Vladimir Safatle – “Rumos da esquerda”

Na quinta-feira (29), Vladimir Safatle, ao lado de Luciana Genro e Ruy Braga, conduziu o debate “Rumos da esquerda”, que aborda a situação atual da militância de esquerda e as manifestações que se proliferam pelo país. O evento aconteceu no predio de ciências sociais da USP e a fala de Safatle pode ser lida na íntegra abaixo.

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Rumos da esquerda – Vladimir Safatle

Eu queria começar colocando uma questão que poderia ser anunciada da seguinte forma: “onde nós nos encontramos hoje”? Essa questão parece simples, no entanto ela não é, porque não é claro para alguns qual é a nossa posição atual, que momento que é esse que nós ocupamos o lugar hoje.

Pra muitos, esse momento não tem nenhuma especificidade, ele é repetição de momentos anteriores, ele é, simplesmente, a reconfiguração de coisas que já foram vistas; pra outros, que podem não ser muitos do ponto de vista numérico, mas que são muitos do ponto de vista de suas potencialidades e possibilidades, nós vivemos em um momento absolutamente singular. E eu acho que a primeira ciosa a se deixar claro é a singularidade do momento em que nós estamos agora. Este momento foi construído principalmente por uma juventude a qual vocês fazem parte, que tem hoje 20 e poucos anos e que, volto a insistir, é com certeza uma das juventudes mais impressionantes que esse país já teve nos últimos 40/50 anos.

Porque ela mostrou sua força de mobilização, ela conseguiu colocar em curto-circuito os poderes da república, ela conseguiu ficar semanas, meses, por exemplo, acampada em ocupações como na ocupação do Anhangabaú, simplesmente porque ela insistiu que exite um tempo que deveria parar, existe um tempo que deveria ser suspenso pra que outras coisas ocorressem.

foi assim que se começou, eu insistiria, a criação de novos sujeitos políticos, que é essa a grande característica do nosso momento. Nós estamos vendo um processo lento, doloroso, difícil, porém absolutamente necessário de criação de novos sujeitos políticos. Que falam uma nova linguagem, que levantam novas bandeiras, que absorvem bandeiras antigas e que misturam as bandeiras antigas com bandeiras que nunca foram pensadas. Que colocam no mesmo patamar a luta pela regulação econômica, a luta pela igualdade econômica radical e a luta pelo fim de uma biopolítica que tenta nos colonizar e dizer como nós devemos viver nossa vida, como você deve usar seu corpo, como você deve regular seus desejos, como você deve organizar seu tempo, como você estabelecer suas hierarquias e prioridades, quais são os papeis que você deve assumir, quais são as tradições que você deve respeitar ou não, ou seja, nós queremos tudo isso no mesmo patamar. Nós entendemos claramente que essas coisas são absolutamente indissociáveis.

Nós queremos ter a potencialidade criativa para construir a singularidade de nossas vidas. Que dá de maneira muito concreta o sentido da palavra liberdade, que não seja simplesmente uma propaganda publicitária pra vender margarina ou coisa parecida. Ou seja, há uma consciência nova que vai paulatinamente sendo organizada e muitas vezes ela se bate contra coisas que não esperava se bater, ela percebe dificuldades onde ela menos esperava, por exemplo, ela insiste com certeza e com a mais clara convicção de que existe uma experiência política que deve ser de fato inventada.

Ela não deve ser reinventada simplesmente para que você possa recolocar em circulação em momentos eleitorais certas personalidade e certos discursos políticos que desaparecem durante 4 anos. Ela não deve ser reinventada para que certas figuras que se dizem de esquerda e que, eu diria, têm um problema específico, que eles conjugam o vocabulário de uma esquerda muito peculiar que é a esquerda sazonal. A esquerda sazonal é aquela que de 4 em 4 anos aparece como esquerda, durante os outros 3 anos você naõ viu nada, o sujeito estava falando um outro discurso, falava uma outra linguagem, tinha outros amigos, de repente aparece em meio a sindicalistas dizendo, “lembra de 1968?, eu tava lá na barricada entre vocês na batalha, fazendo uma batalha que vocês estão fazendo, mas que na época vocês não participaram, mas que EU participei”.

Então, sazonalmente, de 4 em 4 anos eles aparecem, eles tiram um boné do Che Guevara que devem ter guardado em algum armário, “lembra de quando eu usava esse boné? Tá aqui! Cabe em minha cabeça!”, mas ninguém se engana, a gente já viu esse filme várias vezes, pelo menos é a terceira vez que esse filme passa. E pela terceira vez a gente já sabe mais ou menos como essa história termina, onde ela degrada, como vai degradar, onde as pessoas esquecem o que disseram e coisas dessa natureza.

Quando existe um setor muito forte de uma juventude que fala, “nós queremos uma política completamente diferente”, uma política que não tenha os vícios que a maioria das esquerdas tiveram, vícios dirigistas, vícios burocráticos, vícios de criar uma hegemonia tratorada, coisas que vocês vêm ainda hoje, mas querem um tipo de política que seja direta, que seja imanente, que seja baseada em uma confiança de fato na força da vontade de setores da população que não precisam ser dirigidos, que não precisam ser chamados por um poder executivo forte para que apareçam depois de maneira publicitária, mas que eles mesmos possam discutir e gerir, não só estabelecer decisões, mas também estabelecer processos de gestão cotidiana, uma modificação estrutural não só no processo de decisão, mas também no processo de gestão.

Nós sabemos quão complexo isso vai ser, sabemos o quão difícil vai ser, porque significa paulatinamente inventar uma experiência democrática que teve, em um ou outro momento, um vício. Chile e seus cordões policiais, a Islândia e suas experiência da constituição, são situações que nós vamos aos poucos percebendo que existe um tipo de política que é baseada na confiança no povo, mas não nesse tipo de confiança que diz que “primeiro estamos construindo as condições para que o povo apareça”, quer dizer, para que sua consciência apareça dentro de um processo, então poderemos confiar; mas não fazemos parte deste tipo de confiança, mas sim das que afirmam taxativamente que nós podemos ganhar os processos nas ruas e que não temos medo de nos confrontar nas ruas com aqueles que não são como nós e nem pensam como nós pensamos, muito pelo contrário, que querem um tipo de vida diferente, baseada no medo como afeto político central, que constitui vínculos, que barra experiência, que impede que as pessoas tenham sua força plástica e criativa de suas vidas, que elas ficam vinculadas àquilo que nem elas acreditam mais, mas no entanto, por medo, chegam à conclusão de que não têm outra saída.

Nós não temos problema de confrontar essas pessoas nas ruas, o problema é quando a política deixa de acontecer nas ruas, e nós temos que confrontar pessoas que nunca se sabe onde estão, como agem, quais são os poderes que mobilizam.

Então dentro deste processo existe a constituição de novos sujeitos políticos e dentro dessa constituição há um ponto interessante: essas pessoas têm uma característica, para ela não há mais tempo e isso significa duas coisas. Primeiro, elas procuram pela urgência, por um tempo que não pode mais esperar, elas conhecem uma certa covardia que gosta de se travestir com as formas da prudência, que diz que nós devemos ir aos poucos, sem violência, sem quebrar vidraças, pois quebrar vidraças de banco é uma atentado à democracia… Mas o próprio banco não é um atentado à democracia.

Ou seja, é necessário caminhar conservando o que se conquistou, avançar lentamente com mais segurança. Parece prudência, mas é só covardia. porque trata-se apenas da estratégia clássica de quem tira do horizonte as condições das transformações globais, estando disposto inclusive para apelar ao discurso do medo, um discurso baseado em argumentos do tipo, “se nós sairmos, tudo voltará a ser ainda pior”, ou seja, mesmo que nós não somos mais capazes de fazer as pessoas sonharem com um futuro diferente do que nós temos no presente, melhor deixarmos do jeito que está.

Quando a política chega nesse ponto, os autores que falaram essas frases morreram. Eles funcionam um pouco como naquele famoso sonho de Freud, na “Interpretação dos sonhos”, em que Freud sonha que está em uma mesa com familiares, aí está lá seu pai e Freud começa a chorar angustiado, porque ele vê seu pai falando com todo mundo, normalmente, como se nada tivesse acontecido: o problema é que ele não percebeu que estava morto. Continuava agindo sem perceber que havia morrido.

Então, quando o discurso do medo passa, tanto na direita quanto na esquerda sazonal, porque de fato nós estamos na situação freudiana de ter que puxar o pé de quem morreu e falar: seu tempo acabou.

Dizer que as pessoas não tem mais tempo – no caso, nós não temos mais tempo – significa também dizer que elas perderam o seu lugar. Ter tempo significa saber lidar com a ordem das coisas e encontrar um lugar no interior dessa ordem. Não ter mais tempo significa não encontrar um lugar para si mesmo e não temer afirmar isso com todas as forças. Significa ter a sensação de viver em um filme em que já se viu várias vezes, com personagens que dizem frases que nem mesmo acreditam, mas que precisam ser repetidas cerimoniosamente até porque não se sabe falar de outra forma.

Se nós ouvimos cada vez mais pessoas a dizer que não se sentem mais representadas, que não aceitam mais se organizar a partir das ordens tradicionalmente aceitas, que não fazem mais os cálculos que até agora pareciam os únicos cálculos possíveis, é porque essas pessoas, no fundo, têm consciência de que precisam habitar um tempo, por um tempo, um lugar sem tempo. E nesse lugar, eu reconheço, erra-se muito. Erra-se nos dois sentidos. Age-se de forma equivocada e entra-se em uma errança. Mas como dizia o velho Hegel, medo do erro esconde, muitas vezes, o medo da verdade. Ou seja, o medo, através dos erros, de criar condições de que uma experiência da ordem da verdade se produza.

Dentro desse processo vai se errar muito, pois você nunca imagina contra o que você realmente está lidando e quem de fato está contra você. Você nunca tem ideia, de fato, de qual é a batalha, onde ela está acontecendo, como está se dando, pois, afinal de contas, vocês está jogando outro tipo de batalha, tentando criar um outro tipo de situação, sem levar em conta afinal de contas, porque as situações antigas permaneceram por tanto tempo, como conseguiram se perpetuar.

Eu insistria em dizer que nós vamos errar muito. Mas, há, eu diria, aqueles que compreenderam que alguns vão tentar desqualificá-los, por meio de caricaturas, outros dirão que eles não sabem agir, no entanto, nós começamos um processo lento e difícil que vai nos permitir no final pensar e agir de uma outra forma.

Nosso país chegou num ponto de esgotamento e há de se dizer com clareza. O pior de tudo é a postura da pessoa que tem consciência do esgotamento e ainda ridiculariza aqueles que erram, pois eles aprenderam a se acomodar bem em uma descrença que eles gostam de chamar de “sabedoria”, de quem já haveria visto tudo. Sempre se tem boas justificativas para o cinismo e a mais usada delas é um certo ceticismo proto-esclarecido. Eu até diria que há aí um conflito de gerações e é importante compreender: nossa geração que tem 40 e poucos anos, quando tinha a idade de vocês, lá pelos 20 e poucos anos, só tinha duas preocupações – onde tinha a melhor rave de sexta-feira (na verdade era de segunda-feira), e como vai aprender a comer sushi, coisa “fundamental” num mundo em globalização, quando as portas estão se abrindo [para o mundo globalizado]. Essa geração, é a geração que quebrou o mundo, que foi pro sistema financeiro e quebrou completamente o mundo.

É a geração que fez uma crise que dá vergonha pra crise de 29. Essa geração é a primeira a dizer para vocês, que vocês estão completamente equivocados. É importante [pra ela] que vocês estejam equivocados, porque se vocês não estiverem equivocados, vocês poderão mesmo involuntariamente falar pra eles “viu? Havia uma outra forma de vida possível. Era possível fazer política de outra forma. Era possível achar um outro lugar e um outro espaço”. Ou seja, sua vida foi um equívoco.

Além de uma questão política, há uma questão psicológica, essas pessoas vão ficar até o fim dizendo pra vocês que não há nada acontecendo, que vocês não representam no fundo nada, que vocês não estão em lugar nenhum, que daqui há pouco tudo isso vai passar, que vocês vão começar a entrar na vida profissional, vocês vão entender o que significa a vida profissional dura, afinal de contas vocês vão ter contas pra pagar, vão pagar o imposto de renda, e a partir desse momento vocês vão ficar com raiva dos impostos, num processo quase “natural”, vocês exclamarão “meus deus, todo esse imposto, esse imposto vai pra onde? Eles tiram de mim!” e blá blá blá e todo esse choro e vocês vão chegar a uma coisa fantástica, impressionante, inacreditável que se chama: maturidade.

Vocês vão passar por esse estágio da vida muito bonito, vocês podem guardar umas fotos de vocês apanhando da polícia, depois vocês vão poder mostrar pros seus filhos e depois vocês começam a trabalhar cotidianamente, direitinho sem problema algum – isso que chamam de maturidade.

E mais do que isso, é a partir desse ponto que tentam desqualificar toda e qualquer experiencia política concreta e real que possa vir daqueles que não tem nenhuma razão pra acreditar naquilo que eles vêm como normal. Então, eu diria, neste momento não há nada pior do que esse ceticismo proto-esclarecido.

Eu prefiro a direita. A direita nua e dura do que esse tipo de ceticismo, porque a direita a gente bate, se confronta, pois é pior a descrença complacente do que a crença errada. No fundo o que eles querem é que a gente aprenda a viver sem ideias, sem confiança nas ideias, sem uma crença fundamental que faz o ser humano algo diferente do mero animal, a crença de que as ideias coloca o tempo em movimento. Sem as crenças não há nenhuma razão para continuarmos a sustentar o tempo de nossas vidas.

E é isso que eles querem. Nós estamos num momento onde nós estamos tentando dar voz a ideias que estão surgindo nos acontecimentos, estão em processo de insurgência, elas são difíceis, quer dizer, até nós conseguirmos identificá-las… pois muitas vezes se fala que as manifestações não têm nenhum programa, eu diria que se elas tivessem algum programa, elas seriam outra coisa, mas não uma manifestação.Uma manifestaçao é um processo no qual se coloca um tempo em movimento e paulatinamente as ideias começam a aparecer. Elas não aparecem do nada, não aparecem em gabinetes, não aparecem em livros de filosofia. Elas aparecem depois de terem aparecido na experiência concreta. O que querem é que não sintamos a experiência concreta. Melhor que o proto-esclarecimento cético é a postura de quem sabe que tudo está apenas começando.

Essa é a primeira vez na história recente do Brasil que um ciclo de poder se esgota sem que outro esteja em gestação. O esgotamento de um ciclo, é óbvio, não significa que partidos hegemônicos deixarão de ganhar as eleições, eles podem continuar ganhando (durante até um bom tempo), pois quando as coisas terminam, elas permanecem em degradação durante um bom tempo.

Dizer que um ciclo se esgota é dizer que essas figuras hegemônicas não serão mais representantes de potência de transformação alguma. Não terão mais força de transformação, de que há uma possibilidade em latência, que é necessário confiar no que está em latência, pois aquilo que está em latência, irá se manifestar em breve e se nós tivermos um cuidado com o que está em latência, nós teremos certeza de que nosso futuro não será uma repetição do presente.

Por isso, esses atores políticos tentarão reduzir a política a arte de fazer as pessoas deixarem de acreditar. A arte de fazê-las deixarem de acreditar que poderiam conseguir algo diferente do que o que elas já têm. Foi assim, durante algumas dessas últimas décadas, por exemplo, na Europa, com a sua divisão entre Conservadores e sociais-democratas. Uma divisão que foi se esvaindo até se tornar impossível diferenciar quem realmente estava no poder. Quais as políticas que realmente as diferenciam? Quem consegue falar isso com segurança no cenário europeu?

Nós estamos no mesmo processo no Brasil. Quem vai dizer com segurança que é possível depois do final de 2018 que há diferenças centrais, estruturais e decisivas entre o partido que está no governo e sua oposição comportada, que tentou ganhar a eleição? Uma coisa é certa, há cada vez mais setores da população, principalmente setores da juventude que não estão dispostos a viver atrás de diferenças mínimas, que não estão dispostos a procurar diferenças como no quadro de Malevich, “quadrado branco sobre fundo branco”.

Ou seja, não é possível nos colocar em uma situação política dessa natureza. Isso singifica retirar tudo aquilo que a política tem e que faz dela a maior atividade humana pensável. A atividade mais importante do homem que é essa capacidade que a política tem em produzir o que até então não tinha figura, produzir o inexistente. Ela faz com que as pessoas se transformem, ela dá coragem pras pessoas que até então não tinham coragem, ela faz as pessoas falarem frases que nem mesmo elas sabiam que elas seriam capazes de procurar. Ela faz as pessoas agirem de uma maneira tal que nem mesmo elas sabiam que seriam capazes de agir. Elas sempre agem a mais do que seus meros interesses individuais, elas agem além disso, com uma força que elas nem sabem de onde sai. E é essa a grande força da política e é isso que estão tentando roubar da política.

Estão tentando roubar a sua incrível beleza de fazer com que aqueles que então eram descrente possam ter força. Aqueles que não sabiam como constituir sua vida, pois não sabiam como colocar suas vidas dentro das vidas possíveis, construam uma vida impossível. Esta característica da política está sendo roubada e ninguém irá fazer um assalto desta maneira impunemente – nós vamos lutar pela beleza da política até o fim.

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