Tempo na sociedade líquida – Zygmunt Bauman

A sociedade do consumo prevê um uso ilimitado da velocidade com fim em diminuir os espaços e aumentar a possibilidade de acúmulo de experiências. A hesitação é desaconselhada em uma sociedade de tempos líquidos, em que a forma social do tempo pode ser representada pela alegoria ao pontilhismo. O tempo pontilhista exige a plena satisfação imediata dos objetivos de consumo e, ao mesmo tempo, exige a insatisfação por não ser possível satisfazer tal necessidade plenamente.

Índice

Introdução

Toda sociedade fabrica sua própria medida de tempo, sua própria forma de inserir um ritmo social na vida que é contruída em seu interior. O tempo, para além de sua característica física, linguística ou cronológica, contitui um nível social próprio. A este nível de observação do tempo chamamos de tempo social.

O tempo social dominante de uma sociedade é aquele que lhe permite cumprir os atos necessários para a produção dos meios que garantem sua sobrevivência, possibilitando a criação, manifestação, realização e atualização de seus valores fundamentais (OLIVA-AUGUSTO, 2002, p. 1).

A vida, então, em vez de ser universalmente experimentada enquanto linha reta, linear, tem suas próprias variações no interior de cada sociedade. A esfera social insere um elemento qualitativo no tempo, que se manifesta na maneira como o marcamos através dos dias, dos meses, de datas comemorativas ou das divisões do ano em estações entre outras formas de demarcar o ritmo social (MACHADO, 2012).

O objetivo deste artigo é expor a noção de tempo pontilhista conforme entendido por Zygmunt Bauman para descrever o funcionamento social do tempo nas sociedades líquidas.

Tempo pontilhista

Para Zygmunt Bauman, na modernidade líquida, época que carrega uma sociedade do consumo baseada na comoditificação das coisas e das pessoas, o tempo tende a desaparecer enquanto linearidade ou ciclicidade. Não é mais possível compreender o tempo linear como dominante pois a cultura do consumo não permite mais conceber um projeto de longo prazo e progresso gradativo, ao mesmo tempo, não é possível observar a ciclicidade do tempo como relevante para a experiência cotidiana. O tempo se granularizou:

Tal como experimentado por seus membros, o tempo na sociedade líquido moderna de consumidores não é cíclico nem linear, como costumava ser para os membros de outras sociedades. Em vez disso, para usar a metáfora de Michel Maffesoli, ele é pontilhista […] marcado tanto (se não mais) pela profusão de rupturas e descontinuidades, por intervalos que separam pontos sucessivos e rompem os vínculos entre eles, quanto pelo conteúdo específico desses pontos (BAUMAN, 2008, s.p.).

Um tempo pontilhista é um tempo dos momentos. O tempo em que cada momento tem um potencial de espaço e tempo infinitos, um potencial de infinitude, mas que, quando se vê finito, é descartado por uma nova reconstrução que deverá ser feita no momento seguinte.

É interessante perceber que o tempo considerado sob a ótica pontilhista é determinado retrospectivamente, sem que, do presente, se possa planejar o futuro. A história pessoal é traçada de maneira retrospectiva, para atender necessidades culturais de significado no presente.

O tempo pontilhista é mais proeminente por sua inconsistência e falta de coesão do que por seus elementos de continuidade e constância; nessa espécie de tempo, qualquer continuidade ou lógica causal capaz de conectar pontos sucessivos tende a ser inferida e/ou construída na extremidade final da busca retrospectiva por inteligibilidade e ordem, estando em geral conspicuamente ausente entre os motivos que estimulam o movimento dos atores entre os pontos (BAUMAN, 2008, s.p.).

A coesão retrospectiva dos pontos que já estão no passado do tempo acontece sob a forma de uma racionalidade que unifica o sujeito, por mais que este sujeito do consumo seja despedaçado, dividido entre todas as mercadorias que consome e entre todas as formas de mercadoria que ele próprio assume ao longo do tempo.

Cada momento é potencialmente um momento de mudança, de transformação brutal de si, afinal, a sociedade do consumo emerge sob um princípio da satisfação imediata que considera uma derrota postergar prazeres que podem ser experimentados imediatamente.

O tempo pontilhista é fragmentado, ou mesmo pulverizado, numa multiplicidade de “instantes eternos” – eventos, incidentes, acidentes, aventuras, episódios –,mônadas contidas em si mesmas, parcelas distintas, cada qual reduzida a um ponto cada vez mais próximo de seu ideal geométrico de não-dimensionalidade (BAUMAN, 2008, s.p.).

O tempo como potencialidade infinita

A metáfora do pontilhismo é relevante de uma maneira específica: na geometria euclidiana, entendemos que um ponto não tem largura, comprimento ou profundidade. Um ponto é somente um ponto e, por não ter estas características, é possível dizer que se situa num momento anterior ao tempo e ao espaço. “Num universo de pontos, espaço e tempo ainda estão para começar” (BAUMAN, 2008, s.p.).

Justamente por ainda estarem para começar, espaço e tempo carregam uma infinidade de possibilidade que o consumo poderá materializar. A vida social ou individual, em sua apreensão subjetiva ou na observação das relações sociais, será uma coletânea sem sentido de experiência com intensões variadas.

A vida pontilhista é preenchida pelo desperdício daquilo que não pôde ser experimentado: “um cemitério de oportunidades desperdiçadas” (BAUMAN, 2008, s.p.). O desperdício indica a necessidade de se adequar ao presente, adequar-se ao princípio do presente. O progresso, ou seja, a construção de um futuro gradativamente melhor que o presente manifestado a partir de projetos de sociedade é abandonada. Já é possível imagianr uma construção gradativa ou a projeção

de esforços humanos resultando em um edifício cada vez mais elegante e elevado, subindo dos alicerces ao teto, andar por andar, cada qual erigido com segurança sobre o que foi construído anteriormente, até o momento em que o topo é coroado com uma grinalda de flores para assinalar o término de um longo e diligente esforço (BAUMAN, 2008, s.p.).

A ausência de um contorno racional na criação de projetos de futuro é, inclusive, previsível. A ausência de um futuro é esperada, pois só assim sobra tempo ao presente e a intenção no ato presente com vistas ao futuro é, por sua vez, a exceção. Se retirar da lógica do consumo é se excluir do jogo social na cultural do consumo.

Cada ponto pode ter sido vivido como um começo total e verdadeiramente novo, mas se não houve um rápido e determinado estímulo à ação instantânea, a cortina pode ter caído logo após o começo do ato, com pouca coisa acontecendo no intervalo. A demora é o serial killer das oportunidades (BAUMAN, 2008, s.p.).

Desta forma, “perder tempo” é perder vida. É esta regra que torna a subjetividade constituída pela sociedade líquida em um núcleo de insatisfação individual, de impotência fundamental.

Considerações finais

A sociedade do consumo prevê um uso ilimitado da velocidade com fim em diminuir os espaços e aumentar a possibilidade de acúmulo de experiências. A hesitação é desaconselhada em uma sociedade de tempos líquidos, em que a forma social do tempo pode ser representada pela alegoria ao pontilhismo. O tempo pontilhista exige a plena satisfação imediata dos objetivos de consumo e, ao mesmo tempo, exige a insatisfação por não ser possível satisfazer tal necessidade plenamente.

Sim, é verdade que na vida “agorista” dos cidadãos da era consumista o motivo da pressa é, em parte, o impulso de adquirir e juntar. Mas o motivo mais premente que torna a pressa de fato imperativa é a necessidade de descartar e substituir (BAUMAN, 2008, s.p.).

O tempo pontilhista preconiza o descarte enquanto emula a acumulação. É mais importante a possibilidade de se desconectar do que a de se conectar.

Referências

BAUMAN, Z. Consumismo x consumo IN Vida para consumo, a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2008. Edição em ePub, s.p.

MACHADO, J. Reflexões sobre o Tempo Social. Revista Temática Kairós Gerontologia – Vulnerabilidade/Envelhecimento e Velhice: Aspectos Biopsicossociais, V. 15, Nº 6, pp. 11-22. São Paulo (SP), Brasil, 2012.

OLIVA-AUGUSTO, M. H. Tempo, indivíduo e vida social. Revista Ciência e Cultura, vol. 54, nº2, São Paulo, Oct./Dec de 2002.

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