Relações sintagmáticas e relações associativas – Saussure e a AD

As relações sintagmáticas e associativas são analisadas no artigo presente. Enquanto as primeiras atuam na mesma linha de extensão, as segundas acontecem de maneira perpendicular, com a associação de termos que não precisam fazer sentido no sintagma analisado. A consequência disso é a possibilidade de se definir dois tipos de arbitrários na língua: o arbitrário absoluto e o relativo.

Da série “Saussure e a AD”.

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Ferdinand de Saussure admite que no nível da língua, tudo acontece através de relações. Há, para o autor, duas formas básicas de relacionamento entre palavras, que correspondem a duas formas de nossa atividade mental: as relações sintagmáticas e as relações associativas.

Durante a fala, ao longo do discurso (Saussure usa essa palavra que, neste texto, significa a fala em seu processo),

os termos estabelecem entre si, em virtude de seu encadeamento, relações baseadas no caráter linear da língua, que exclui a possibilidade de pronunciar dois elementos ao mesmo tempo […] Tais combinações, que se apóiam na extensão, podem ser chamadas de sintagmas.[1]

Os sintagmas são formados, então, através da sequência de termos estabelecidos e eles se compõem de pelo menos duas unidades consecutivas (como em contra todos ou se fizer um bom tempo, sairemos). A relação sintagmática, portanto, é uma relação firmada entre dois termos consecutivos ou mais, estes termos adquirem valor na medida em que se opõem ao termo que o precede ou que o segue.

Fora do discurso, ou seja, fora do processo de fala, da enunciação de sintagmas, as palavras que apresentam características em comum se associam em grupos de relações diversas.

Assim, a palavra francesa enseignement ou a portuguesa ensino fará surgir inconscientemente no espírito uma porção de outras palavras (enseigner, renseigner etc. ou então armement, changement, ou ainda éducation, apprentissage).[2]

É possível perceber que a associação presente neste segundo modelo de relações entre termos não depende de uma extensão, de uma linha do tempo ou da consecutividade dos elementos em jogo. Sua sede está no cérebro, na associação através de características parecidas, identidades firmadas no inconsciente. Enquanto a relação sintagmática “existe in praesetia; repousa em dois ou mais termos igualmente presentes numa série efetiva”, as relações associativas “une termos in absentia numa série mnemônica virtual”[3].

Particularidades e problemas dos sintagmas

O objetivo de Saussure é aplicar a noção de sintagma não só às palavras, mas aos membros de frases, palavras compostas, frases inteiras etc. Há uma objeção possível e prevista pelo linguista: a frase é um tipo de sintagma por excelência (afinal, seu significado depende da relação de todos os termos) e pertence à fala, não pertenceria a fala o próprio sintagma, então?

Para admitir ou não que o sintagma pertence à fala, é necessário entender que, para Saussure, a fala é “um ato individual de vontade e inteligência”[4]. A fala, portanto, pertence ao campo do indivíduo (e não do coletivo, como a língua) e, assim, não é regida por regras coletivas rigorosas como o sistema da língua é. Cada pessoa fala de seu jeito, a aplicação da língua não é homogênea em toda a coletividade, é individual.

Se os sintagmas pertencem à esfera da fala, então eles deveriam ser livres para combinarem suas unidades de maneira livre, afinal, a fala é o campo da liberdade de combinações. Entretanto, os sintagmas não apresentam mesmo grau de liberdade:

Há, primeiramente, um grande número de expressões que pertencem à língua: são frases feitas nas quais o uso proíbe qualquer modificação, mesmo quando seja possível distinguir, pela reflexão, as partes significativas (cf. francês: à quoi bon? allons done! etc). O mesmo, ainda que em menor grau, ocorre com expressões como prendre la mouche, forcer la main à quelq’un, rompre une lance, ou ainda: avoir mal à (la tête), à force de (soins etc.), que vous ensemble? pas n’est besoin de… etc. cujo caráter usual depende das particularidades de sua significação ou de sua sintaxe. Esses torneios não podem ser improvisados; são fornecidos pela tradução. Podem-se também citar as palavras que, embora prestando-se perfeitamente à análise, se caracterizam por alguma anomalia morfológica mantida unicamente pela força de uso (cf. o francês difficulté e comparação com facilité etc.; mourrai em comparação com dormirai etc.).[5]

Saussure termina por admitir que todos os tipos de sintagmas construídos sob formas regulares devem ser atribuídos à língua, não à fala. Entretanto, também admite que no domínio do sintagma não há limite categórico entre fato de língua e fato de fala, assim, não é fácil separar ambos os fatores em cada sintagma construído e fica impossível obter proporções de influência de ambos os tipos de fato na produção do sintagma.

A particularidade das relações associativas

As relações associativas não funcionam com suporte de uma regra lógica ou por força da língua. Ela não é necessária, mas sim construída pelo indivíduo a partir de identidades contidas nas características dos termos associados. “Os grupos por associação mental não se limitam a aproximar os termos que apresentem algo em comum; o espírito capta também a natureza das relações que os unem”[6] assume Saussure.

O sintagma, por ser dependente de uma sequência de termos, portanto, por ter como característica a aparição consecutiva de unidades, suscita a ideia de 1) uma sucessão de termos e 2) uma limitação de termos. Os termos aparecem consecutivamente e são limitados para que o sentido do sintagma permaneça (a adição de outros termos modifica o sentido do todo).

O número de palavras que podem ser associadas não é definido. Se a palavra ensinamento é colocada como centro para associações (conforme exemplo abaixo), não há limite pré-estabelecido para os tipos de associações.

Associações para a palavra ensinamento.
Associações para a palavra ensinamento. Imagem retirada do Curso de Linguística Geral.

Na relação associativa, somente o primeiro termo é necessário, todos os outros podem faltar.

As relações associativas foram alvo do estudo de Michel Arrivé em seu Em Busca de Ferdinand de Saussure sobre a possibilidade de haver um tipo de inconsciente na obra do autor genebrinoO inconsciente presente neste capítulo do Curso de Linguística Geral se refere a um tipo de consciência latente, que tende a emergir à consciência em ocasiões particulares. Trata-se, assim, de um conceito análogo ao inconsciente descritivo freudiano.

Mecanismo da língua e funcionamento de ambas as relações

Há, portanto, duas formas de aproximação entre os termos da língua: ora de maneira sintagmática, ora de maneira associativa. Quando da primeira forma, observa-se a solidariedade sintagmática de sua organização: as unidades da língua dependem de unidades que as rodeiam na cadeia da fala e das partes sucessivas dentro do próprio termo presente numa cadeia maior.

A formação da palavra traduz esta conclusão sobre a primeira forma de aproximação: quando analisamos caloroso, calor-oso, percebemos que o sentido da palavra isolada depende da combinação solidária dos dois elementos calor e oso. O sufixo não é uma soma simples com o termo calor, mas sim uma união que expressa sentido no seu todo.

O todo vale pelas suas partes, as partes valem também em virtude de seu lugar no todo, e eis por que a relação sintagmática da parte com o todo é tão importante quanto a das partes entre si[…] Via de regra, não falamos por signos isolados, mas por grupos de signos, por massas organizadas, que são elas próprias signos. Na língua, tudo se reduz a diferenças, mas tudo se reduz também a agrupamentos.[7]

Entre solidariedades sintagmáticas e associativas, duas formas de agrupamento sintáticas que, em sua dicotomia, também acompanham a forma da atividade mental humana. O aumento da extensão de um sintagma gera oportunidades para uma coordenação de termos via relações associativas. Por exemplo, o termo desfazer, na cadeia de extensão, no eixo horizontal, podemos descrevê-lo como des-fazer, entretanto, no subconsciente, cada parte deste sintagma tem relações associativas com termos que se identificam com algum de seus elementos.

Des-fazer

Em relação ao prefixo des:

  • Descolar;
  • Deslocar;
  • Descoser;
  • etc.

Em relação ao restante da palavra, fazer:

  • Fazer;
  • Refazer;
  • Contrafazer;
  • etc.

A única maneira de se subdividir um sintagma em menos unidades acontece com a presença de outros termos associados às suas partes, pois sem esta presença subconsciente de termos associados e sem a presença prática de palavras com partes coincidentes (como as palavras que tem em comum o prefixo des mostrado no exemplo acima), não haveria possibilidade de reduzir o sintagma a sua subunidade que, estando isolada na língua, não seria mais uma unidade menor, reduzida.

Nossa  memória tem de reserva todos os tipos de sintagmas mais ou menos complexos, de qualquer espécie ou extensão que possam ser, e no momento de empregá-los, fazemos intervir os grupos associativos para fixar nossa escolha.[8]

Quando se fala vamos!, já se associa diversos grupos de palavras em que, em seu núcleo, está o sintagma vamos!. Quando se enuncia este sintagma, é pronunciada uma ideia que “invoca, não uma forma, mas todo um sistema latente, graças ao qual se obtêm as oposições necessárias à constituição do signo”[9]. Todos os sintagmas e todos os tipos de frases estariam submetidos a este funcionamento duplo.

O arbitrário absoluto e o arbitrário relativo

Saussure gira o mecanismo da língua para conseguir enxergá-lo sob outro ângulo. A partir do princípio de arbitrariedade do signo, o linguista afirma que nada impede de distinguir signos radicalmente arbitrários, imotivados, de signos relativamente arbitrários. Isso significa que um signo pode ser relativamente motivado.

Por exemplo: vinte é um termo imotivado, no entanto, dezenove é relativamente motivado, na medida em que dezenove está num sequência de termos associados através de um prefixo e de uma continuidade de números pré-estabelecida, como dezoito, dezessete, dezesseis e etc. É possível perceber que a análise através dos dois agrupamentos sintáticos acima já explicado é necessária, pois a relativa motivação depende dos termos que aparecem no eixo associativo, enquanto o eixo sintagmático irá definir os elementos do signo que receberão unidades associadas.

Com efeito, todo o sistema da língua repousa no princípio irracional da arbitrariedade do signo que, aplicado sem restrições, conduziria à complicação suprema; o espírito, porém, logra ao introduzir um princípio de ordem e de regularidade em certas partes da massa dos signos, e esse é o papel do relativamente motivado. Se o mecanismo da língua fosse inteiramente racional, poderíamos estudá-lo em si mesmo; mas como não passa de uma correção parcial de um sistema naturalmente caótico, adota-se o ponto de vista imposto pela natureza mesma da língua, estudando esse mecanismo como uma limitação do arbitrário.[10]

Em nenhuma língua há somente termos imotivados. Entre o radicalmente arbitrário e o relativamente motivado há toda uma gradação que se distribui em toda língua estudada.

Considerações finais

A análise de um signo pede dois tipos de olhares: o olhar às relações sintagmáticas e às relações associativas. Ambas, na prática, trabalham juntas, já que se expressam necessariamente no uso da língua e nas possibilidades de distinção de sentido ao longo do agrupamento sintático (seja a partir de solidariedades sintagmáticas ou associativas).

O trabalho por oposição entre os signos na cadeia da unidade analisada e entre os signos associados através da atividade subconsciente do sujeito também delimita o arbitrário da língua. O princípio arbitrário se mantém, no entanto, há gradações de arbitrariedade, já que o caos tornado ordem através da língua passa a carregar as regras que a língua se submete, formando aí uma variação de graus de motivação e imotivação nos signos.

Referências

[1] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. Tradução: Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blinkstein. 32ª edição. São Paulo: Editora Cultrix, 2010, p. 142.

[2] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral p. 143.

[3] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral p. 143.

[4] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral p. 22.

[5] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral p. 144.

[6] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral p.145.

[7] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral p.148-149.

[8] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral p.150-151.

[9] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral p.151.

[10] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral p.154.

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