Um preso, no Brasil, custa em média R$ 1.800,00 por mês, pouco mais de um salário mínimo. Os dados são da Senappen (Secretaria Nacional de Políticas Penais). Já em prisões federais, são quase três salários mínimos: R$ 4.166,00 por mês, que podem ser vistos no Portal da Transparência e foram organizados pela CNN Brasil.
Este valor é, quando comparado ao salário mínimo brasileiro de R$ 1.412,00, elevado. Quando comparado com a renda média do brasileiro, que foi de R$ 1.893 em 2023 segundo dados do IBGE, este valor também parece ser um absurdo. No entanto, de onde vem esta noção de que o valor gasto para a manutenção de um preso no sistema penitenciário é um absurdo? Ou melhor: qual é o caminho feito na concepção do criminoso em nosso tempo presente?
Direitos humanos para humanos direitos
Em meio ao ENEM de 2018, Carlos Bolsonaro publicou um tuíte com a foto de seu pai, ex-presidente e então deputado, Jair Bolsonaro segurando uma camiseta com os dizeres: “Direitos humanos: esterco da vagabundagem”.
Já em 2024, a presidente do TJD-RJ, Renata Mansur, declarou que direitos humanos eram destinado aos humanos direitos:
“[…] Costumo dizer que direitos humanos são para humanos direitos. De fato, quando eu ouço determinadas falas da OAB, e eu vou falar em nome da OAB, em especial a Comissão de Direitos Humanos, me sinto envergonhada, a verdade é essa. Porque a missão da nossa Comissão de Direitos Humanos é para humanos direitos, é o que costumo dizer sempre. Temos que ter um olhar para os humanos direitos. Quando falamos, vemos e escutamos essas coisas, temos que ver que os policiais são os humanos direitos desse contexto.”
Essas duas declarações recolhidas aleatoriamente representam o eco de um debate que aconteceu principalmente nos anos 80 e que, em São Paulo, teve como contexto a extensão da luta por direitos aos presos políticos que foi alargada aos presos comuns feita principalmente por membro da Igreja Católica, pelo então Governador Montoro e por partidos de esquerda (Partido dos Trabalhadores incluído).
Neste momento, a reivindicação de direitos humanos aos presos comuns foi combatida eficientemente por um discursos alarmista feito por membros da polícia, que então sofria um processo de reforma, e por radialistas de noticiários policiais.
Segundo Tereza Caldeira (1991), contribuiu à derrota progressista neste momento do debate o fato de que presos comuns não eram membro de uma classe média que poderia ser associada à dignidade necessária à humanização, de tal forma que um preso desta classe poderia ser adjetivado como “político”. Os presos comuns eram pertencentes às camadas já estigmatizadas da população brasileira.
É crucial entender, ainda, que o estereótipo do criminoso foi estendido pela população a todos os casos considerados pelos defensores dos direitos humanos. Eles têm se pronunciado contra inúmeros tipos de arbitrariedades, uma grande parte delas cometidas contra pessoas sem nenhuma culpa comprovada — a não ser talvez o fato de não terem o que se chama de “boa aparência” —, mas a recepção de seu discurso parece ter eclipsado esse fato. Nas reações contra a defesa de direitos humanos, todas as pessoas a quem esses direitos se referem são criminosos, e todos os direitos a serem garantidos são para prisioneiros. Embora os prisioneiros fossem um foco importante da campanha dos direitos humanos, não eram o único e, não custa dizer, em nenhum momento essa campanha defendeu o crime ou os criminosos. O fato de que no imaginário da população de São Paulo tenha se fixado a imagem de que os defensores de direitos humanos são defensores de criminosos é indicação do sucesso da campanha contra os direitos humanos (CALDEIRA, 1991, p. 166).
A defesa dos direitos humanos levou a uma guinada especifica em que o alvo da defesa era automaticamente classificado como criminoso. A pesquisadora também compreende que a defesa dos direitos humanos de presos comuns esbarrava num histórico brasileiro de apoiar a defesa de direitos coletivos, mas de rechaçar e associar com privilégios os direitos individuais, que seria os direitos civis exigidos para os presos: “Enquanto a maioria da população considera essenciais os direitos à saúde, à educação, à previdência social etc., tende a ver como luxo os direitos de expressão, de participação em associações, de liberdade individual” (CALDEIRA, 1991, p. 168).
O preso comum, assim, seria privilegiado por uma gama de direitos civis. Os direitos civis são aqueles que se destinam à população, aos membros adequados que participam de uma prática de governamentalidade efetuada pelo Estado. Os presos, por sua vez, não pertencem à população, mas pertencem ao grupo que, estando dentro da população, se comporta como se estivesse fora, eles fazem parte do povo. O que é o povo? Numa visão foucaultiana, o povo é a parcela da não-população infiltrada na própria população:
O povo é aquele que se comporta em relação a essa gestão da população, no próprio nível da população, como se não fizesse parte desse sujeito-objeto coletivo que é a população, como se se pusesse fora dela, e, por conseguinte, é ele que, como povo que se recusa a ser população, vai desajustar o sistema FOUCAULT, 1999, p. 57).
Para a defesa da sociedade, o povo deve ser disciplinado ou excluído. Deve, portanto, passar por processos de disciplinamento, de reforma, ou deve ser excluído do convívio de maneira permanente seja numa prisão perpétua ou na pena de morte.
Movimentos sociais se esforçando para exigir direitos aos presos comuns seria o mesmo que, esquematicamente, parcelas da população exigissem direitos às frações do povo. Como o povo é o inimigo público comum de uma governamentalidade política, o discurso de sua proteção não transmite o prestígio dos membros da população (e membros dos movimentos sociais) a ele: o povo é tabu. Tocar no povo é se transformar em povo. Isso pode ser exemplificado num ingênuo tuíte do deputado Nikolas Ferreira acerca do projeto de vetar as chamadas saidinhas de presos:
A transmissão é contrária: proteger o povo torna 1) a proteção inválida e condenável, validando o entendimento de que aquele que é protegido obviamente é criminoso e, por ser obviamente criminoso, não merece o privilégio de exigir direitos individuais; e 2) aquele que protege torna-se um cidadão questionável, potencial criminoso na medida em que protege criminosos lhes exigindo, por procuração, um privilégio.
Trabalhos forçados para presos
A Lei de Execução Penal (Lei 7.210, de 1984) determina que presos em regime fechado podem cumprir sua pena em regime aberto ou semiaberto caso tenham “boa conduta carcerária”. Isso vale para crimes menos rigorosos. A mesma lei obriga preso a trabalharem, mas o artigo 31 que determina o trabalho forçado é anulado pela constituição brasileira que impede qualquer forma de trabalho obrigatório e, portanto, forçado.
Segundo o projeto de lei 352/2024, um preso só poderia ter o benefício da progressão de pena, ou seja, deixar de cumpri-la num regime fechado para cumpri-la num regume semiaberto ou aberto, caso pagasse a indenização que causou devido ao crime cometido.
Para pagar essa indenização, o preso deveria trabalhar dentro da unidade prisional. O texto é de autoria de Alan Rick, do partido União do Acre. No texto, abre-se margem para que o trabalho facultativo seja condição para progressão de pena. A justificativa de Alan Rick segue o mesmo argumento padronizado acerca da função do trabalho na cadeia:
O projeto estabelece a obrigação de reparação dos danos do crime como requisito para a progressão de regime. Desta forma, o trabalho é incentivado e se torna uma forma de o preso ir gradualmente se reconectando à sociedade, entendendo de maneira mais clara as consequências de seu crime. É uma forma de garantir que apenas progredirão de regime [para] aqueles apenados que realmente possuírem interesse na ressocialização e que possivelmente não irão recorrer mais à prática de condutas criminosas (RICK, Projeto de Lei n° 352, de 2024)
Vale dizer que em 2021, o Projeto de Lei 120/2021 do deputado Boca Aberta, filiado ao Pros do Paraná, determinava que o condenado pagasse uma indenização pecuniária à vítima e, caso não tivesse condições para isso, prestasse serviços públicos obrigatórios à comunidade para arrecadar o suficiente a ser pago.
Segundo Michel Foucault:
Mas a obviedade da prisão se fundamenta também em seu papel, suposto ou exigido, de aparelho para transformar os indivíduos. Como não seria a prisão imediatamente aceita, pois se só o que ela faz, ao encarcerar, ao retreinar, ao tornar dócil, é reproduzir, podendo sempre acentuá-los um pouco, todos os mecanismos que encontramos no corpo social? A prisão: um quartel um pouco estrito, uma escola sem indulgência, uma oficina sombria, mas, levando ao fundo, nada de qualitativamente diferente. Esse duplo fundamento — jurídico-econômico por um lado, técnico-disciplinar por outro — fez a prisão aparecer como a forma mais imediata e mais civilizada de todas as penas (FOUCAULT, 1987, p. 196).
Cabe à prisão reformar a moral do detento, ressocializa-lo naquilo que há de mais importante: o trabalho. O trabalho contribui para uma mudança moral, para uma mudança econômica, para uma mudança, no limite, religiosa. Ao comentar o sistema prisional segundo o modelo de Auburn, Foucault declara que:
A prisão deve ser um microcosmo de uma sociedade perfeita onde os indivíduos estão isolados em sua existência moral, mas onde sua reunião se efetua num enquadramento hierárquico estrito, sem relacionamento lateral, só se podendo fazer comunicação no sentido vertical (FOUCAULT, 1987, p. 200).
A prisão seria o local em que, por meio da hierarquia e do trabalho, o preso aprenderia como se portar em sociedade, entenderia sua posição em relação ao modo de produção e internalizaria a moral do trabalho, necessária às jornadas regulares de trabalho que qualquer proletário está inserido para conseguir ter seus rendimentos.
O povo, desta forma, seria disciplinado para se tornar população.
A pena de morte
Em coluna à Gazeta do Povo, Paulo Polzonoff Jr. expressa uma opinião que eu considero exemplar para compreender o que o povo representa. Segundo o jornalista, ao se referir sobre criminosos e a possibilidade de ressocialização, certos tipos não deveriam permanecer em sociedade, não deveriam existir, mas não seria o Estado responsável pela eliminação de tais humanos:
Mas tenho dificuldade para acreditar no arrependimento e na redenção de estupradores, pedófilos, matadores de aluguel, assassinos em série, terroristas, torturadores e pessoas que cometem atos de crueldade sob efeito de drogas. Nesses casos, e em tese, não vejo como a sociedade não se beneficiaria da eliminação desses monstros. Mas não pelo Estado! Para falar a verdade, sendo bem sincero mesmo, não consigo nem entender a existência de gente capaz de cometer esses crimes. Tampouco entendo como um criminoso desse tipo conseguiria conviver com a mera lembrança de seus atos.
Há uma dificuldade em dizer com todas as palavra que criminosos do tipo demarcados pelo jornalista devem morrer. A dificuldade maior está em apontar quem deve ser o autor do assassinato. Entende-se que o Estado não deve ser o responsável, então quem seria?
O povo deve morrer pelas mãos da população. Em março de 2024, os Justiceiros de Copacabana tomaram conta do noticiário nacional. Segundo William Correia, lutador e apontado como um dos líderes do grupo de justiceiros,
A gente já mostrou que a nossa voz é ouvida quando a gente se une. Lá atrás a gente botou o governo para fazer algo: vocês viram no Réveillon e no Carnaval. A mídia ficou em cima, o Judiciário teve que ceder em alguns aspectos, mas, infelizmente, eles estão voltando. Tenho recebido diversos vídeos, diversos relatos de novos assaltos, de novos furtos, tanto nas areias quanto nas ruas.
A ligação direta entre a participação dos moradores com o governo e o Judiciário, explicitando o fato de que, em conjunto, ou seja, como um grupo social múltiplo mas coeso, a população pode afetar a realidade material. A população é, aqui, vaticinada como aquilo que existe para ser governada. Para fazer valer seu estatuto de população cidadã contra o povo criminoso. Ele continua:
Pode achar que me ameaçar vai mudar alguma coisa. Quem me conhece sabe que eu não tenho medo de ameaça. Eu não tenho medo de vocês. Vocês têm medo de mim e da gente.
“Da gente”, da população unida, dos membros legítimos da população que, em conjunto, irão se proteger. Por fim:
Esse recado é para vocês. E se eu vir algum assalto com certeza não vai ser a vítima que vai se dar mal.
Talvez, Polzonoff não se referisse aos justiceiros de Copacabana, mas esta é a resposta à criminalidade. Bandido bom é bandido morto pela população. O secretário da Segurança Pública do Estado de São Paulo Guilherme Derrite, capitão reformado da Polícia Militar do Estado e ex-comandante de pelotão da ROTA, tem opinião contrária. Ao ser perguntado pela Veja sobre a máxima “bandido bom é bandido morto”, responde:
Odeio. Infelizmente, essa frase é reflexo da falta de punição adequada para os criminosos. Para mim, bandido bom é bandido preso e cumprindo pena adequada e severa pelo crime que cometeu.
A posição legalista é contraditória em relação à sua prática policial, afinal, o capitão foi comandando de um batalhão famoso pela alta letalidade. Ao mesmo tempo, foi ele quem disse, em conversa informal, que era uma vergonha um policial não ter três mortes no currículo após cinco anos de carreira.
Atualmente, a polícia de Derrite colhe recorde de mortes. Em operação na Baixada Santista, foram 45 mortes em 40 dias.
A vantagem de Derrite é a possibilidade de matar que os policias têm em seu exercício da função. Bandido bom é bandido na cadeia, já bandido mau morre em tiroteio. É necessário retomar a citação de Polzonoff: certos bandidos devem morrer. Quem são esses bandidos? São os maus. Os bons, que podem ser ressocializados, devem ir pra cadeia.
Na cadeia, os bons devem trabalhar obrigatoriamente para pagar uma multa às vítimas e para e ressocializarem, incorporando os valores morais do trabalho.
Considerações finais
De modo geral, um detento sempre vai custar mais do que aquilo que a população acha justo ser pago. O povo não deve custar nada à população, pois o povo precisa ser excluído. O processo de ressocialização é desacreditado de tal maneira que o sofrimento físico e psicológico são parte da própria pena a ser cumprida por um preso, impedido de exigir direitos.
Há dois caminhos para se lidar com o povo quando chegam no extermo da criminalidade: ou devem ser mortos pela própria população, seja essa população vestida de farda ou organizada em grupos de justiceiros; ou devem perecer na cadeia, sem direitos humanos, sem dignidade humana.
O custo do preso, numa sociedade punitiva que entende o direito individual comp privilégio, é infinito. É o custo da própria dignidade da população. A população, que podem ser identificada com a expressão “pessoa de bem”, não é detentora de privilégios legais, já o preso, que supostamente deveria ser inferiorizado, humilhado, exige, por intermédio de não criminosos, privilégios legais – mesmo que estes privilégios sejam somente a aplicação dos direitos individuais supostamente válidos para todas as pessoas.
Não importa quanto custa um preso no Brasil: o importante é que o preso seja anulado em sua relação de dependente do Estado brasileiro. O preso, assim, não é um sujeito de direitos, mas é um fardo, é por isso que “direitos humanos: excremento da vagabundagem”. Criminosos precisam pagar pelos custos de sua pena justamente para se anularem enquanto sujeitos de direitos. O trabalho que custeia a própria permanência no sistema prisional é a anulação da própria existência: um tipo de morte formal que funciona como passagem para uma vida nova, para uma existência nova sob a forma do corpo dócil.
Há duas maneiras desse processo ser satisfeito: ou na morte do criminoso dentro de uma prisão com péssimas condições de vida, ou na anulação de si enquanto criminoso, retirando qualquer custo estatal em sua permanência no sistema prisional para, quando sair da cadeia, assumir uma nova posição dócil, a de ex-presidiário.
Referências
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Direitos Humanos ou “Privilégios de Bandidos”? In Novos Estudos CEBRAP, nº 30, julho de 1991, pp. 162-174.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987.
FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 1999.
RICK, Alan. Projeto de Lei n° 352, de 2024. Senado Federal, 2024. Disponível em <<https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/162125>>.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.