Sociedade disciplinar – Michel Foucault

A sociedade disciplinar é uma elaboração de Michel Foucault para explicar a configuração da sociedade europeia no período de ascensão do capitalismo e gradativa queda do poder monárquico. Esta sociedade é palco do exercício de um tipo de poder específico, que, de forma capilar, marca os corpos através de extrema vigilância, aplicação de normas e aplicação de exames constantes. Por fim, a tecnologia panóptica entra como elemento fundamental para o ápice da sociedade disciplinar.

Da série “A disciplina em Foucault”.

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Índice

Sua constituição e seu tipo de poder

A sociedade disciplinar é uma elaboração de Michel Foucault para explicar a configuração da sociedade europeia no período de ascensão do capitalismo e gradativa queda do poder monárquico. Nas sociedades disciplinares, as instituições sociais assumem papéis de vigilância, normatização e exame constante dos sujeitos, de tal maneira que o poder, exercido minuciosamente, marca os corpos e lhes impõe condutas (FOUCAULT, 1999).

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O tipo de poder de uma sociedade disciplinar tende a separar, prender, controlar e punir. Para facilitar o entendimento acerca da sociedade disciplinar e de seu funcionamento, Foucault traz uma situação ideal para aplicação do controle social: o autor coloca os momentos de surtos contagiosos no centro da análise através da oposição entre o sonho político existente nos procedimentos de controle da lepra e da peste: a primeira, que implica em exclusão; a segunda, que incita observação e controle.

O leproso é visto dentro de uma prática de rejeição, do exílio-cerca; deixa-se que se perca lá dentro como numa massa que não tem muita importância diferenciar; os pestilentos são considerados num policiamento tático meticuloso onde as diferenciações individuais são os efeitos limitantes de um poder que se multiplica, se articula e se subdivide. O grande fechamento por um lado; o bom treinamento por outro. A lepra e sua divisão; a peste e seus recortes. Uma é marcada; a outra, analisada e repartida. O exílio do leproso e a prisão da peste não trazem consigo o mesmo sonho político. Um é o de uma comunidade pura, o outro, o de uma sociedade disciplinar. Duas maneiras de exercer o poder sobre os homens, de controlar suas relações, de desmanchar suas perigosas misturas. A cidade pestilenta, atravessada inteira pela hierarquia, pela vigilância, pelo olhar, pela documentação, a cidade imobilizada no funcionamento de um poder extensivo que age de maneira diversa sobre todos os corpos individuais – é a utopia da cidade perfeitamente governada (FOUCAULT, 1999, p.164).

A disciplina é um tipo de poder e, assim, a sociedade disciplinar é o espaço social de exercício predominante de práticas, uso de instrumentos e técnicas, além de níveis de aplicação que comportem a possibilidade do disciplinamento. Acima de tudo, as instituições da sociedade disciplinar são voltadas para a eficiência na normalização:

Foucault ressalta que a principal função das instituições no estrato sócio-histórico da sociedade disciplinar é a de normalização, implementando práticas classificatórias hierarquizantes e distribuindo lugares. […] O que um estabelecimento visa é controlar os desvios dos sujeitos enquanto indivíduos, esquadrinhando seus comportamentos e efetuando sobre eles uma vigilância constante (BENELLI, 2014, s.p.).

E isso acontece através da constituição de:

  • Corpos dóceis: “É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” (FOUCAULT, 1999, p.118). Um corpo docilizado é um corpo útil, que pode ser submetido às diversas intenções do poder, que pode se tornar uma ferramenta para o funcionamento da sociedade, através de técnicas minuciosas de controle, de observação e de punição.
  • Técnicas de adestramento: que se constituem pela vigilância hierárquica de diferentes níveis que se vigiam, se controlam e se punem; pela sanção normalizadora, com suas micro penalidades e técnicas de correção; por fim, pelo exame, que permite organizar, separar, juntar, cortar e segmentar através de técnicas de olhar e avaliação (FOUCAULT, 1999).
  • Utilização do panóptico como modelo arquitetural de aplicação das disciplinas: “O esquema panóptico é um intensificador para qualquer aparelho de poder: assegura sua economia (em material, em pessoal, em tempo); assegura sua eficácia por seu caráter preventivo, seu funcionamento contínuo e seus mecanismos automáticos” (FOUCAULT, 1999, p.170).

A grande característica da sociedade disciplinar é a formação de um corpo social dócil, visto do ponto de vista individual, esquadrinhado em seus mínimos detalhes, adequado em cada movimento à função que lhe é destinada. Cabe ao indivíduo disciplinado produzir o máximo possível, com máxima eficiência e sub um regime de produção extenuante. O corpo é um objeto a ser estudado e a disciplina é uma técnica a ser aprimorada através deste tipo de estudo.

Emergência e queda da sociedade disciplinar

A emergência da sociedade disciplinar não foi natural, pacífica ou limpa. Foi fruto da decadência estratégica do lema de liberdade, igualdade e fraternidade proposto pelo iluminismo, através de uma dominação produzida por infrapenalidades e com um arranjo estratégico do poder. Todas as micro aplicações do poder funcionaram como um contradireito, como uma ferramenta de domínio totalmente nova e quase indecifrável, como uma quimera que ameaçava as classes dominadas mas não se mostrava como exercício do poder, como uma maneira de garantir o poder mesmo com o aparecimento do direito universal:

Por regular e institucional que seja, a disciplina, em seu mecanismo, é um “contradireito”. E se o juridismo universal da sociedade moderna parece fixar limites ao exercícios dos poderes, seu panoptismo difundido em toda parte faz funcionar, ao arrepio do direito, uma maquinaria ao mesmo tempo imensa e minúscula que sustenta, reforça, multiplica a assimetria dos poderes e torna vãos os limites que lhe foram traçados (FOUCAULT, 1999, p.184).

Foi assim que a suposta universalidade dos princípios iluministas é ultrapassada pelo estabelecimento de assimetrias espalhadas por todo corpo social. “As “Luzes” que descobriram as liberdades inventaram também as disciplinas” (FOUCAULT, 1999, p.183), declara Foucault.

A instituição responsável pela maior parte da varredura de corpos em toda a sociedade e, assim, por manter a assimetria sempre vigente é a polícia que, por seu alto alcance, pode cobrir quase todo o corpo social:

A polícia do século XVIII, a seu papel de auxiliar de justiça na busca aos criminosos e de instrumento para o controle político dos complôs, dos movimentos de oposição ou das revoltas acrescenta uma função disciplinar. Função complexa, pois […] estende uma rede intermediária, agindo onde aquelas não podem intervir, disciplinando os espaços não disciplinares; mas que ela recobre, liga entre si, garante com sua força armada: disciplina intersticial e metadisciplina (FOUCAULT, 1999, p.177).

A partir do século XVIII, as sociedades disciplinares têm seu início marcado pela ascensão do capitalismo num momento de tomada da influência política das mãos da monarquia. Segundo Foucault (1999, p.178):

Pode-se então falar, em suma, da formação de uma sociedade disciplinar nesse movimento que vai das disciplinas fechadas, espécie de “quarentena” social, até o mecanismo indefinidamente generalizável do “panoptismo”.

Mas o olhar foucaultiano não envolve uma substituição simples de um tipo de poder por outro, como uma história que se desenvolve por etapas, envolve compreender que “ela se infiltrou no meio das outras, desqualificando-as às vezes, mas servindo-lhes de intermediária, ligando-as entre si, prologando-as, e principalmente permitindo conduzir os efeitos de poder até os elementos mais tênues e mais longínquos” (FOUCAULT, 1999, p. 177).

O nascimento da polícia como conhecemos no século XVIII, com função ostensiva de controle de criminosos, controle político de complôs, controle de revoltas e etc, conseguiu unir um tipo de poder absoluto do monarca com a intenção de vigilância infinitesimal, nas mínimas instâncias de poder da sociedade, conseguiu criar uma rede intermediária de poder que poderia atingir os locais em que o grande poder centralizado não alcançaria, uma disciplina que atuava dentro da lei e, ao mesmo tempo, nos interstícios dela, nos locais em que a lei não alcançava mas, ao mesmo tempo, que formavam locus de dissidência.

A prática disciplinar é uma forma garantida de vigilância detalhada, “ela assegura uma distribuição infinitesimal das relações de poder” (FOUCAULT, 1999, p. 177). As disciplinas, assim, fazem parte de um conjunto de técnicas e tecnologias de controle que revolucionaram o século XVIII adiante.

Elas “atingem seu apogeu no século XX e entram em processo de decadência a partir desse período, dando lugar ao surgimento de uma nova forma de organização social”, explica Vivian Silva (2016).

A pesquisadora invoca Gilles Deleuze para dar nome a essa nova forma de organização social: a sociedade de controle.

Considerações finais

Da quarentena promovida pela peste até a arquitetura panóptica de Bentham, conhecemos o desenvolvimento da sociedade disciplinar:

Pode-se falar, então, em suma, da formação de uma sociedade disciplinar nesse movimento que vai das disciplinas fechadas, espécie de “quarentena” social, até o mecanismo indefinidamente generalizável do “panoptismo”. Não que a modalidade disciplinar do poder tenha substituído todas as outras; mas porque ela se infiltrou no meio das outras, desqualificando-as às vezes, mas servindo-lhes de intermediária, ligando-as entre si, prolongando-as, e principalmente permitindo conduzir os efeitos de poder até os elementos mais tênues e mais longínquos. Ela assegura uma distribuição infinitesimal das relações de poder (FOUCAULT, 1999, p.178).

Esta sociedade, nas minucias de seu funcionamento, tende a forçar assimetrias através das disciplinas:

O juridicismo universal da sociedade pós-revolucionária tendeu a estabelecer limites ao exercício do poder, mas as práticas disciplinares fizeram funcionar uma maquinaria ao mesmo tempo imensa, minuciosa e minúscula que reforçou e multiplicou a assimetria das relações sociais ao mesmo tempo em que anulou os preceitos básicos do direito. Segundo o autor [Foucault], não teria havido a substituição do direito pela disciplina, mas uma mudança de dimensão, na medida em que a lei teria passado a funcionar “cada vez mais num contínuo de aparelhos cujas funções são sobretudo reguladoras” (SOUZA, 2000, s.p.).

Desta forma, entende-se que a sociedade disciplinar não é somente uma organização social regida pelas disciplinas com foco na produção de corpos dóceis, mas é também uma sociedade formada através de uma estratégia (anônima) de dominação burguesa para substituição do modelo monárquico de exercício do poder por um novo tipo que aumenta a eficiência do típicos métodos de construção da subjetividade do Antigo Regime, mas retira a predominância política da aristocracia monárquica através de sua substituição por uma ideal de suposta equidade entre os sujeitos de direito.

Ao mesmo tempo, outro tipo de poder se aproxima se tende a dividir espaço com a disciplina. Trata-se do controle, que torna vigente certo tipo de competitividade individual que consolida as noções antes pertencentes à disciplina, como o mérito, as avaliações, o desempenho e toda rede de técnicas para medir capacidades individuais. Mas há uma diferença, pois essas tećnicas são inseridas

dentro de uma horizontalidade. Desta forma, a imagem do patrão, do professor, do carcereiro, enfim, a imagem da autoridade, daquele que exercer e tem uma posição hierárquica sobre nós se apaga. Inebriados pelo néctar da meritocracia e pelos sonhos utópicos e delirantes das promoções seguimos alimentando em nós e nos outros um roteiro contínuo de super-produção e de competição (CARVALHO, 2020, p.28).

O controle, assim, não elimina a existência da autoridade ou da vigilância, mas coloca estes termos num nível horizontal que torna suas funcionalidades mais econômicas e eficientes na medida em que podem se  exercidas pelo próprios indivíduos, uns sobre os outros e sobre si mesmo. Entra em jogo a noção de modulação, em que o desejo é conduzido sem necessariamente existir um confinamento ou uma constrição institucional externa.

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Referências

CARVALHO, L. O. Da sociedade disciplinar à sociedade de controle: protagonismos e caminhos da educação diante das mudanças de regimes de poder. Dissertação de mestrado – Programa de pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, SE: UFS, 2020.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão. 20ª ed. São Paulo: Vozes, 1999.

BENELLI, SJ. O lugar das instituições disciplinares na sociedade contemporânea. IN A lógica da internação: instituições totais e disciplinares (des)educativas [online]. São Paulo: Editora UNESP, 2014, pp. 13-22.

SILVA, V. J. C. Sociedade disciplinar no pensamento de Foucault e a sociedade de controle no pensamento de Deleuze-Guattari: o papel da instituição educacional e o controle na infância. Revista Aurora, v.9, nº2, 2016, p.22-42.

SOUZA, Luís A. F. Tendências atuais nas áreas de segurança pública e de polícia: revisitar Foucault ou uma nova sociedade do controle. Cadernos da FFC (Marília), v.9, nº1, 2000, p.59-79.

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