Da série “A Arqueologia do Saber“.
Quando a arqueologia do saber isola as diferentes formações discursivas, ela empreende, logo em seguida, a tarefa de compará-las, opô-las umas as outras e identificar pontos de ligação. Enquanto a análise discursiva marca os limites (até mesmo cronológicos) dos discursos, insere espaços em branco entre as diferentes unidades, ela também as coloca em comparação.
Os pontos de comparação podem revelar campos institucionais, conjuntos de acontecimentos, práticas e decisões que interliguem as positividades de dois discursos.
Este não é o tipo de análise comparativa mais comum, dirá Foucault, isso porque o objetivo de suas arqueologias não foi mostrar um certo espírito de época, um mentalidade geral no século XVIII, por exemplo. A comparação não é feita de maneira geral, macro, mas sim em pontos localizados.
Sobre suas pesquisas arqueológicas, Foucault responde que o objetivo de uma comparação é específico: “tratava-se de fazer aparecer um conjunto bem determinado de formações discursivas, que têm entre si um certo número de relações descritíveis”[1].
O resultado da descrição deste número de relações específicas é poder reconhecer uma configuração interdiscursiva entre os diferentes discursos que estão ligados interna e externamente. Essa configuração só tem validade para o conjunto de formações discursivas analisadas: no caso de Foucault, As Palavras e As Coisas foi um exemplo, já que o autor conseguiu identificar, através da inter-relação entre a história natural, a análise das riquezas e a gramática geral, um conjunto específico de relações que formaria aquilo que nós chamamos de ciências humanas.
Já o objetivo de Foucault nunca foi descrever, como já dito, um espírito de época, uma visão de mundo, mas sim descrever uma região de interpositividade, local particular em que alguns objetos emergem em dependência de outras formações discursivas.
“É a vez de os amigos da Weltanschauung ficarem decepcionados: cuido que a descrição que encetei não seja do mesmo tipo que da deles. O que entre eles seria lacuna, esquecimento, erro, é para mim, exclusão deliberada e metódica”[2], afirma Foucault.
Afinal, a arqueologia não se direciona a uma racionalidade, a uma ciência ou mentalidade, muito menos a uma cultura,
é um emaranhado de interpositividades cujos limites e pontos de cruzamentos não podem ser fixados de imediato. A arqueologia: uma análise comparativa que não se destina a reduzir a diversidades dos discursos nem a delinear a unidade que deve totalizá-los, mas sim a repartir sua diversidade em figuras diferentes. A comparação arqueológica não tem um efeito unificador, mas multiplicador[3].
Mais do que encontrar influências recíprocas entre os diferentes discursos, a arqueologia deseja mostrar “o jogo das analogias e das diferenças, tais como aparecem no nível das regras de formação”[4]. Para isso, é necessário realizar cinco diferentes tarefas:
- “Mostrar como elementos discursivos inteiramente diferentes podem ser formados a partir de regras análogas […] mostrar, entre formações discursivas diferentes, os isomorfismos arqueológicos“[5].
- “Mostrar até que ponto essas regras se aplicam ou não do mesmo modo, se encadeiam ou não da mesma ordem, dispõem-se ou não conforme o mesmo modelo nos diferentes tipos de discurso”[6].
- “Mostrar como conceitos perfeitamente diferentes possuem uma posição análoga na ramificação de seu sistema de positividade – que são dotados, assim, de uma isotopia arqueológica”[7].
- “Mostrar, em compensação, como uma única e mesma noção (eventualmente designada por uma única e mesma palavra) pode abranger dois elementos arqueologicamente distintos […] indicar as defasagens arqueológicas“[8].
- “Mostrar, finalmente, como, de uma positividade a outra, podem ser estabelecidas relações de subordinação ou de complementaridade […] estabelecer correlações arqueológicas“[9].
E esse jogo de relações, por sua vez, não aparece como uma maneira de pontuar relações de casualidade entre os discursos. Na verdade, descrever uma configuração de interpositividade não envolve dizer que, por exemplo “pelo fato de Turgot, depois de Law e Petty, ter desejado tratar a moeda como um signo, a economia e a teoria da linguagem se aproximaram”[10]; mas sim que, no nível dos conceitos, ou das obras, dos autores e etc, pode-se encontrar trocas semelhantes, a mesma lei de comunicação entre os diferentes discursos.
Talvez a afirmação mais interessante proposta por Foucault esteja no fim desta seção. É neste instante em que ele esclarece as relações possíveis entre formações discursivas e domínios não discursivos, como instituições, acontecimentos políticos, práticas e processos econômicos. O objetivo da arqueologia ao comparar esses dois tipos de eventos é encontrar como as regras de formação que caracterizam uma dada positividade podem estar ou não ligadas a sistemas não discursivos.
Tal labuta é diferente daquela da análise simbólica, que veria entre a formação discursiva e o sistema não discursivo duas expressões que se refletem e simbolizam-se mutuamente. Também é diferente da análise meramente causal, que buscaria os fatores políticos e econômicos para explicar a mudança na consciência dos homens. A arqueologia faz diferente,
A arqueologia situa sua análise em um outro nível: os fenômenos de expressão, de reflexos e de simbolização são, para ela, apenas os efeitos de uma leitura global em busca das analogias formais ou das translações de sentidos; quanto às relações causais, elas só podem ser assinaladas no nível do contexto ou da situação e de seu efeito sobre o sujeito falante […] o campo de relações que caracteriza uma formação discursiva é o lugar de onde as simbolizações e os efeitos podem ser percebidos, situados e determinados[11]
Essas relações entre formações discursivas e sistemas não discursivos podem ser vistas na própria medicina. Ela, de fato, não sofreu uma influência da prática política para se tornar a medicina científica, mas sim de caminhos que a prática política pôde abrir, como a administração de massas a partir de registros detalhados, fiscalizadas segundo normas de vida e saúde. O status do médico, como o único detentor do discurso médico também foi fator decisivo.
Ou seja, o objetivo não é mostrar como a prática política modificou conceitos médicos, mas sim entender como o discurso médico, que é específico e se dirige a um certo campo de objetos, que é dito por uma gama seleta de sujeitos, se articula com práticas que lhe são exteriores, que não são discursivas.
A arqueologia, portanto, mostra como uma formação discursiva autônoma não é – e nunca é – uma idealização separada da história. Ela revela como, de que maneira singular, a história pode dar lugar para certas práticas discursivas.
Referências
[1] FOUCAULT, Michel. Os Fatos Comparativos IN: A Arqueologia do Saber. 8ª edição, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012, p.193.
[2] FOUCAULT, Michel. Os Fatos Comparativos… p.194.
[3] FOUCAULT, Michel. Os Fatos Comparativos… p.195.
[4] FOUCAULT, Michel. Os Fatos Comparativos… p.196.
[5] FOUCAULT, Michel. Os Fatos Comparativos… p.196.
[6] FOUCAULT, Michel. Os Fatos Comparativos… p.196.
[7] FOUCAULT, Michel. Os Fatos Comparativos… p.197.
[8] FOUCAULT, Michel. Os Fatos Comparativos… p.197.
[9] FOUCAULT, Michel. Os Fatos Comparativos… p.197.
[10] FOUCAULT, Michel. Os Fatos Comparativos… p.197.
[11] FOUCAULT, Michel. Os Fatos Comparativos… p.199-200.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.
Caramba, poderia dar outros exemplos além desse do médico? Ainda não consegui entender muito bem…
Posso, vou complementar o texto amanhã, então.
Obrigado!!!