Índice
Introdução
A lei da sinceridade corrobora com o princípio da cooperação e funciona de maneira constitutiva na prática discursiva. Esta lei é descrita por Dominique Maingueneau como aquilo que “diz respeito ao engajamento do enunciador no ato de fala que realiza”[1]. Ou seja, é relacionada ao compromisso em forma de atividade do sujeito que fala com aquilo que foi dito:
Cada ato de fala (prometer, afirmar, ordenar, desejar etc.) implica um determinado número de condições, de regras do jogo. Por exemplo, para afirmar algo, deve-se estar em condições de garantir a verdade do que se diz; para dar uma ordem, deve-se querer que a ordem seja obedecida, não ordenar alguma impossível ou já realizada etc.[2]
Este comprometimento ativo, portanto este engajamento, não está no nível das coisas nem no nível das palavras, mas no nível do desenrolar da prática discursiva: ordenar que uma coisa que já foi feita seja feita novamente pode ter suas causas psicológicas, mas o relevante é que se parte do princípio que quem ordenou está engajado com a ordem, ou seja, a falta está no desconhecimento sobre o resultado já obtido pela realização anterior da mesma ordem, não na suposta malícia ou ingenuidade do sujeito que ordena uma ordem impossível ou irrelevante.
A relação sincera entre o enunciador e seu ato de fala atua como elemento constitutivo da própria possibilidade do enunciador fazer parte de uma prática discursiva em conjunto com outros sujeitos. O desenrolar de uma conversa depende do engajamento do enunciador com seus enunciados e, mesmo numa conversa em que o engajamento com o ato de fala é irônico, a ironia constitui justamente o engajamento proposto pelo ato de fala: se é engajado com a ironia presente no ato de fala em seu contexto. Entende-se, assim, que, enquanto condição para a prática discursiva, a lei da sinceridade permite a própria existência da troca de signos verbais em contextos sociais, pois uma troca de signos verbais sem a sinceridade não sobreviveria ao encadeamento de enunciados entre o eu (o enunciador) e o outro (o destinatário, que, por sua vez, se tornaria o enunciador insincero em seu momento de prática discursiva fora da lei).
O objetivo deste artigo é esmiuçar a lei da sinceridade conforme explicado por Dominique Maingueneau em Análise de textos de comunicação.
Atos de fala
Quando algo é dito, se diz em determinadas circunstâncias, em uma certa temporalidade específica, em uma certa situação adequada, enfim, de tal forma que o dito é parte integrante do não dito, dos elementos não presentes nas sentenças enunciadas por um sujeito. Estes elementos, quando considerados na análise de um enunciado, restringem, sugestionam o sentido específico que pode ser observado nas sentença ditas. Uma sentença, portanto, não adquire seu sentido somente da lógica gramatical e sintática presente em seu conteúdo na medida em que a língua não é utilizada unicamente como forma de descrever coisas.
A declaração de coisas, que poderia passar por um critério de verdadeiro ou falso, não limita o uso da língua, que também pode ser observada em uso a partir de enunciados cuja realização movimenta um estado de coisas. “Todos terão, como é natural, verbos usuais na primeira pessoa do singular do presente do indicativo da voz ativa”[3].
John Austin, em seu Quando dizer é fazer[4], recorta um tipo de sentença que, inicialmente, não se encaixa na categoria de descritiva, não relata e não constata nada. Ao mesmo tempo, também não pode ser observado sob os critérios de “falso” e “verdadeiro”. Além disso, este tipo recortado é, por si só em sua realização, já uma ação, seja parcial ou total. Por exemplo: o enunciado “O dia está quente” descreve o clima do dia presente, entretanto, o enunciado “Eu prometo” num casamento cristão em nada tem de descritivo ou constatativo. Não se trata da descrição da promessa ou da constatação de que ela foi feita, trata-se, de fato, de se casar.
Austin classifica estes tipos de proferimentos como performativos. O nome indica que “ao se emitir o proferimento está-se realizando uma ação, não sendo, consequentemente, considerado um mero equivalente a dizer algo”[5]. Uma característica das situações de enunciação de sentenças performativas é que elas não se realizam somente através da sentença dita:
Genericamente falando, é sempre necessário que as circunstâncias em que as palavras forem proferidas sejam, de algum modo, apropriadas: frequentemente é necessário que o próprio falante, ou outras pessoas, também realize determinadas ações de certo tipo, quer sejam ações “físicas” ou “mentais”, ou mesmo o proferimento de algumas palavras adicionais.[6]
Austin segue sua elaboração considerando que inclusive as sentenças declaratórias seriam atos: o ato de falar, o ato de fala, ao ocorrer, movimenta até três tipos de atos específicos: os 1) atos locucionários (o ato de dizer algo através da produção de sons que pertençam ao mesmo vocabulário e atendam a sintaxe e semântica); 2) atos ilocucionários (que traduz a realização de uma ação através do enunciado) e 3) atos perlocucionários (que produzem efeitos no próprio interlocutor). Desta forma, a própria divisão entre aquilo que se diz de maneira não performática também estaria na classificação de ato: pois o ato de dizer (locucionário) se distingue do ato ao dizer (ilocucionário) ou ao ato de dizer para causar efeito no alocutário (perlocucionário).
Em suma, o objetivo desta seção foi descrever, grosso modo, como se caracteriza um ato de fala, cujo locutor deve se manter engajado. Ou seja, o ato que, ao ser realizado, implica em uma série de comprometimentos com o dito, na medida em que, em seu dizer, já é ato, não mera descrição.
Sinceridade e verdade
Na medida em que o ato de fala se define pelo dito, pelas circunstâncias e pelo efeito no alocutário, então, o critério de validade para um ato de fala não se relaciona à verdade do dito (em oposição ao falso que estaria no erro possível do conteúdo dito), mas a sua eficiência. O ato de fala não é verdadeiro: é eficiente ou ineficiente; feliz ou infeliz, nos termos de John Austin.
Na medida em que o ato de fala se realiza através do dizer, das circunstâncias e do efeito no alocutário, este ato, por si só, necessita de sinceridade quando inserido num contexto conversacional ou de prática discursiva. A promessa que não pode ser cumprida é uma má promessa e a cooperação dos participantes em cena articula este não cumprimento como uma infelicidade passível de correção ou como completa ilegitimidade do parceiro na situação de enunciação. Segundo Maingueneau:
Por exemplo, para firmar algo, deve-se estar em condições de garantir a verdade do que se diz; para dar uma ordem, deve-se querer que a ordem seja obedecida, não ordenar alguma coisa impossível ou já realizada etc. A lei da sinceridade não será respeitada se o enunciador enuncia um desejo que não quer ver realizado, se afirma algo que sabe ser falso etc.[7]
A manipulação ou mentira, por exemplo, não é um elemento que anula a eficiência da lei da sinceridade: o ato de fala se mantém até ser demonstrado infeliz e então para de ter sua realização eficiente. E o processo de deixar de ter sua sinceridade pressuposta está na consideração sobre o destinatário que o gênero do discurso organiza na situação: o parceiro manipulador ou mentiroso não é mais legítimo.
Considerações finais
Entende-se que a lei da sinceridade é constitutiva à prática discursiva: a necessidade da sinceridade não é somente normativa, mas se atualiza na realização dos atos de fala numa troca verbal. Seu caráter constitutivo pode ser visto nas maneiras de como, mesmo quando socialmente inadequada, a sinceridade ainda se faz como elemento central na prática discursiva:
O fato de que a língua dispõe de advérbios de enunciação como “francamente” ou “sinceramente”, por exemplo, mostra-nos que essa lei entra às vezes em conflito com outras, relativas à polidez, uma vez que, normalmente, não deveria ser necessário esclarecer que se está falando “francamente”…[8]
E mesmo em situações de manipulação, a sinceridade pressuposta pode entrar em conflito com a realidade e deslegitimar o parceiro da prática.
Referências
[1] MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2004, p. 35.
[2] MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação… p. 35.
[3] AUSTIN, John. Quando dizer é fazer. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990, p. 24.
[4] AUSTIN, John. Quando dizer é fazer… p. 24.
[5] AUSTIN, John. Quando dizer é fazer… p. 25.
[6] AUSTIN, John. Quando dizer é fazer… p. 26.
[7] MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação… p. 35.
[8] Idem.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.