O povo – Giorgio Agamben

Giorgio Agamben aprofunda a análise foucaultiana acerca do povo, a inserindo num contexto de crítica ao estado de exceção e à própria possibilidade de gerá-lo através da prática da soberania. O povo, na análise do filósofo italiano, ocupa um espaço específico na constituição da esfera política ocidental: é um subconjunto que não pode ser incluído no conjunto em que já pertence e, ao mesmo tempo, não pode pertencer ao conjunto em que está indissociavelmente incluído.

 Índice

Introdução

O povo é a totalidade e, ao mesmo tempo, a parte inferior. É o todo que define o corpo social e político, mas, na mesma medida, é a parte excluída deste corpo social. Trata-se de um termo que designa tanto aquilo que está dentro como aquilo que pertence justamente pela exclusão.

Segundo Giorgio Agamben, a modernidade é a época em que uma fratura específica no campo político busca ser superada. Esta fratura pode ser vista justamente quando se analisa o conceito de povo e sua função discursiva na contemporaneidade. O presente artigo tem como objetivo expor as elaborações de Agamben acerca do povo presentes em Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua.

Como entender o biopoder em Michel Foucault

A população

Antes de abordar a noção de povo conforme os desenvolvimentos de Agamben, é necessário retomar a noção de população e povo para Michel Foucault, que fornece bases ao filósofo italiano. Para Foucault, na maior parte da história política do Ocidente, a população foi considerada um preenchimento numérico em um território e os problemas relacionados a ela eram reduzidos aos fatores da depopulação. População se definia negativamente após o entendimento da depopulação:

O que se chamava de população era essencialmente o contrário da depopulação. Ou seja, entendia-se por “população” o movimento pelo qual, após algum grande desastre, fosse ele a epidemia, a guerra ou a escassez alimentar, depois de um desses grandes momentos dramáticos em que os homens morriam numa rapidez, numa intensidade espetacular, o movimento pelo qual se repovoava um território que tinha se tornado deserto.[1]

O problema da desertificação e da necessidade de povoamento foi precedente ao problema da força produtiva: a população, mesmo que não vista somente como aquilo que surge a partir de medidas de repovoamento, ainda é entendida como uma coletânea de indivíduos que precisam ser submetidos a relações disciplinares de poder para servir ao soberano. No século XVII, entende-se que a população é a base tanto do poderio militar quanto da riqueza do Estado e, para isso, cria-se uma série de leis, decretos e regulamentos que visam submeter os, então, súditos aos objetivos da monarquia vigente.

A população não tem, até aqui, uma definição positiva explícita. Ela é entendida negativamente: ou como o resultado de uma campanha pós-depopulação, ou como elemento a ser moldado para servir. A população é entendida como uma soma de súditos de direito a partir de um olhar jurídico-político. Mas esse tipo de olhar e a prática de governo que lhe seguia se modificam no século XVIII:

Ora, acredito que, com os fisiocratas – de uma maneira geral, com os economistas do século XVIII -, a população vai parar de aparecer como uma coleção de súditos de direito, como a coleção de vontades submetidas que devem obedecer à vontade do soberano por intermédio de regulamentos, leis, decretos, etc. Ela vai ser considerada um conjunto de processos que é preciso administrar no que têm de natural e a partir do que têm de natural.[2]

E uma visão jurídico-política é substituída por um olhar biopolítico, aplicando-se sobre ela certa governamentalidade que não pode ser reduzida à aplicação da norma do poder soberano. A população passa a ser entendia como:

  1. Corpo biopolítico, resultado de uma série de atividades que podem parecer distantes dos indivíduos quando vistos separadamente: comércio, impostos, clima, território, leis e valores morais são exemplos de elementos que influenciam os movimentos da população. Esta deixa de ser entendida como coleção de súditos de direito e passa a ser observada como conjunto de sujeitos desejantes que podem negar a ordem do representante máximo da política do Estado.
  2. Corpo natural, na medida em que é feita de seres humanos que são iguais pois pertencem à mesma espécie. Esta observação parece não ser relevante, mas é de suma importância: a consideração jurídico-política que embasa a imposição do poder soberano sobre a população é negada justamente quando se adiciona o caráter natural deste corpo social. Ao ser natural, ao ser entendida como conjunto difuso de seres desejantes que, ainda que múltiplos, são fixos em sua espécie, a população pode ser entendida como alvo de ações indiretas que afetem globalmente seus movimentos. É o entendimento de que o corpo humano não é só corpo individual, mas é também corpo-espécie, que permite a utilização de técnicas estatísticas para administração dos desejos difusos, observando os efeitos práticas de políticas adotadas sobre a população.
  3. Público, que é a face da população quando vista a partir das manifestações em relação aos gostos, hábitos, preconceitos e exigências. A entrada da população na esfera pública nasce no século XVIII, com o entendimento de que a condução dos desejos da população seria de primeira importância para estabelecer uma governamentalidade eficiente.

Deste ponto de vista, a população passa a ser um conjunto de indivíduos desejantes que precisam ser conduzidos por regulamentações que mantenham uma sensação de liberdade, de liberalização, enquanto encaminham as escolhas dos membros da população aos seus desígnios. Cada indivíduo é entendido, desta maneira, como membro da população. Cabe ao Estado biopolítico administrar a população para que ela viva mais, fazê-la viver, e cabe aos indivíduos da população não violar as regulamentações de Estado. O bom andamento de uma sociedade biopolítica é diretamente relacionado ao entendimento de que cada indivíduo é um membro, não um súdito a ser disciplinado pela violência.

Entretanto, a parte da população que não se adequa às normas, que não consegue seguir livremente a condução exercida pelas políticas estatais, é compelida à exclusão, é deixada para morrer. Trata-se do povo, que pode ser deixado para morrer ou pode, também, ser atacado até a morte a partir do racismo de Estado.


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O povo

O povo é o pedaço não disciplinado e não normatizado da população. É uma fração que não se enquadra nas tentativas de normação do poder disciplinar e, ao mesmo tempo, não atende à normalização do biopoder.

Tudo isso prova que essas pessoas não pertencem realmente à população. O que são elas? Pois bem, são o povo. O povo é aquele que se comporta em relação a essa gestão da população, no próprio nível da população, como se não fizesse parte desse sujeito-objeto coletivo que é a população, como se se pusesse fora dela, e, por conseguinte, é ele que, como povo que se recusa a ser população, vai desajustar o sistema.[3]

O povo é aquele conjunto de indivíduos que, num momento de excassez de alimentos, rouba cargas destinadas a regiões com planejamento adequado para ser atendida, com liberalização de mercado para que os alimentos não cheguem a preços exorbitantes. O povo faz com que a regulamentação biopolítica seja combatida por meio da violência. Trata-se de um conjunto que, enquanto membro da população, coloca-se contra ela e fora dela.

Mas Foucault salienta que o povo não é oposto em relação à população. Não se trata de entender a população como um conjunto coordenado e harmonioso enquanto o povo como conjunto rebelde e difuso. A chave para compreender o povo é a da exclusão: o povo é excluído ou deve ser excluído.

Se for excluído, deve ser disciplinado; se for incorrigível, deve ser excluído e, no limite, eliminado. Entretanto, é necessário salientar, o biopoder busca sempre a administração do povo, busca governá-lo. Caberá ao racismo de Estado eliminar o povo incorrigível.

Povo e povo

Giorgio Agamben estabelece uma análise pormenorizada do povo, revelando um estado duplo desta noção na política moderna. O povo, ao mesmo tempo, designa o corpo político e a classe excluída, “um mesmo termo denomina, assim, tanto o sujeito político constitutivo quanto a classe que, de fato, se não de direito, é excluída da política”[4]. Segundo Agamben:

O italiano popolo, o francês peuple, o espanhol pueblo (assim como os adjetivos correspondentes “popolare”, “populaire”, “popular” e o latim tardio populus e popularis, de que todos derivam) designam, tanto na língua comum como no léxico política seja o complexo dos cidadãos como corpo político unitário (como em “popolo italiano” ou em “giudice popolare”), seja os pertencentes às classes inferiores (como em homme du peuple, rione popolare, front populaire).[5]

Povo, da forma como utilizado na política ocidental, não se refere a um conceito unitário: refere-se, assim, a uma relação dialética entre dois polos, sendo que o primeiro polo se trata do Povo, ou seja, do corpo político integral, conjunto unitário e totalizante; e o segundo é o povo, subconjunto do corpo político, mas sem a característica da unidade, sendo constituído pela fragmentação do conjunto de corpos excluídos e carentes.

Giorgio Agamben compreende que essa diferença presente na palavra povo e suas variações conceituais é uma manifestação de certa cisão fundamental na constituição do corpo político, em que a vida nua e a vida política são expressas: o Povo, representante da vida política, da bíos; e o povo, representante da vida nua, de zoé. Esta cisão representa a estrutura política originária que é a passagem da vida nua à vida política a partir de uma dupla exclusão que gera o homo sacer, o sujeito abandonado na vida nua em um contexto preenchido pela esfera política da vida em sociedade. O povo

é aquilo que não pode ser incluído no todo do qual faz parte, e não pode pertencer ao conjunto no qual já está desde sempre incluído. Daí as contradições e as aporias às quais ele dá llugar toda vez que é evocado e posto em jogo na cena política.[6]

Esta figura fundamental na estrutura política, a figura do incluído pela exclusão, é presente inclusive na teoria marxista, afirma Agamben, em que a luta de classes representa a cisão fundamental da classe que pertence ao todo político, mas que, por ser excluída, só pode retomar uma unidade política e social através da revolução (da sociedade de classes ou do reino messiânico, conforme ironiza Agamben) em que “Povo e povo coincidirão e não haverá mais, propriamente, povo algum”[7].

Agamben salienta que o povo, o conjunto pertencente ao bando soberano da vida nua, nunca foi tão relevante para a reflexão política ocidental, até a passagem política promovida na modernidade que tem como marco a revolução francesa. Foi a partir daí que o povo se tornou depositário único da soberania e, ao mesmo tempo, passou a ser embaraçoso sua presença miserável e excluída, tornando-se intolerável a manutenção de sua exclusão.

Ou seja, com a emergência das revoluções que inserem uma democracia (supostamente) ampla como paradigma político, a miséria e a exclusão deixam de ser conceitos pertencentes somente às esferas econômicas e sociais “mas são categorias eminentemente políticas (todo o economicismo e o ‘socialismo’ que parecem dominar a política moderna têm, na realidade, um significado político, aliás, biopolítico)”[8]. Isso gera uma reflexão estrutural sobre a própria esfera política e seus movimentos na modernidade:

Nesta perspectiva, o nosso tempo nada mais é que a tentativa – implacável e metódica – de preencher a fissura que divide o povo, eliminando radicalmente o povo dos excluídos. Esta tentativa mancomuna, segundo modalidades e horizontes diversos, direita e esquerda, países capitalistas e países socialistas, unidos no projeto – em última análise vão, mas que se realizou parcialmente em todos os países industrializados – de produzir um povo uno e indiviso.[9]

E, como complemento, é possível compreender a obsessão pelo desenvolvimento presente na política de nosso tempo: trata-se da tentativa implacável de, a partir de um projeto biopolítico, produzir um povo sem a fissura fundamental entre o conjunto unitário e o conjunto dos excluídos.

Ao mesmo tempo, exemplificando quão fundamental é essa cisão, Agamben também insere o projeto biopolítico nazista como exemplificação da tentativa de eliminar o povo e transformar a realidade política em uma unidade sem a figura do excluído. Diferentemente dos projetos de desenvolvimento, o projeto nazista o fez a partir da câmara de gás. Trata-se de uma diferença também fundamental, mas ainda parte de um projeto de sociedade moderno e biopolítico.

A fratura que se acreditava ter preenchido eliminando o povo (os hebreus, que são o seu símbolo) se reproduz assim novamente, transformando o inteiro povo alemão em vida sacra votada à morte e em corpo biológico que deve ser infinitamente purificado (eliminando doentes mentais e portadores de doenças hereditárias). E de modo inverso, mas análogo, o projeto democrático-capitalista de eliminar as classes pobres, hoje em dia, através do desenvolvimento, não somente reproduz em seu próprio interior o povo dos excluídos, mas transforma em vida nua todas as populações do Terceiro Mundo.[10]

Por fim, fica patente que somente um tipo de política que dê conta desta cisão poderá por fim ao conflito latente em todas as sociedades ocidentais e ocidentalizadas modernas que coloca em choque um Povo enquanto sujeito constituído da esfera política e um povo, parte excluída deste grande sujeito político.

Considerações finais

Desta forma, entende-se que Agamben aprofunda a análise foucaultiana acerca do povo, a inserindo num contexto de crítica ao estado de exceção e à própria possibilidade de gerá-lo através da prática da soberania. O povo, na análise do filósofo italiano, ocupa um espaço específico na constituição da esfera política ocidental: é um subconjunto que não pode ser incluído no conjunto em que já pertence e, ao mesmo tempo, não pode pertencer ao conjunto em que está indissociavelmente incluído.

Uma dupla exclusão que simboliza o pertencimento através da exclusão: o povo, então, é feito para ser excluído. Eliminá-lo é a própria eliminação da esfera política da maneira como existe na realidade concreta presente.

Como entender o biopoder em Michel Foucault

Referências

[1] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 88.

[2] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p.92.

[3] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População: curso dado no Collège de France (1977-1978)… p. 57.

[4] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 183.

[5] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 183.

[6] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 184.

[7] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 185.

[8] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 185.

[9] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 185.

[10] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 186.

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