Como o socialismo deixou de ser uma qualidade intrínseca aos homens de bom caráter e passou a ser uma forma científica da análise da realidade? Está é a dúvida que Friedrich Engels percorre em seu Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico. O livro foi lançado em 1880 como um folheto na publicação francesa Revue Socialiste, é um documento fundamental para estudos acerca do socialismo e a resenha seguinte tem como objetivo facilitar sua leitura.
A obra foi resenhada por capítulo e no índice abaixo você pode escolher para qual parte do livro quer ir.
Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico: Índice
Capítulos
- Socialismo Utópico
- Dialética
- Materialismo Histórico
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I – Socialismo Utópico
O socialismo moderno é, em primeiro lugar, por seu conteúdo, fruto do reflexo na inteligência, de um lado dos antagonismos de classe que imperam na moderna sociedade entre possuidores e despossuídos, capitalistas e operários assalariados, e, de outro lado, da anarquia que reina na produção. Por sua forma teórica, porém, o socialismo começa apresentando-se como uma continuação, mais desenvolvida e mais conseqüente, dos princípios proclamados pelos grandes pensadores franceses do século XVIII. Como toda nova teoria, o socialismo, embora tivesse suas raízes nos fatos materiais econômicos, teve de ligar-se, ao nascer, às Idéias existentes [Engels, Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico].
Tudo começa na França do século XVIII: não só a Revolução Francesa trouxe mudanças, mas também o nascimento de um jeito diferente de pensar sobre as classes despossuídas. Este jeito diferente, como tinha que ser, ainda carregava consigo os entraves de sua época: não podiam ultrapassar os limites materiais impostos aos pensadores que o criaram. Este primeiro socialismo, o socialismo utópico, ainda era pensado sob os termos da filosofia tipicamente iluminista, desta forma, não conseguia entender a necessidade histórica do aparecimento do socialismo (e do próprio capitalismo). Faltava “matar a autodeterminação”, frisa Engels.
As promessas da Revolução Francesa claramente não foram cumpridas. Era nítido que o século das luzes promoveu maior antagonismo entre ricos e pobres, já que as classes médias de artesãos e pequenos proprietários rurais se proletarizaram; o comércio foi tomado pelos vícios burgueses e se transformou em um poço de trapaças; menos violenta, o modus operandi burguês coloca a corrupção e o dinheiro como principais meios de elevação social (deixando a violência em segundo plano); o casamento se tornou na prostituição legalizada e a razão iluminista se transfigurou no terror jacobino.
Segundo Engels, “comparadas com as brilhantes promessas dos pensadores, as instituições sociais e políticas instauradas pelo ‘triunfo da razão’ redundaram em tristes e decepcionantes caricaturas”. Bastava somente que alguns perspicazes analistas de olhos aguçados resolvessem se debruçar sobre esta situação.
Então, três nomes do socialismo utópico são listados: Charles Fourier, Saint Simon e Robert Owen.
Charles Fourier
Fourier (1772 – 1837) foi um socialista francês famoso pelo projeto dos falanstérios, colônias regidas por regras libertárias, que foram inclusive aplicadas no Brasil, no século XIX, resultando em completo fracasso. Segundo o autor, a história da humanidade se divide em quatro etapas (ou quatro fases, mais ou menos como Comte explicava): o selvagismo, a barbárie, o patriarcado e a civilização. Esta última, obviamente, correspondia à época burguesa desde o século XVI.
Para Fourier, a civilização se move como num círculo vicioso, sempre sem sair de seu lugar, sem conseguir superar suas contradições, por isso consegue afirmar que “na civilização, a pobreza brota da própria abundância”. Ele também foi um dos primeiros a se atentar à exploração das mulheres pelos homens, e considerava que a medida para o grau de desenvolvimento de uma sociedade é a liberdade da mulher. Foi um mestre da dialética, mas não conseguia entender que um bom projeto de sociedade não era o suficiente para analisar a realidade e propor mudanças reais.
Saint Simon
Saint Simon (1760 – 1825) foi um economista e filósofo francês. Suas boas ideias incluem a noção de que a política é a ciência da produção, segundo Engels, predizendo a redução da esfera política ao modo de produção,
Se aqui não faz senão aparecer em germe a ideia de que a situação econômica é a base das instituições políticas, proclama já claramente a transformação do governo político sobre os homens numa administração das coisas e na direção dos processos da produção, que não é senão a ideia da “abolição do Estado”, que tanto alarde levanta ultimamente [idem].
Saint Simon também revisou toda a Revolução Francesa e enxergou nela uma expressão da luta de classes entre o proletariado nascente, a burguesia e a nobreza.
Mas ele imaginava que para sair da crise que a sociedade francesa estava no início do século XIX era necessário atuação dos atores sociais amparada na ciência e na indústria. Qual o problema? A ciência era encabeçada pelos acadêmicos liberais da economia e a indústria, a burguesia ativa, os fabricantes, banqueiros e comerciantes.
Robert Owen
Robert Owen (1771 – 1858) era galês, foi gerente e sócio de uma indústria de algodão em New Lanark, na Escócia. Dentre suas façanhas está a criação dos jardins de infância, cooperativas de consumo e a redução da jornada de trabalho dos empregados de sua fábrica para 10 horas e meia (sendo que o normal para a época era de 13 a 14 horas diárias).
Owen transformou a vila de New Lanark num colônia modelo, mas pretendia ir além. Ele sabia que o produto do trabalho dos operários deveria ser deles próprios. Este foi o ponto de inflexão em sua vida: deixou de receber o apoio da burguesia – que o considerava um filantropo – e passou a receber hostilidade. Suas colônias na América também fracassaram e ele teve que reduzir sua luta à institucionalidade quando voltou ao Reino Unido.
O erro de todos estes socialistas é resumido por Engels,
Para todos eles, o socialismo é a expressão da verdade absoluta, da razão e da justiça, e é bastante revelá-lo para, graças à sua virtude, conquistar o mundo. E, como a verdade absoluta não está sujeita a condições de espaço e de tempo nem ao desenvolvimento histórico da humanidade, só o acaso pode decidir quando e onde essa descoberta se revelará [idem].
Faltava, como já dito, uma visão materialista da história, jogando para fora de campo a autodeterminação.
II – Dialética
Junto à filosofia francesa do século XVIII, e por trás dela, surgira a moderna filosofia alemã, cujo ponto culminante foi Hegel. O principal mérito dessa filosofia é a restauração da dialética, como forma suprema do pensamento [idem].
No segundo capítulo, a questão de interesse de Engels é a distinção do pensamento dialético do pensamento metafísico. Este só capta o mundo como algo fixo: os conceitos são sempre coisas isolados de seu entorno, que se localizam um após o outro, eles não se entrelaçam. A separação dos opostos é de tal forma rígida que algo positivo não pode ser ao mesmo tempo negativo: ou é uma coisa ou outra e ponto final.
Mas a realidade não revela coisa parecida,
observando as coisas detidamente, verificamos que os dois polos de uma antítese, o positivo e o negativo, são tão inseparáveis quanto antitéticos um do outro e que, apesar de todo o seu antagonismo, se penetram reciprocamente; e vemos que a causa e o efeito são representações que somente regem, como tais, em sua aplicação ao caso concreto, mas que, examinando o caso concreto em sua concatenação com a imagem total do universo, se juntam e se diluem na ideia de uma trama universal de ações e reações [idem]
E isso é a dialética! Hegel pôde construir um sistema filosófico surpreendente trazendo a dialética ao protagonismo da filosofia novamente, mas havia aí um problema: Hegel era idealista, ou seja, ao invés das ideias serem imagens abstratas de fenômenos da realidade, elas eram, na verdade, a referência da realidade. A realidade era a projeção realizada da ideia.
Se Hegel, portanto, retirou a história da metafísica e a fez dialética, foram Marx e Engels que a tornaram materialista. Hegel deixou a história de ponta-cabeça, restou a essa dupla a colocar de volta em sua posição correta.
Com a nova noção materialista da história, foi necessário revisar toda a história feita até então e perceber que, com exceção do Estado primitivo [sic], toda a história foi a história das lutas de classes e que “essas classes sociais em luta entre si eram em todas as épocas fruto das relações de produção e de troca, isto é, das relações econômicas de sua época”, escreve Engels.
Com base nisso, foi fácil para Engels entender “que a estrutura econômica da sociedade em cada época da história constitui, portanto, a base real cujas propriedades explicam, em última análise, toda a superestrutura integrada pelas instituições jurídicas e políticas, assim como pela ideologia religiosa, filosófica, etc. de cada período histórico”.
O socialismo deixou de ser o fruto de um intelecto privilegiado, iluminado, que deveria ser posto em prática por pessoas individualmente interessadas e passou a ser o que Engels vai chamar de socialismo científico. E ficou mais científico ainda com a descoberta da mais-valia.
A mais-valia não é nada além do trabalho não pago apropriado pelo capitalista sobre a exploração do proletário. Mesmo pagando todo o valor da força de trabalho do operário, ainda há um valor restante, que cresce conforme a tecnologia das ferramentas de produção aumentam, visto como um valor que excede as contas com salário, matéria-prima e maquinaria. Se trata, portanto, da “soma de valor de onde provém a massa cada vez maior do capital acumulado em mãos das classes possuidoras”, escreve Engels.
III – Materialismo Histórico
O socialismo moderno é, em primeiro lugar, por seu conteúdo, fruto do reflexo na inteligência, de um lado dos antagonismos de classe que imperam na moderna sociedade entre possuidores e despossuídos, capitalistas e operários assalariados, e, de outro lado, da anarquia que reina na produção. Por sua forma teórica, porém, o socialismo começa apresentando-se como uma continuação, mais desenvolvida e mais consequente, dos princípios proclamados pelos grandes pensadores franceses do século XVIII [idem].
Neste capítulo, eu prefiro dar voz mais vezes a Engels. Suas afirmações diretas e retas não deixam dúvida.
O que é a concepção materialista da história?
A concepção materialista da história parte da tese de que a produção, e com ela a troca dos produtos, é a base de toda a ordem social; de que em todas as sociedades que desfilam pela história, a distribuição dos produtos, e juntamente com ela a divisão social dos homens em classes ou camadas, é determinada pelo que a sociedade produz e como produz o pelo modo de trocar os seus produtos [idem].
A classe capitalista conseguiu desenvolver os meios de produção, antes separados, individuais, em meios sociais de produção. Aí, até mesmo o modo de produção foi alterado, pois se transformou em um modo de produção genuinamente social e a contradição que dele emerge está no fato da produção ser social e da apropriação ser individual e no antagonismo da produção organizada dentro da fábrica e completamente desorganizada no seio da sociedade.
1) Quem lucra dificilmente trabalhou diretamente no processo de produção. 2) Se produz qualquer coisa para lucrar.
Do desenvolvimento das forças produtivas nasce o exército industrial de reserva, instrumento de baixa dos salários dos operários muito utilizado pelos capitalistas, afinal, é daí que vem a frase “se você não quer o emprego nessas condições, há outros 20 que querem”.
O que é este exército? É,
um exército de trabalhadores disponíveis para as épocas em que a indústria trabalha a pleno vapor e que logo nas crises que sobrevêm necessariamente depois desses períodos, é lançado às ruas, constituindo a todo momento uma grilheta amarrada aos pés da classe trabalhadora em sua luta pela existência contra o capital e um regulador para manter os salários no nível baixo correspondente às necessidades do capitalista [idem].
Todos os capitalistas precisam de tecnologia de ponta para competir no mercado, eis que o crédito aumenta e as falências vão se seguindo dia após dia, juntamente com a vinda de novas crises. Nestas crises, é comum o Estado tomar para si a responsabilidade sobre algumas empresas vitais, ou lhes dando crédito, ou as incorporando ao seu trabalho, como os correios, ferrovias e telefonia.
Mas não devemos nos enganar, o Estado é capitalista. Ele não é a solução para o fim da exploração do trabalho, no entanto, abriga em si uma futura solução: o Estado é parte da solução socialista, e é daqui que Lênin tira sua ideia de “definhamento do Estado”, vista no Estado e a Revolução, pois Engels afirma que
O modo capitalista de produção, ao converter mais e mais em proletários a imensa maioria dos indivíduos de cada pais, cria a força que, se não quiser perecer, está obrigada a fazer essa revolução. […] O proletariado toma em suas mãos o Poder do Estado e principia por converter os meios de produção em propriedade do Estado. Mas, nesse mesmo ato, destrói-se a si próprio como proletariado, destruindo toda diferença e todo antagonismo de classes, e com isso o Estado como tal […]
O governo sobre as pessoas é substituído pela administração das coisas e pela direção dos processos de produção. O Estado não será “abolido”, extingue-se [idem].
Ao se apossar dos meios de produção, a sociedade poderá cessar a produção de mercadorias, de forma que o domínio do produto sobre o produto se esgota. Não haverá, portanto, anarquia na sociedade em relação aos produtos fabricados, pois ela poderá se planejar conscientemente. É assim que o homem consegue se tornar, pela primeira vez, senhor efetivo da natureza.
Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico em PDF
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Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.