências
[1] FOUCAULT, Michel. O Original e o Regular IN: A Arqueologia do Saber. 8ª edição, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012, p.172.
[2] FOUCAULT, Michel. O Original e o Regular… p.174.
[3] FOUCAULT, Michel. O Original e o Regular… p.176.
[4] FOUCAULT, Michel. O Original e o Regular… p.179.
[5] FOUCAULT, Michel. O Original e o Regular… p.179.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.
Gostei desse seu post. Gostaria de saber como referenciá-lo.