Poder: Marx contra Foucault – DROPS #5

Segundo a crítica de Armando Boito Jr., a noção de poder em Michel Foucault representaria algo difuso, descentralizado, desmobilizante e desagregador. Difuso na medida em que nega as localizações estratégicas do poder nas relações de classe, descentralizado na medida em que retira o Estado do centro da análise também retirando o poder de sua centralidade institucional, desmobilizante na medida em que seria fundamento para movimentos que não se centram na conquista do poder de Estado e desagregador na medida em que prejudicaria uma noção coletiva de classe, afunilando as lutas sociais para pautas particularistas.

Índice

Introdução

Entre as críticas possíveis sobre as concepções utilizadas por Michel Foucault em suas pesquisas, especificamente a crítica marxista à noção de poder foi parte dos comentários produzidos na Janta Filosófica de número 21, como pode ser visto no trecho selecionado acima.

Se todas as relações são relações de poder, se perde a especificidade da relação de poder. Quando se perde tal elemento, fica muito mais difícil de localizar e construir estratégias que sejam eficientes para transformação social. No fundo, o marxismo é uma arma de transformação. Com Foucault, não necessariamente está explícito que se trata de uma arma de revolução, talvez não tenham gasto tanto tempo construindo teses na tentativa de prever revoluções utilizando Foucault, mas com o Marx o cenário é oposto.[1]

Ou seja, é possível compreender que a operacionalidade da noção de poder em Foucault tende a gerar análises que desagregam a classe na medida em que desfazem seu caráter coletivo, supostamente atomizam a política em identidades e retiram o foco do elemento principal de gerenciamento do sistema capitalista que é o Estado.

Marx Contra Foucault

Segundo Armando Boito Jr.[2]: “A ideia de um poder difuso (micropoderes) pode conduzir a uma dispersão das lutas sociais (e políticas), desviando as massas populares daquele que é o principal locus do poder nas sociedades classistas: o Estado”. Por sua vez, no site da organização Esquerda Marxista, tendência do PSOL, há uma crítica assinada por David García Colín[3] em que o temor pela utilização prática da noção de poder de Michel Foucault está ligado a uma função subjacente de sua criação filosófica: ser parte de um mecanismo de reprodução das relações humanas vigentes: “É verdade que Foucault não omite o caráter histórico dessas relações de poder, mas, ao torná-las parte imanente das relações humanas, as eterniza”.

De certa forma, a confusão causada por uma analítica microfísica do poder pode ser observada na seguinte passagem de Pedro Silva:

É comum que um simples guarda de trânsito imponha sua autoridade sobre um motorista, muitas vezes de forma indevida, e que esse guarda, como assalariado, tenha seus direitos usurpados pelo seu superior, etc. Ao mesmo tempo, o nivelamento dessas microrelações de poder às relações de poder mais estruturantes como o controle da economia; das decisões da política internacional; do monopólio dos meios de comunicação de massa; da elaboração das leis e do acesso aos bens culturais, nos parece ser um equívoco profundo.[4]

Desta forma, entende-se que a concepção de poder elaborada por Foucault tende a entregar uma matriz de interpretação da realidade do poder que 1) desagrega, na medida em que atomiza o local de atuação do poder no indivíduo e 2) desagrega, na medida em que distribui o exercício do poder a todos os indivíduos possíveis. O objetivo deste DROPS é expor a crítica marxista à concepção de poder em Foucault centralizando a exposição no artigo de Armando Boito Jr.


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Poder em Michel Foucault

A noção de poder em Foucault já foi abordada no Colunas Tortas em nosso primeiro DROPS, assim como as relações entre o poder e o Estado presentes nas conferências e entrevistas contidas na Microfísica do Poder.

De maneira resumida, o poder deve ser visto como algo que circula e é exercido por todo e qualquer agente. Desta forma, Foucault se interessa em elaborar uma maneira de analisar o poder, ou seja, de perceber seu movimento e entender suas configurações no período e local observado. É por isso que a palavra metodologia aparece diversas vezes em Segurança, Território, População ou em História da Sexualidade 1: A Vontade de Saber. A analítica do poder indica algo parecido com uma metodologia, uma maneira de olhar ou, de certa forma, uma técnica de olhar. A analítica do poder pode ser entendida como um gesto específico de leitura das relações de poder.

Este gesto não exclui a centralidade do Estado quando ela de fato aparece:

Não tenho de forma alguma a intenção de diminuir a importância e a eficácia do poder de Estado. Creio simplesmente que de tanto se insistir em seu papel, e em seu papel exclusivo, corre−se o risco de não dar conta de todos os mecanismos e efeitos de poder que não passam diretamente pelo aparelho de Estado, que muitas vezes o sustentam, o reproduzem, elevam sua eficácia ao máximo. A sociedade soviética é um exemplo de aparelho de Estado que mudou de mãos e que mantém as hierarquias sociais, a vida familiar, a sexualidade, o corpo quase como eram em uma sociedade de tipo capitalista. Os mecanismos de poder que funcionam na fábrica entre o engenheiro, o contra−mestre e o operário serão muito diferentes na União Soviética e aqui?[5]

O poder, para Foucault, não é uma propriedade, não está preso em uma instituição específica, esperando ser tomado e exercido após sua posse. Sendo assim, em sua leitura histórica, o autor não vai centralizar as ações do Estado para compreender as configurações de poder em uma formação social específica. Pelo contrário, o entendimento das relações de poder será sempre a base para se compreender se algum elemento como o Estado tem, na prática, alguma centralidade privilegiada ou se, de certa forma, ganha sua centralidade através do próprio desenvolvimento das relações de poder analisadas, se formando de maneira concomitante à estratégia de poder:

O poder é mais complicado, muito mais denso e difuso que um conjunto de leis ou um aparelho de Estado. Não se pode entender o desenvolvimento das forças produtivas próprias ao capitalismo; nem imaginar seu desenvolvimento tecnológico sem a existência, ao mesmo tempo, dos aparelhos de poder. No caso, por exemplo, da divisão do trabalho nas grandes oficinas do século XVIII, como se teria chegado a esta repartição das tarefas se não tivesse ocorrido uma nova distribuição do poder no próprio nível da organização das forças produtivas?[6]

Ou seja, apesar de não produzir uma teoria do poder e não ter qualquer preocupação em descobrir as origens do poder (na medida em que, nesta visão, sua origem não é relevante, mas sim sua operacionalidade, seu funcionamento) e, desta forma, não atender ao anseio de Colín (que considera “superficial” a proposta analítica de um poder capilar[7]), o autor entrega uma maneira de se analisar materialmente a realidade concreta através dos próprios acontecimentos, das próprias relações que se formam e desaparecem, dos interesses específicos que movimentam a estratégia de poder de forma anônima. É por isso que o poder pode assumir diferentes formas em diferentes locais ou momentos. É por isso que o poder não se resume à relação entre classes e nem mesmo opera somente no nível das classes.

Crítica marxista

Primeiramente, a crítica de Armando Boito Jr. tende a expor a necessidade do Estado capitalista para a manutenção das relações de poder que acontecem institucionalmente. O exemplo concreto utilizado foi a família:

As relações de parentesco existem muito antes de existir Estado e capitalismo e são, efetivamente, relações de poder interindividual. Mas as relações de parentesco no capitalismo são relações de parentesco de um tipo histórico determinado e se encontram regulamentadas pelo Estado capitalista. São os tribunais que, em última instância, decidem sobre a validade das relações de parentesco, sobre a transmissão de herança, sobre a guarda de filhos e outros assuntos que estão na base da organização familiar burguesa e cabe à parte prejudicada por tais decisões a obediência ou as sanções penais.[8]

São os tribunais que decidem, em última instância, o que é família. Família, assim, não é definida pela práticas que se pode observar nos ambientes familiares, pelos signos que são movimentados nestes ambientes ou até mesmo pela configuração espacial de tais ambientes, sua própria existência concreta em diferentes períodos da história. Em última instância, na visão marxista de Armando Boito Jr., a instituição (eu extrapolo) é definida juridicamente pelo Estado. As práticas que não são definidas ou monitoradas pelo Estado não fazem parte do corpus de análise para o entendimento da instituição. Em última instância, a instituição é aquilo que lhe foi definido ser a partir do aparelho judiciário.

Nesta visão, evidentemente a noção foucaultiana de poder parecerá ineficiente, afinal, o Estado, responsável pela existência jurídica das instituições, não estará no centro da análise, não será privilegiado e não será observado como centro de poder.

Portanto, como conclusão geral, podemos afirmar que embora o exercício do poder não se dê apenas no Estado, os diversos centros de poder dependem efetivamente da ação legisladora e repressiva do Estado para poderem funcionar como tais.[9]

Foucault, assim, “refere-se de modo negligente à estrutura jurídico-política do Estado e considera o exame dessa estrutura algo de importância menor”[10].

Ao mesmo tempo, a mudança de foco na análise que retiraria o centro do poder no aparelho estatal estaria ligado a uma negligência de Foucault em relação à ideologia:

O mais importante é que Michel Foucault não percebe que o aparelho de Estado capitalista – suas normas jurídicas e suas instituições – produz e difunde ideologia e que essa ideologia é condição necessária para o funcionamento dos diversos centros de poder que Foucault estudou.[11]

O aparelho de Estado capitalista seria central na produção das ideologias que supostamente garantem as relações de poder estudadas por Foucault na História da Sexualidade, Vigiar e Punir, Poder Psiquiátrico e etc. O erro do autor francês seria de observar no Estado justamente aquilo que nega ser a realidade do poder: uma função somente negativa, somente repressiva.

Foucault atribui aos marxistas a concepção do poder como mera proibição e repressão e, no entanto, ele próprio pensa o Estado dessa forma: como um aparelho meramente repressor. É por isso que ele localiza a função “produtiva” ou “criativa” do poder alhures.[12]

Desta maneira, seria uma visão distorcida do Estado enquanto aparelho somente repressor que estaria ligada a uma concepção de poder difuso, não localizado em nenhum centro de poder. A própria existência do centro de poder se desfaz quando não há um Estado como referência de controle dos aparelhos, desta forma, a afirmação foucaultiana de que há necessidade de observar as microrrelações de poder espalhadas, difusas, para então entender se faz sentido uma centralidade do Estado no exercício do poder em uma dada estratégia num dado período determinado acaba sendo o engano de um pesquisador que, num movimento ingênuo, teria aplicado ao elemento central de sua crítica o mesmo conteúdo que foi é criticado ao longo da análise.

O erro estratégico de uma visão sob estes termos parece ser evidente para Boito Jr.:

Se o poder está concentrado no Estado, a luta política também deve ter por objetivo central o poder de Estado. Diferentemente do que dizia Foucault e do que dizem hoje alguns intelectuais do movimento altero-mundialista, a questão da conquista do poder de Estado permanece uma tarefa estratégica central dos movimentos que lutam pela transformação revolucionária da sociedade capitalista. Se é falsa a tese segundo a qual o poder encontra-se disperso, também é falsa a tese segundo a qual “tudo é política”.[13]

Eis que surge, novamente, a denúncia central acerca da concepção de poder de Michel Foucault:

Propor, como faz Foucault, a dispersão da luta política, indistintamente, por todos os centros reais ou supostos de poder, ignorando a centralidade estratégica da conquista do poder de Estado, é desviar as classes populares da luta pela transformação da sociedade capitalista.[14]

É justamente esta difusão do poder que ignoraria não só o alvo principal da luta de classes, mas também a própria dominação de classe que se espalha por todo tecido social a partir de centros específicos controlados pelos representantes da classe dominante através das garantias jurídicas do Estado, através de suas políticas econômicas e de suas instituições:

A propriedade privada capitalista é implantada e garantida pelo Estado, enquanto a divisão capitalista do trabalho é legitimada pelo sistema escolar, ele próprio organizado pelo Estado.[15]

Por fim, o problema da visão foucaultiana acerca do poder estaria ligado a um entendimento interindividual da relação de poder. Isso significa que, para Foucault, o poder seria aquilo que acontece, em seu menor nível, em seu nível fundamental, entre indivíduos. Desta maneira, afirmar que tudo é política só faria sentido se fosse possível entender que toda relação de poder é uma relação política e que toda relação social é constituída de poder, portanto sendo política. Acima de tudo, só faria sentido se fosse possível entender que a relação de poder é microscópica, é aquilo que não se vê somente numa análise macrossocial, mas que se observa nas menores práticas cotidianas assim como nas grandes práticas institucionais.

O nível de observação do poder, em Foucault, estaria localizado no micro enquanto a visão marxista exposta por Armando Boito Jr. teria o poder localizado numa dinâmica de classes e, assim, seria relevante para análise num nível macro. O nível macro seria aquele responsável por entregar análises que possibilitariam a revolução.

Um suposto fundamental do conceito foucaultiano de poder é a ideia de que a relação de poder é uma relação interindividual. Embora esse suposto não tenha sido formulado em nenhuma das teses enumeradas pelo autor quando ele se pôs a refletir sobre o seu próprio conceito de poder, ele é um dos pilares dos quais depende toda a argumentação do autor.[16]

Boito Jr. ignora que é a capilaridade do poder que delimita e condiciona ações em nível institucional, ou seja, um olhar microscópico do poder não anula e nem mesmo evita uma análise de elementos institucionais com atuação macrossocial. A análise do micro não anula a realidade do macro.

Temos, do lado de Foucault, o poder como relação entre indivíduos e cujo principal atributo seria o método ou meio que estabelece a mantém essa relação, de outro lado, no campo do marxismo, o poder como relação entre coletivos (de classe), relação cujo principal atributo seria o conteúdo das medidas implementadas pelo poder.[17]

Ou seja, o desdobramento das relações interindividuais na criação de instituições que, por sua vez, também funcionam enquanto nós de relação de poder, enquanto dispositivos de produção de subjetividades, este desdobramento não seria entendido na visão de poder de Foucault. Tudo se passaria como se a relação de poder fosse literalmente limitada às relações interindividuais e ali morressem. Desta forma, a relação de poder interindividual que tem como função localizar o poder em todo tecido social passa a ser o signo de uma análise de pequenas relações entre pai e filho, entre motorista e guarda de trânsito, entre professor e aluno, etc.

Ironicamente, é justamente esta crítica marxista sobre o poder que tende “a reproduzir uma visão dicotômica entre as dimensões locais/cotidianas e as dimensões estatais/globais de poder”[18], justamente o que Pedro Silva coloca sob a responsabilidade de Foucault.

Considerações finais

Ao longo deste DROPS, o esforço principal foi de expor a crítica marxista centrada no texto de Armando Boito Jr. à noção de poder em Foucault o complementando com textos que acrescentam pontos ao debate, mas se centram nas mesmas questões.

De maneira direta, é possível entender que a noção de poder foucaultiana aos olhos marxistas de Boito Jr.:

  1. É uma noção interindividual, o que contraria o entendimento de um poder exercido no nível das coletividades;
  2. É uma descrição difusa, o que contraria o entendimento marxista de um poder que é centralizado no Estado e se derrama pelo tecido social a partir de derivações subsequentes nas instituições sociais;
  3. É um desserviço militante, pois fundamentaria uma visão descentralizada da luta política e, assim, enfraqueceria uma luta contra capital;
  4. É uma noção vazia, na medida em que esvazia a observação sobre o poder o inserindo em todas as relações como se elas fossem irredutíveis a uma porção de relações formalizadas e reproduzidas pelo Estado.

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Referências

[1] MARX contra Foucault!. Canal do Colunas Tortas no YouTube. Acesso em 19 abr 2022. Disponível em <<https://youtu.be/M1hx-fexlDw>>.

[2] BOITO JR., Armando. O Estado capitalista no centro: crítica ao conceito de poder de Michael Foucault. Fundação Maurício Grabois, 2016. Acesso em 19 abr 2022. Disponível em <<https://bit.ly/3EuKeGr>>.

[3] COLÍN, David Garcia. Os limites pós-modernos das ideias de Foucault: uma crítica marxista. Portal eletrônico da Esquerda Marxista, 2020. Acesso em 19 abr 2022. Disponível em <<https://bit.ly/397hpUV>>.

[4] SILVA, Pedro Claesen Dutra. Apontamentos críticos à concepção de poder em Michel Foucault. Revista Encontros com a Filosofia, Ano 3, n. V, 2015, p.30.

[5] FOUCAULT, Michel. Sobre a Geografia IN Microfísica do Poder. Roberto Machado (Org).

[6] FOUCAULT, Michel. O olho do poder IN Microfísica do Poder. Roberto Machado (Org).

[7] COLÍN, David Garcia. Os limites pós-modernos das ideias de Foucault: uma crítica marxista…

[8] BOITO JR., Armando. O Estado capitalista no centro: crítica ao conceito de poder de Michael Foucault…

[9] Idem.

[10] Idem.

[11] Idem.

[12] Idem.

[13] Idem.

[14] Idem.

[15] Idem.

[16] Idem.

[17] Idem.

[18] SILVA, Pedro Claesen Dutra. Apontamentos críticos à concepção de poder em Michel Foucault…

2 Comentários

  1. Eu leio a analítica de poder em Foucault não como algo que exclui a atuação do macro poder, mas como algo que valoriza os saberes sujeitados, as microrelações de poder. O poder macro não é falacioso segundo minha leitura da analítica, dizer que o Estado por meio da PM oprime a população é verdade, mas essa visão de cima pra baixo serve muito pouco para explicar como se desenrola essa dominação. Como diz Foucault em “Em defesa da sociedade”, não é uma leitura sobre a soberania, mas sobre a dominação. A análise do poder de baixo pra cima, ajuda a explicar, mais do que as decisões macroeconômicas, como pessoas de determinadas regiões sofrem com o mando do Estado. E esses saberes podem não contribuir para uma análise materialista marxista, mas serve para contribuir com as lutas locais.

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