Da série “Os loucos de Foucault“.
Índice
Introdução
O jardim zoológico é definido pelo dicionário como uma “grande área onde diferentes tipos de animais, de várias partes do mundo, são mantidos para estudo ou visitação pública”[1]. Um local em que animais selvagens (portanto, aqueles que não foram domesticados) são exibidos ao público ou simplesmente vigiados, mantidos.
A justificativa para sua existência pode ser observada na comunicação do PET Zootecnia (Programa de Educação Tutorial) da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos da Universidade de São Paulo que expõe uma suposta importância do ponto de vista do conhecimento científico e da manutenção das espécies: “zoológicos são indispensáveis para a manutenção da biodiversidade, possibilitando a sobrevivência de populações inteiras a partir de poucos exemplares, com base no conhecimento técnico desenvolvido para cada espécie”[2]. Em segundo plano, o zoológico também permitiria alguma “conscientização” acerca da preservação das espécies.
Embora os zoológicos não sejam substitutos à preservação das espécies in loco, sua existência permite a sensibilização da população quanto a importância da conservação e disseminação de conhecimento para melhorar cada vez mais a qualidade de vida dos animais em cativeiro, possibilitando futura reintrodução de exemplares quando necessário.[3]
O objetivo desta introdução não é estabelecer uma crítica aos jardins zoológicos do ponto de vista abolicionista animal, tampouco haverá preocupação em demonstrar que zoológicos funcionam, basicamente, como empresas e que, atualmente, já existem formas abolicionistas de manter espécies como os santuários. A tentativa é de inserir a definição de jardim zoológico a partir de uma perspectiva crítica que, por sua vez, será de grande valia para compreender o fenômeno do zoológico dos loucos, descrito por Michel Foucault na História da Loucura na Idade Clássica.
O zoológico
O texto publicado no site do PET definitivamente não tem qualquer preocupação com a sobrevivência de fato dos animais, mas única exclusivamente com a manutenção da espécie, sem exceção também ao argumento irrelevante que preza pela conscientização – como se uma prisão fosse um bom modelo de entendimento sobre a vida animal.
Através do texto do PET, é possível entender alguns elementos fundamentais:
- O zoológico é um local de observação. Não há sequer a menção de os zoológicos se orientam pelo aumento da lucratividade, ou seja, além de um local de observação, um local de reprodução de capital;
- O sujeito que observa pode ser um pesquisador: os animais são seu objeto de observação apurada e metódica. Observações são trocadas, informações são verificadas e o próprio conhecimento zoológico se reproduz e se aprimora;
- O sujeito que observa pode ser um cliente, que será impactado pelos animais lá presos e será, assim, conscientizado. Não irei discutir o que seria a conscientização;
- O animal, por sua vez, é um objeto a ser observado. Tudo se passa como se a manutenção das espécies fosse um fim em si, mas a localização dos animais enquanto objetos do zoológico, objetos a serem observados pelo sujeito pesquisador (aquele que se movimenta na esfera científica, acadêmica) e pelo sujeito cliente (na esfera econômica), os articula numa dupla dependência: a satisfação do olhar de ambos os sujeitos acima mencionados. A satisfação de ambos, por sua vez, não nega a afirmação de que a manutenção das espécies teria um fim em si, mas demonstra materialmente que a apresentação desinteressada é o modo de enunciação da função do jardim zoológico.
- A partir do desinteresse explícito no texto, o interesse econômico fica implícito, já o interesse científico é justificado por si só – a ciência parece ter valor em si. Em nenhum momento o animal parece ser sujeito. O animal é, nesta descrição do PET, um objeto (e o termo objeto é importantíssimo) animado.
Os pontos acima serão fundamentais para entender a emergência do zoológico dos loucos na Idade Clássica. Nos interessa menos a questão animal neste artigo do que a experiência clássica da loucura que ocasionou a emergência do louco que pode e deve ser visto: o louco que, por alguns trocados, é colocado num simulacro de circo para apresentações singulares.
Exibir os loucos
A exibição de loucos não era uma exceção[4]:
- Na Idade Média, algumas Narrtürmer da Alemanha continham janelas gradeadas para a observação dos loucos pelos que passavam pela cidade;
- Em 1815, o hospital de Bethleem, na Inglaterra, exibia os furiosos por um penny e contabilizava a soma de 400 libras por ano. Isso significa que o hospital tinha 96 mil visitas a cada período.
- Já na França, o passeio por Bicêtre e o espetáculo exibido pelos insanos que lá estavam era o grande programa dominical da burguesia.
Percebe-se o caráter institucional que a exposição dos loucos tomou ao longo do século XVIII e início do século XIX. Este caráter formava uma rede de postos de trabalho em que o domador de loucos, enquanto função, era presente:
Alguns carcereiros tinham grande reputação pela habilidade com que faziam os loucos executarem passos de dança e acrobacias, ao preço de algumas chicotadas. A única atenuação que se encontrou ao final do século XVIII foi de atribuir aos insanos o cuidado de mostrar os loucos, como se coubesse à próprio loucura prestar testemunho com relação àquilo que ela era.[5]
No amadurecer da sociedade disciplinar, o louco dócil já poderia, ele próprio, guiar e conduzir outros loucos. No entanto, é importante notar que, neste momento, o corte entre desatinados e insanos reaparece: desatinados como aqueles que estão no internamento por mostrarem de maneira escandalosa os piores desagrados da moral burguesa, enquanto os insanos como aqueles que são furiosos, alucinados, incontroláveis (daí a perícia do domador) – estes cujo escândalo é exibido.
O desatino se ocultava na discrição das casas de internamento, mas a loucura continua a estar presente no teatro do mundo. Com mais brilho que nunca. No Império, ir-se-á mesmo mais longe do que tinham ido a Idade Média e a Renascença: a estranha confraria do Navio Azul oferecia outrora espetáculos nos quais se representava a loucura. Agora é a própria loucura, a loucura em carne e osso, que representa.[6]
Ou seja, na divisão entre os loucos furiosos e aqueles que podiam se conter, os primeiros tinham seu momento de demonstração pública. O zoológico dos loucos, assim como o jardim zoológico de nossa época, tem nos furiosos o objeto perfeito de docilização, mas também de pesquisa, da prática da escrita disciplinar, além de ser um local de transações econômicas, de garantia de lucro sobre uma mão-de-obra que não cobra pelos seus serviços. O furioso é entendido como o animal, objeto animado, boneco vazio de alma porém preenchido pela confusão e raiva da desrazão.
Este corpo vazio de sentido é revelado. Pior, apontado: o internamento tende a esconder os exemplares que ofendem a moral burguesa, mas mantém o louco insano visível de maneira propositiva.
Diferentemente de toda tradição da Idade Média e da Renascença, em que o louco ocupava uma posição quase mística, estabelecendo ligação privilegiada com o sagrado e com a verdade, o classicismo, assiná-la Foucault[7], reúne a loucura às outras formas de desatino, como num mesmo conjunto de exclusão. Isso é relevante: enquanto o desatino é absorvido por práticas de silenciamento, a loucura insana é organizada.
Considerações finais
Apesar de não ser silenciada, a loucura insana não ocupou nenhuma posição privilegiada em relação aos desatinos: a insanidade não foi classificada como doença (que teria cura, que pediria de fato terapias médicas), mas como escândalo.
No entanto, nada de comum existe entre essa manifestação organizada da loucura no século XVIII e a liberdade na qual ela aparecia à luz do dia durante a Renascença. Nessa época, ela estava presente em toda parte e misturada em todas as experiências com suas imagens ou seus perigos. Durante o período clássico, ela é mostrada, mas do lado de lá das grades; se ela se manifesta, é à distância, sob o olhar de uma razão que não tem mais nenhum parentesco com ela e que não deve mais sentir-se comprometida por uma semelhança demasiado marcada.[8]
A loucura como aquilo que está aí para ser visto. O louco como objeto de observação. Trata-se da observação de um objeto destituído de pensamentos, uma besta.
Referências
[1] Dicionário Michaelis Online.
[2] OLIVEIRA, Régner Ítalo; MAGANHE, Bruna. Zoológicos, qual a sua importância?
[3] Ibidem.
[4] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 9ª edição, 2012, p. 146-147.
[5] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 147.
[6] Ibidem.
[7] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 148.
[8] Ibidem.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.