Um lugar real, vários espaços incompatíveis – Michel Foucault

O terceiro princípio da heterotopologia de Michel Foucault está relacionado à convivência entre elementos estranhos entre si, elementos de natureza diversa. Reunidos, formam um espaço diferente, que tenta reproduzir uma situação ideal, mas no campo do real.

Da série “As heterotopias“.

O terceiro princípio da heterotopologia de Michel Foucault está relacionado à convivência entre elementos estranhos entre si, elementos não necessariamente relacionados por causalidade. “Em geral, a heterotopia tem como regra justapor em um lugar real vários espaços que, normalmente, seriam ou deveriam ser incompatíveis”[1].

Os espaços justapostos não estão aproximados ou distanciados por relações fixas, por uma estrutura, talvez por um tipo de correlação que fosse padronizado. Não é disso que se trata.


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Como exemplo de que tipo de justaposição entre incompatíveis se pode ver na haterotopia, Karoline Pereira utiliza o carnaval:

O espaço heterotópico do Carnaval também possui esse poder de reunir em um só local elementos desiguais, ou até mesmo opostos, como do sagrado com o profano, do sábio com o tolo, do elevado com o baixo, do grande com o insignificante, ou seja, qualquer espécie de desigualdade é eliminada, todas as barreiras hierárquicas são quebradas, há uma livre convivência entre os homens.[2]

Em tese, o carnaval desarranja as hierarquias sociais. Em conjunto a ele, Foucault apresenta o teatro e o cinema como heterotopias:

O teatro, que é uma heterotopia, perfaz no retângulo da cena toda uma série de lugares estranhos. O cinema é uma grande cena retangular, no fundo da qual, sobre um espaço de duas dimensões, projeta-se um novo espaço de três dimensões.[3]

No entanto, é no jardim em que Foucault exemplifica com mais detalhes. O jardim consegue unir elementos dispersos, às vezes naturalmente incompatíveis, às vezes esteticamente incompatíveis, mas reunidos formando parte constituinte de uma construção completamente única: utópica, mas real.

Porém, o mais antigo exemplo de heterotopia seria talvez o jardim, criação milenar que tinha certamente no Oriente uma significação mágica. O tradicional jardim persa é um retângulo dividido em quatro partes que representam os quatro elementos de que o mundo é composto, no meio do qual, no ponto de junção dos quatro retângulos, encontrava-se um espaço sagrado: uma fonte, um templo. E, em torno do centro, toda vegetação do mundo, toda a vegetação exemplar e perfeita do mundo devia estar reunida.[4]

Ao reunir exemplares naturais dos quatro cantos da terra e, ao centro, concentrar a simbologia sagrada do espaço, a heterotopia do jardim oriental explora a possibilidade de sair do lugar estando ainda nele, de experimentar o mundo estando situado num ponto específico do globo terrestre, de dominar a beleza do mundo sem necessariamente conquistá-lo.

Trata-se de uma utopia localizada, na medida em que definitivamente não há a realização do ideal de toda perfeita vegetação do mundo reunida em um Eden, mas há a realização específica desta utopia da exploração estética, da contemplação da totalidade da natureza. A utopia do total reproduzida no local, reproduzida de maneira específica, reproduzida fora do campo da utopia, ou seja, fora do campo do não lugar próprio às utopias e inserido como lugar real, apesar de outro.

Estes outros lugares são constituídos, na descrição de Gilson Costa, “pela ideia de que espaços se relacionam e se intercambiam, processo de existência em continuidade e intercessão”[5]. A existência do jardim oriental depende desse intercâmbio, da existência baseada tanto na continuidade como na intercessão. O carnaval também depende da continuidade do momento de festa, da continuidade do momento de simpatia generalizada, em conjunto com a intercessão das hierarquias sociais, que se cruzam, se opõem para, no fim, se alterarem.


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Figuras do desatino

Referências

[1] FOUCAULT, Michel. O corpo utópico / As heterotopias. Tradução de Salma Tannus Muchail. 1ª edição, São Paulo: N-1 edições, 2013, p. 24.

[2] PEREIRA, Karoline M. F. Corpo, interdição e heterotopia: a nudez do corpo da mulher no discurso da propaganda turística oficial brasileira. Dissertação de mestrado, Programa de pós-graduação em linguística do Centro de ciências humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), 2015, p. 55.

[3] FOUCAULT, Michel. O corpo utópico / As heterotopias… p. 24.

[4] FOUCAULT, Michel. O corpo utópico / As heterotopias… p. 24.

[5] DA SILVA, G. S. Arquivo, corpos difusos e espaços heterotópicos nas tiras da Laerte. Estudos Linguísticos (São Paulo. 1978), v. 50, n. 3, dez. 2021, p. 1346.

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