A descontinuidade do espaço presente – Michel Foucault

A heterotopia é o espaço do estar e não estar, do ser e não ser, é o espaço em que a norma é invertida numa relação de descontinuidade com o próprio presente, já que se abre um novo espaço dentro do espaço normatizado e um novo presente dentro do espaço-tempo normatizado. É a possibilidade de um tipo específico de prática de liberdade, de um tipo específico de contraposição ao poder a partir de uma tática, de uma irrupção de um presente novo no seio do presente estabelecido.

Da série “As heterotopias“.

Na medida em que a heterotopia é um espaço em que se está e, ao mesmo tempo, não se está, conclui-se que se trata de um espaço que transita entre o real e o irreal. O real e o imaginado. Entretanto, este espaço real e ao mesmo tempo imaginado se situa num campo conceitual da utopia real, ou seja, da utopia que, colocada na realidade concreta, faz emergir um espaço de normas diferentes daquelas observadas ao seu redor.


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Do ponto de vista do sujeito, são lugares de se estar e, ao mesmo tempo, de não estar. Lugares em que, ao estar, se ausenta da realidade concreta enquanto se fixa nela. A passagem do sujeito pela heterotopia, uma passagem higienizada e ritualizada, transforma também o sujeito: o sujeito que entra na heterotopia não é o mesmo que está do lado de fora. Segundo Daniel Defert:

Essas unidades espaço-temporais, esses espaços-tempos têm em comum serem lugares onde estou e não estou, como o espelho ou o cemitério; ou onde sou outro como na casa de tolerância, na colônia de férias ou na festa, carnavalizações da existência ordinária. Eles ritualizam cortes, limiares, desvios e os localizam.[1]

Lugares onde estou presente e, ao mesmo tempo, ausente de toda realidade. Lugares que me fazem ser meu inverso, ou seja, que invertem os valores que associo ao meu corpo, que invertem a lógica que associo à minha socialização. Locais de inadequação adequada.

Michel Foucault afirma que heterotopias existem em quaisquer sociedades. Por definição, a demarcação social de um espaço cria necessariamente seu lado de fora e, a normatização de um espaço, cria necessariamente emergências de anormalidade. A norma só existe em contraposição ao que não é normal, desta forma, a norma pressupõe a existência do que não é norma. A existência vegetariana e abstêmia do Brâmane indiano pressupõe os espaços de transgressão vigiada à norma.

A existência universal da heterotopia não é concreta, mas conceitual: concretamente, elas assumem sua própria forma nas diferentes sociedades. Assim como os espaços são particulares, os contra espaços também são. Daniel Defert nos ajuda também nesta questão:

As normas humanas não são todas universalizáveis: as da disciplinarização do trabalho e as da transfiguração pela festa não podem desenrolar-se na linearidade de um mesmo espaço ou de um mesmo tempo; é preciso uma forte ritualização das rupturas, dos limiares, das crises. Estes contraespaços, porém, são interpenetrados por todos os outros espaços que eles contestam: o espelho onde não estou reflete o contexto onde estou, o cemitério é planejado como a cidade, há reverberação dos espaços, uns nos outros, e, contudo, descontinuidades e rupturas. Há, enfim, como que um eterno retorno desses rituais espaço-temporais e, se não universalização das mesmas formas, ao menos uma universalidade de sua existência.[2]

E o Carnaval pode ser localizado facilmente neste espaço presente que, ao mesmo tempo, se faz como espaço de uma ausência ou de uma transformação. No Carnaval, a realidade de sua data e de sua comemoração localizam na realidade concreta a sua realização, o seu fazer-se real, entretanto, os rituais de passagem que permitem a entrada e a participação no evento transformam um sujeito civilizado em seu oposto: numa figura descentrada, invertida, entregue a uma luxúria e a um divertimento inadequados, entretanto normatizados neste momento de inadequação. A inadequação se faz adequada.

Karoline Pereira retoma o evento do Carnaval como outro espaço e o compara com a figura do espelho exemplificada por Michel Foucault:

Diante disso, podemos afirmar que o Carnaval é um espaço heterotópico, tendo em vista que é real, já que é uma festa popular que acontece com data certa e local previamente demarcado; porém, é também utópico, pois ele representa uma realidade fantasiosa e ritualística, na qual é permitida a homens e mulheres uma liberdade de comportamento, de relacionamento e de vestuário, que não é possível em outro momento; sendo, portanto, um espaço misto, assim como o espelho de Foucault.[3]

A autora continua sua argumentação acerca do Carnaval enfatizando o próprio desfile das escolas de samba: quando se retrata, por exemplo, o Nordeste brasileiro num samba-enredo e num desfile, o nordeste que é retratado está delimitado por um escopo específico da criação artístico-literária que o evento permite, “enfatizando-se sua cultura, sua história, seus heróis, seus personagens míticos e seus estereótipos com seus símbolos identitários”[4]. É possível trazer Daniel Defert novamente, já que o espaço do Carnaval e do desfile temático representam “rupturas da vida ordinária, imaginários, representações polifônicas da vida, da morte, do amor, de Éros e Tánatos”[5].

O Carnaval é o espaço do estar e não estar, do ser e não ser, é o espaço em que a norma é invertida numa relação de descontinuidade com o próprio presente, já que se abre um novo espaço dentro do espaço normatizado e um novo presente dentro do espaço-tempo normatizado. Uma abertura se faz dentro do próprio fechamento da sociedade e este fechamento é a criação de um contraespaço, é a possibilidade de um tipo específico de prática de liberdade, de um tipo específico de contraposição ao poder a partir de uma tática, de uma irrupção de um presente novo no seio do presente estabelecido.


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Figuras do desatino

Referências

[1] DEFERT, Daniel. “Heterotopia”: tribulações de um conceito entre Veneza, Berlim e Los Angeles IN FOUCAULT, Michel. O corpo utópico / As heterotopias. Tradução de Salma Tannus Muchail. 1ª edição, São Paulo: N-1 edições, 2013, p. 37.

[2] DEFERT, Daniel. “Heterotopia”: tribulações de um conceito entre Veneza, Berlim e Los Angeles… p. 37-38.

[3] PEREIRA, Karoline M. F. Corpo, interdição e heterotopia: a nudez do corpo da mulher no discurso da propaganda turística oficial brasileira. Dissertação de mestrado, Programa de pós-graduação em linguística do Centro de ciências humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), 2015, p. 53.

[4] PEREIRA, Karoline M. F. Corpo, interdição e heterotopia: a nudez do corpo da mulher no discurso da propaganda turística oficial brasileira… p. 53.

[5] DEFERT, Daniel. “Heterotopia”: tribulações de um conceito entre Veneza, Berlim e Los Angeles… p. 38.

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