O uso da ideologia em Michel Foucault – Maria do Rosário Gregolin

A ideologia, enquanto falseamento da realidade ou elemento diretamente ligado a um sujeito, é substituída por um entendimento anterior à consciência, em que o sujeito é fabricado, tem seu corpo marcado, por configurações de poder e tipos de saber. No nível do corpo, o poder cria condutas, no nível do sujeito, o saber entrega os enunciados possíveis para a enunciação.

É sabido que Michel Foucault observa problemas no uso do conceito de ideologia para realizar análises discursivas. A rejeição da noção de ideologia é explicada tanto em entrevistas (FOUCAULT, 1998) como em seu livro A Arqueologia do Saber (FOUCAULT, 2008).

três críticas centrais no uso do conceito que podem resumidas da seguinte forma:

  1. Em sua oposição com a verdade;
  2. Em sua relação com o sujeito;
  3. Em sua subalternidade em relação à estrutura econômica.

Maria do Rosário Gregolin (2022) salienta cada um destes pontos. O primeiro, em relação à verdade, ela situa na oposição com o real que a ideologia encobriria e inverteria, pois “para ele, é complicado falar sobre o real que seria invertido pela ideologia”, na medida em que todo o ferramental teórico de Michel Foucault aponta para uma realidade que é sempre construída pelas próprias ferramentas de sua descrição.

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A realidade é saber e poder, o que significa dizer que a realidade é um produto sempre histórico, econômico, político, linguístico, cultural e etc. A realidade, assim, pode de fato ser diferente para diferentes grupos sociais sem necessariamente ser situada num centro abstrato dominante independentemente do objetivo que se está observando. Ou seja, o que traduz a verdade de um fenômeno são as próprias práticas que constituem este fenômeno. A verdade do fenômeno é uma fabricação temporal, momentânea e sempre em disputa.

Desta forma, situar a ideologia como aquilo que esconde um real, uma verdade, seria utilizar ferramentas no nível da teoria para fazer valer uma determinada interpretação e construção da própria realidade. O conceito de ideologia, então, tem valor estratégico numa luta pela verdade, mas não no interior do ferramental teórico do autor francês. Não se trata, então, de uma ideologia que encobre a verdade, mas da produção de uma verdade que estaria sendo encoberta por uma ideologia também produzida por esta verdade.

Já o segundo ponto, em relação ao sujeito, está na

ligação da ideologia com o sujeito, na medida em que Michel Foucault problematiza a ideia de sujeito. Com diz Althusser, a ideologia interpela indivíduos em sujeito, cria sujeitos. Por ser um conceito que se tornou uma vulgata no momento histórico de Foucault, ele visa contornar a noção a partir de uma análise dos micropoderes (GREGOLIN, 2022).

Isso porque, para Michel Foucault, sua análise está situada no corpo dos sujeitos, na constituição do próprio corpo, na criação da própria conduta e não na consciência que escolhe uma ou outra conduta. “Explicar o plano das ideias, em Michel Foucault, é lidar com o plano do poder e subjetividades. As representações sobre os sujeitos, sobre as experiências históricas que nascem com os processos onde estão os micropoderes” (GREGOLIN, 2022), ou seja, explicar o plano ideológico é, no fundo, explicar como sujeitos são constituídos pelos discursos que os atravessam e pelos tipos de poder que os fabricam.

O lugar teórico de análise de Michel Foucault é anterior ao falseamento da realidade, mas se situa na própria constituição desta realidade que poderá ser descrita como falseada por uma ideologia. Ou seja, a análise das relações entre saber e poder está num nível teórico anterior ao da ideologia, possibilitando que se observe o uso estratégico do conceito no interior das lutas.

Acerca do terceiro ponto,

As lutas não são só lutas econômicas. Quando Marx propôs o conceito de ideologia e toda a ideia de infraestrutura e super estrutura, ele estava situando a análise sobre a estrutura econômica, em que a infraestrutura é a base econômica de uma sociedade que determina a sua superestrutura, lugar onde a ideologia está trabalhando para inverter o real (GREGOLIN, 2022).

Já a crítica foucaultiana vai em direção a essa centralização da estrutura econômica:

A grande crítica de Foucault é sobre a centralização das teorias marxistas na questão econômica num contexto de sociedades modernas com uma grande heterogeneidade de lutas. Existem, evidentemente, as lutas econômicas, mas também há lutas de gênero, em torno da nacionalidade, em torno das identidades, lutas raciais e etc. Por isso, centralizar a análise na estrutura econômica não era suficiente para explicar a sociedade dos anos 60 (GREGOLIN, 2022).

A exposição da professora Gregolin é interessante na medida em que toca o ponto do poder e da subjetividade. É necessário relembrar que o dispositivo, para Michel Foucault, é um cruzamento entre saber-poder-subjetividade, ou seja, trata-se de um nó entre relações discursivas e não discursivas que produzem subjetividade.

É possível considerar, a partir da exposição de Gregolin, que o dispositivo é uma noção eficiente para compreender questões que geralmente são explicadas a partir do conceito de ideologia.

Sendo assim, a ideologia, enquanto falseamento da realidade ou elemento diretamente ligado a um sujeito, é substituída por um entendimento anterior à consciência, em que o sujeito é fabricado, tem seu corpo marcado, por configurações de poder e tipos de saber. No nível do corpo, o poder cria condutas; no nível do sujeito, o saber entrega os enunciados possíveis para a enunciação.

Ambos os elementos, tanto saber como poder, estão numa base de existência do sujeito. São suas condições de possibilidade. O objetivo da análise foucaultiana não é explicar uma opinião específica de um sujeito sobre um assunto ou outro de sua experiência, mas descrever as condições de possibilidade das manifestações concretas que um sujeito, determinado historicamente, pode expressar.

Referências

FOUCAULT, Michel. Verdade e poder IN Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 13ª edição, 1998.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

GREGOLIN, M. R. Análise do discurso com Michel Foucault: poder, verdades, subjetividades. Canal no YouTube do Grupo de Estudos Discursivos – GED, 2022. Acesso em 16 de outubro de 2024. Disponível em <<https://www.youtube.com/watch?v=DvntJwBmaa8>>.

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