Sulear em vez de Nortear – Marcio Campos

A mudança na linguagem é uma mudança que transforma a própria cognição em relação ao mundo, a própria forma de interpretar a totalidade. Sulear, assim, é destruir o monopólio do Norte em organizar o planeta a partir de seu território. Sulear é a forma como o Sul retoma seu território enquanto território real, autônomo e independente de criação de conhecimento.

Índice

Introdução

Michel Pêcheux nos explica como a linguagem não é uma camada transparente em que o significado aparece como se estivesse fixo no enunciado, como se o ato da enunciação fosse um retorno ao significado que obviamente será expresso no fim da produção do sintagma.

A linguagem está intimamente ligada à ideologia. Sendo Michel Pêcheux, o sujeito do discurso é interpelado pela formação ideológica que contém posições políticas e ideológicas que podem compor uma gama de enunciados possíveis, enquanto a interpelação pela formação discursiva nos inscreve de fato numa produção regular de discursos.

Estas duas interpelações são importantes para entender a produção da fala, a reprodução e produção do discurso, mas também para compreender a própria produção e reprodução do gesto de leitura, da interpretação. O interpretação, assim, é um ato e o ponto cego da interpretação se situa justamente neste desnível em sujeitos interpelados por formações diferentes – e na própria deriva dos enunciados nas diferentes situações em que são aplicados.

A partir disso, o entendimento de como as palavras realmente afetam nosso dia a dia se extende. As palavras afetam nossa própria cognição sobre o mundo. Este artigo tem como objetivo explorar a arte de sulear proposta por Marcio Campos e muito desenvolvida pelas visões decoloniais da América do Sul.

Norte e Sul

Inicialmente, é necessário compreender que a própria demarcação espacial e temporal é expressada pela prática da língua e pela ideologia que está nela presente:

A História Universal e a Geografia, como são compreendidas pela nossa Sociedade Ocidental de tradição científica, demarcam certos espaços e tempos, períodos e épocas, a partir de referenciais internalistas e mesmo ideológicos, muito a gosto dos países centrais do Planeta (CAMPOS, p.1).

As demarcações foram produzidas pelo Ocidente, especificmente pelos países do Norte global, e são reproduzidas no Sul, a partir da colonialidade, estabelecendo relações de poder entre os dois segmentos da terra. Este dois segmentos, norte e sul, não são somente separados geograficamente, mas também politicamente e economicamente.

No material didático encontramos nos globos terrestres, a Terra representada como o polo norte para cima. Os mapas, da mesma forma respeitam, através das legendas, essa convenção apropriada para o hemisfério norte e são apresentados num plano vertical (parede) em lugar do plano horizontal (chão ou mesa). Com isso encontram-se pessoas dizendo no Rio que vão subir para Recife e quem sabe não podem estar pensando que existe um norte em cada pico de montanha já que “norte fica em cima” (CAMPOS, p.1).

É necessário compreender a fina camada ideológica que torna o Norte um norte e torna o Sul um sul: não existe ponto fixo de “chão” e “teto” no universo. A designação como norte e como sul são arbitrárias. Esta arbitrariedade que parece neutra não está dissociada de outras oposições de valores que iremos falar adiante.

Nas questões de orientação espacial, sobretudo com relação aos pontos cardeais, também os problemas são graves. As regras práticas ensinadas aqui são práticas apenas para quem se situa no hemisfério norte e a partir de lá se NORTEia.
A imposição dessas convenções em nosso hemisfério, estabelece confusões entre os conceitos de em cima/embaixo, de norte/sul e especialmente de principal/secundário e superior/inferior (CAMPOS, p.1).

A oposição norte/sul está para a oposição cima/baixo assim como está para principal/secundário e, por fim, superior/inferior. Esta oposição não é baseada numa lógica linguística, mas numa sociolinguística que compreende a prática destes conceitos e o contexto político-econômico mundial que as diferentes partes do globo se encontram.

Campo continua sua explicação sobre o uso das palavras para demarcar o espaço e sua relação com as divisões globais:

Em qualquer referencial local de observação, o Sol nascente do lado do oriente permite a ORIENTação. No hemisfério norte, a Estrela Polar, Polaris, permite o NORTEamento. No hemisfério sul, o Cruzeiro do Sul permite o “SULeamento” […] Com relação à História, é interessante notar como a caracterização de períodos históricos e pré-históricos se define a partir do ponto de vista do colonizador nos países centrais.
Por que a pré-história brasileira se define pelo período anterior à DES-COBERTA?(CAMPOS, p.1).

O que foi descoberto? A existência das américas para os olhares europeus. Esta existência estava coberta pelo véu opaco da ausência de contato. Mas porque a europa, quando traz seus membros às américas, não é descoberta por eles também? O processo político, econômico e cultural que a descoberta designa, na verdade, é a colonização, é a conquista através do genocídio.

Sulear no plano do vivido

Campos salienta que a leitura do mundo acontece antes mesmo da alfabetização, pois o gesto de leitura, retomando Pêcheux, é uma prática de interpretar e significar o mundo. Não é necessário pertencer a uma sociedade com escrita para significar o mundo e marcar essas significações em objetos separados daqueles que estão sendo significados. Sociedade ágrafas trabalham de maneira paralela à escrita quando marcam de significados os seus ornamentos, suas cerimônias e seus utensílios.

Isso obriga o olhar da significação para o cotidiano, para o “plano vivencial” (CAMPOS, p.1), que nos lembra inclusive Paulo Freire. Para o plano da vida como e vivida tendo como referência os objetos e significações que fazem parte do próprio local.  É importante tal observação não só para fincar no chão os pés de cada educador do Sul global a partir desta leitura de Campos, mas também para que se perceba que os desenvolvimentos do Norte estão, quer queira ou não, fincados no chão do Norte. Daí o nascimento de uma contradição: a importação forçada de singificações fincadas em outros territórios é, por si só, uma consequência da colonialidade do poder, do resquício de longa duração da colonização.

Esses marcadores sociais do espaço, mas também os do tempo, não marcam o tempo enquanto tal ou o espaço enquanto tal, mas sim a experiência do tempo e do espaço a partir do território que são fabricados. Sulear, portanto, é tornar o sul um território de referência para a emergência de experiências legitimadas. É aflorar o corpo consciente que somos.

Considerações finais

Entende-se, portanto, que a mudança na linguagem é uma mudança que transforma a própria cognição em relação ao mundo, a própria forma de interpretar a totalidade. Sulear, assim, é destruir o monopólio do Norte em organizar o planeta a partir de seu território. Sulear é a forma como o Sul retoma seu território enquanto território real, autônomo e independente de criação de conhecimento.

Evidentemente, sulear não é um ato de trocar palavras meramente, mas de fincar os pés no chão do Sul e criar conhecimento a partir da experiência do sul. Da mesma forma, evitar o termo “descoberta” não é meramente uma troca de palavra por “colonização” ou “conquista”, mas é a própria mudança na produção de conhecimento na história e nos estudos culturais que envolvem o entendimento de um Sul que já tinha vida e história, que não precisava ser descoberto, como num ato iluminista de mostrar o que estava escondido pela escuridão, mas que foi ativamente subjulgado por um poder militar, por um objetivo político e econômico.

Sulear, portanto, é praticar uma mudança total de referências e descobrir, assim, uma gama de possibilidade que de fato ficam escondidas sob o véu ideológico do norteamento.

Referência

CAMPOS, M. A arte de sulear-se. IFGW e ALDEBARÃ: Observatório a Olho Nu, UNICAMP. Campinas, SP, 1991.

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