Da série “Necropolítica“.
Índice
Introdução
A crítica política tardo-moderna, como chama Achille Mbembe, privilegiou as leituras políticas normativas da democracia para entender a soberania e o sujeito, assim, inserindo o conceito de razão como chave de leitura, o que entrega como responsabilidade ao soberano “a produção de normas gerais por um corpo (povo) composto por homens e mulheres livres e iguais”[1]. Homens e mulheres que, por sua vez, são sujeitos constituintes, autocentrados, capazes “de autoconhecimento, autoconsciência e autorrepresentação”[2].
Se a soberania é expressada pela produção de normas para um corpo social composto por sujeitos autocentrados, então a política é definida como um projeto de autonomia que deverá ser realizado por uma coletividade munida de ferramentas de comunicação e reconhecimento.
Em outras palavras, é com base em uma distinção entre razão e desrazão (paixão, fantasia) que a crítica tardo-moderna tem sido capaz de articular uma certa ideia de política, comunidade, sujeito – ou, mais fundamentalmente, do que abarca uma vida plena, de como alcançá-la e, nesse processo, tornar-se agente plenamente moral. Nesse paradigma, a razão é a verdade do sujeito, e a política é o exercício da razão na esfera pública.[3]
O exercício da razão na esfera pública é o exercício da liberdade, portanto, é o exercício da verdade do sujeito, é sua condição de autonomia, de ser sujeito livre em ato, é sua condição de existência ideal (desta forma, que deve ser alcançada). O sujeito, nesta tradição, é livre e senhor dos significados que expressa e interpreta. A soberania, por sua vez, é o exercício da construção de condições para que a liberdade seja praticada e, ao mesmo tempo, para que ela não ultrapasse um limite autorregulado.
Para Mbembe, é necessário repensar as categorias da modernidade de leitura da política, da soberania e do sujeito e tomar como base as experiências de destruição humana que atravessaram o globo desde a colonização. “Em vez de considerar a razão verdade do sujeito, podemos olhar para outras categorias fundadoras menos abstratas e mais táteis, tais como a vida e a morte”[4].
Morte e sacrifício
Para propor uma nova perspectiva de leitura política, Mbembe se utiliza de Friedrich Hegel e Georges Bataille com suas elaborações a respeito do sujeito, da morte e da soberania. O segundo foi grande leitor do primeiro e desenvolveu sua visão sobre a morte e o sacrifício com base no idealista alemão. Hegel, por sua vez, tem na morte o momento possível de união com a totalidade: o ser humano nega a natureza como um todo complexo, como totalidade, faz dela um elemento apreensível para suas próprias necessidades. O elemento negado é transformado através de trabalho e luta, através da ação humana o mundo é constantemente criado.
No entanto, este descolamento da natureza faz do homem um ser vulnerável a ela, exposto à própria negatividade:
O homem é essa noite, esse Nada [Néant] vazio, que contém tudo em sua simplicidade indivisa: uma variedade de um número infinito de representações, de imagens, das quais nenhuma lhe vem à mente com clareza, ou [ainda], que não estão [ali] como realmente-presentes. É a noite, a interioridade – ou – intimidade da Natureza que existe aqui: – [o] Eu-pessoal puro. Em representações fantasmagóricas, tudo ao redor está escuro: surge então uma cabeça ensanguentada aqui; mais adiante outra aparição branca; e elas desaparecem também de repente. É essa noite que se percebe quando se olha bem nos olhos de um homem: [mergulha-se o olhar] numa noite que torna-se terrível; é a noite do mundo que se apresenta [então] a nós.[5]
O homem se transforma neste elemento “eu-pessoal puro”. Um vazio constituído pela negação da natureza, desta forma, uma propulsão para agir advinda da violência da morte, que passa a ser seu fim certo. Descolar-se da natureza é assumir uma postura individual, individualizada. A finitude passa a fazer parte do homem, na medida em que sua ligação com a totalidade, que é eterna, deixa de ser reconhecida. Para si, o homem é externo à natureza, seu dominador e, diferentemente dela, finito.
É neste jogo que a morte humana passa a ser voluntária, na medida em que se faz como o resultado dos riscos conscientemente assumidos pelo sujeito, e é sua condição de liberdade. Nas palavras de Alexandre Kojève, “a morte – a morte voluntária ou aceita como pleno conhecimento de causa – é mesmo a manifestação suprema da liberdade. […] só pela morte voluntária o [sujeito] pode escapar do domínio de qualquer condição dada”[6]. O sujeito, assim, só se distingue completamente do animal na medida em que encara a realidade da morte, mas não numa postura de medo: encara a morte e vive a vida, pois descobre em si o dilaceramento absoluto.
A política é, portanto, a morte que vive uma vida humana. Essa também é a definição de conhecimento absoluto e soberania: arriscar a totalidade de uma vida.[7]
Por sua vez, Bataille segue caminhos parecidos ao considerar que a morte é uma certeza, mas a vida só se torna falha quando é sua refém. Entretanto, para além de uma certeza que corta e separa a animalidade da humanidade, ela também é um excesso, sinal de efusão da vida. “É preciso muita força para perceber o elo existente entre a promessa de vida, que é o sentido do erotismo, e o aspecto luxuoso da morte”[8], afirma o autor. Ao contrário de Hegel, que coloca na morte um meio para a verdade, Bataille a retira do campo da significação.
Após esta primeira operação, Bataille entra em desacordo com Hegel por fazer da morte uma despesa, um gasto, enquanto Hegel a mantém na economia da possibilidade do conhecimento absoluto e da significação. Segundo Hegel:
A morte – se assim quisermos chamar essa inefetividade – é a coisa mais terrível; e suster o que está morto requer a força máxima. A beleza sem-força detesta o entendimento porque lhe cobra o que não tem condições de cumprir. Porém não é a vida que se atemoriza ante a morte e se conserva intacta da devastação, mas é a vida que suporta a morte e nela se conserva, que é a vida do espírito. O espírito só alcança sua verdade à medida que se encontra a si mesmo no dilaceramento absoluto. Ele não é essa potência como o positivo que se afasta do negativo – como ao dizer de alguma coisa que é nula ou falsa, liquidamos com ela e passamos a outro assunto. Ao contrário, o espírito só é essa potência enquanto encara diretamente o negativo e se demora junto dele. Esse demorar-se é o poder mágico que converte o negativo em ser.[9]
A verdade do sujeito só é alcançada através do encontro com o dilaceramento absoluto.
Para Bataille, a morte como despesa faz da vida um elemento no domínio da soberania. “Sendo esse o caso, a morte é o ponto no qual destruição, supressão e sacrifício constituem uma despesa tão irreversível e radical – e sem reservas –, que já não podem ser determinados como negatividade”[10]. A morte, enquanto luxo, é o princípio do excesso, da procura pela despesa existente na morte da fabricação do excesso, assim como o sacrifício[11]. Não há produtividade aparente na morte.
Bataille, em contribuição a essa leitura política com base na vida e na morte, também relaciona a soberania com o limite da morte: no mundo soberano, este limite foi abandonado. A morte ainda está lá, mas para ser negada de tal maneira que pode ser ignorada, atravessada. Um tabu que deve ser transgredido. A soberania necessita ultrapassar o limite da morte, no entanto, através de vestes sociais adequadas, para que faça parte da lógica própria do mundo social vigente.
Desta forma, tem-se a visão da morte enquanto o ponto de negação do sujeito em Hegel, e enquanto ponto de transgressão do soberano, para Bataille. A relação existente entre esses limites se faz na assunção do soberano como aquele que nega a morte para ultrapassá-la, para atravessá-la. A morte humana não é, para o autor francês, a negatividade que promove o trabalho e a luta, assim, o homem não é o nada humanizado pela visão do dilaceramento absoluto. Se a morte é despesa, é o avesso da ação produtiva, do trabalho produtivo, ela é um luxo que exige rituais luxuosos (aqui, luxo deve ser entendido neste sentido: menor seja a utilidade, maior é o valor simbólico). Para além disso, a morte faz parte de um tabu que tem em sua transgressão a exibição da soberania.
Considerações finais
Se a soberania é a violação dos limites impostos pelo tabu e se essa transgressão específica precisa de vestes sociais para ser praticada e, ao mesmo tempo, a morte funciona como um excesso, uma despesa, então abre-se, a partir dos desenvolvimentos de Bataille em A noção da despesa, Hegel, a morte e o sacrifício e em O erotismo, uma nova perspectiva sobre os limites da política e sua atuação.
No caminho inverso da tradição da ciência política sobre a modernidade, Mbembe compreende em Bataille (e depois em Michel Foucault) a possibilidade de se observar o exercício da soberania através da sistematização da morte. Não se trata mais de ter no movimento dialético da razão o caminho da política, pois
a política só pode ser traçada como uma transgressão em espiral, como aquela diferença que desorienta a própria ideia do limite. Mais especificamente, a política é a diferença colocada em jogo pela violação de um tabu.[12]
Desta forma, pode-se observar um início de desenvolvimento da noção de necropolítica. Neste caso, o início teórico que dá margem para a existência do exercício da soberania visando a morte, a transgressão do tabu. A naturalizando de tal maneira que seu aspecto luxuoso passa a ser enterrado em vestes sociais de anonimato e a morte, em vez de experimentada como despesa, passa a ser reconhecida como possibilidade estatística e, como dito, em seu aspecto existencial, condição de possibilidade do exercício da soberania.
Neste início de argumentação, Achille Mbembe busca uma maneira fora da tradição tardo-moderna de leitura política para compreender a possibilidade da criação de máquinas de morte no exercício do poder pelos Estados modernos. Este exercício não poderia ser explicado sob os auspícios da leitura política vigente guiada pela razão e pela comunicação, mas sim por uma análise das possibilidades de construção de mecanismos de poder em que a morte é protagonista (e isso justamente nos Estados que encabeçam as luzes). É necessário uma análise da soberania enquanto elemento de transgressão, não de iluminação.
Referências
[1] MBEMBE, Achille. Necropolítica. Arte & Ensaios – revista do ppgav/eba/ufrj, n. 32, dezembro 2016, p.124.
[2] MBEMBE, Achille. Necropolítica… p.124.
[3] MBEMBE, Achille. Necropolítica… p.124.
[4] MBEMBE, Achille. Necropolítica… p.125.
[5] HEGEL, Friedrich IN BATAILLE, Georges. Hegel, a morte e o sacrifício. Revista ALEA: Rio de Janeiro, vol. 15/2, jul-dez 2013, p.394.
[6] KOJÉVE, Alexandre. Introdução à leitura de Hegel IN BATAILLE, Georges. Hegel, a morte e o sacrifício. Revista ALEA: Rio de Janeiro, vol. 15/2, jul-dez 2013, p.394.
[7] MBEMBE, Achille. Necropolítica… p.125.
[8] BATAILLE, Georges. O erotismo. Tradução de Antonio Carlos Viana, 1ªed. Porto Alegre: L&PM, 1987, p. 39.
[9] HEGEL, Friedrich. Fenomenologia do espírito parte I. 2ªed, Editora Vozes: Petrópolis RJ, 1992, p.38.
[10] MBEMBE, Achille. Necropolítica… p.126.
[11] BATAILLE, Georges. A noção de despesa IN A parte maldita. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1975, p.18-32.
[12] MBEMBE, Achille. Necropolítica… p.127. Negritos nossos.
Cite este artigo:
SIQUEIRA, Vinicius. Política para morte – Achille Mbembe. Colunas Tortas. Acesso em [DD Mês AAAA]. Disponível em <<https://colunastortas.com.br/politica-para-morte-achille-mbembe/>>.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.
Muito bom!
Sua leitura sobre as relações entre o sacrifício e a morte, Hegel e Bataille, esclareceram bastante o ponto teórico que Mbembe estava querendo traçar nesse capítulo.
Gracias!
Obrigado pela leitura, Carlos! 😉