O princípio de cooperação – Dominique Maingueneau

Trata-se de um princípio constitutivo para a comunicação verbal, não de uma norma a ser acatada: a cooperação é o princípio que permite a existência e eficiência das normas de fato, na medida que, pelas normas serem explícitas e ordenadas, precisam do reconhecimento mútuo entre enunciador e destinatário, entendimento de que a comunicação é impositiva e a utilização de mensagens verbais à comunicação da norma. Não há norma sem cooperação.

Índice

Introdução

Ainda no momento inicial de elaboração da análise do discurso enquanto disciplina, Michel Pêcheux refletiu sobre as condições de produção do discurso e delimitou uma situação específica conceituada sob o nome de formações imaginárias, formações de imagens que são estabelecidas entre o sujeito e o outro no processo de produção do discurso. Gostaria de iniciar este artigo a partir destas formações.

As formações imaginárias funcionariam sob o seguinte esquema[1]:

  • De A para A: “Quem sou eu para lhe falar assim?”;
  • De B para A: “Quem é ele para que eu lhe fale assim?”;
  • De B para B: “Quem sou eu para que ele me fale assim?”
  • De A para B: “Quem é ele para que me fale assim?”

Depois, passa para as impressões dos sujeitos postos ao referente (R):

  • De A sobre R: “De que lhe falo assim?”;
  • De B sobre R: “De que ele me fala assim?”.

A partir de tais colocações, é possível compreender que a noção de formação imaginária coloca em jogo as imagens que permite o próprio desenrolar do discurso. Cabe, numa sala de aula, que o discurso escolar seja 1) proferido por um professor, 2) escutado por um aluno e 3) que ambos se reconheçam em suas posições e, independentemente da maneira como isso irá acontecer, que ambos colaborem com as posições reconhecidas um no outro – nem que essa colaboração seja à luta, como num discurso de um político de oposição frente a uma plateia de políticos de situação.


Receba tudo em seu e-mail!

Assine o Colunas Tortas e receba nossas atualizações e nossa newsletter semanal!


Não basta, ao sujeito A do esquema acima, compreender intuitivamente que o outro é um sujeito diferente de si: é necessário entender a si próprio em relação ao outro e, em seguida, o outro em relação a si. As formações imaginárias descrevem imagens de relações: representam as relações imaginárias dos sujeitos entre si. Se os indivíduos são interpelados em sujeitos pela Ideologia, então as formações imaginárias representam as relações imaginárias dos indivíduos concretos interpelados em sujeitos concretos com outros indivíduos concretos submetidos ao mesmo processo de interpelação ideológica. A formação imaginária estabiliza a própria possibilidade comunicação: entre dois desconhecidos, o esquema exposto anteriormente poderia ser preenchido pela consideração simples de que haverá um eu e um outro. A partir deste corte radical, a situação pode se desenrolar com a prática de um discurso de senso comum, com um tema abrangente, mas sempre como aposta, na medida em que há um outro.

O corte radical entre o eu o outro acontece na percepção subjetiva da situação, mas numa dada situação, tanto o eu como o outro, apesar de separados, participam de relações constitutivas que possibilitam a própria situação de enunciação. Eu e outro são separados a partir de considerações psicológicas – risco que Pêcheux correu ao elaborar a noção a partir de uma descrição situacional – mas num ponto de vista discursivo, o outro se encontra no eu. A formação imaginária, portanto, termina por esquematizar a presença do outro no eu na medida em que os liga de maneira indissociável.

Entretanto, entre o eu e o outro, há uma necessidade simples porém imperiosa: há necessidade da cooperação. Cooperação não significa harmonia: a cooperação necessária não se refere ao conteúdo dito na situação, mas sim ao tema, ao objeto, aos elementos que podem ou não entrar num campo de razoabilidade acerca das considerações do tema. “Os parceiros devem compartilhar um certo quadro e colaborar para o sucesso dessa atividade comum que é a troca verbal, em que cada um reconhece seus próprios direitos e deveres, assim como os do outro”[2]. O objetivo deste artigo é comentar o princípio da cooperação, lei superior do discurso[3], segundo Dominique Maingueneau.

Cooperação tácita

Considerado como uma lei do discurso, o princípio de cooperação não expressa um conjunto de normas à conversação ideal. Não se trata de uma lei normativa, ou seja, de uma lei exterior aos sujeitos que os coagiria externamente a obedecerem conscientemente e voluntariamente seus desígnios para a realização de uma conversa. O princípio de cooperação é uma regra, desta forma, é constitutivo à própria comunicação. Sua aceitação tácita é prática, na medida em que somente através disso é possível, por exemplo a comunicação de conteúdos implícitos.

Domonique Maingueneau utiliza dois exemplos: uma placa com os dizeres “Não fume” transmite de maneira clara a proibição do ato de fumar no local em que a mesma placa está pendurada. No entanto, e este é o segundo exemplo, se a placa estivesse inserida em uma sala de espera de “um renomado guru indiano. Essa proibição parece estranha, entretanto, o leitor provavelmente não vai se prender a um diagnóstico de estranheza”[4]. A estranheza é o privilégio daqueles que não estão inseridos na cena enunciativa, daqueles que não foram interpelados pelo discurso que contém o espiritualismo indiano.

O raciocínio de um sujeito presente na sala de espera de um guru indiano renomado provavelmente levará os dizeres da placa à sério, ou seja, compreenderá que deve haver um sentido não literal na mensagem da placa e, na medida em que não há apoios para a interpretação não literal, ela está lá para ser alcançada. Desta forma, a cooperação na situação enunciativa, em termos pecheuxtianos, acontece com sujeitos interpelados pela formação ideológica e depois pela formação discursiva presentes no espaço em questão.  Tal interpelação seria capaz de entregar os pré-construídos necessários aos entendimentos implícitos ou, ao menos, o caminho implícito para se chegar até uma resposta razoável acerca da mensagem na placa.

Dominique Maingueneau, a partir do exemplo citado, define duas formas de implícitos: subentendidos e pressupostos.

Esse tipo de implícito que se evidencia pelo confronto do enunciado com o contexto de enunciação, postulando-se que as leis do discurso são respeitadas, é denominado subentendido. Em geral, opõe-se o subentendido a um outro tipo de implícito, os pressupostos, que vêm inscritos no enunciado.[5]

Como pressuposto, entende-se a prática regressa do fumo na frase “Marcos deixou de fumar”.

Entretanto, a cooperação não existe para que sujeitos entendam implícitos. A cooperação é a condição a este entendimento. Ou seja, a cooperação não existe para que um sujeito a utilize instrumentalmente para entender um significado implícito, mas é a cooperação que permite a forma implícita da comunicação, na medida em que, sem ela, não haveria qualquer garantia dada de que realmente uma conversa se trata de uma conversa, em vez de dois monólogos. A existência prática da comunicação é dado empírico da existência de uma regra tácita constitutiva: ou se coopera ou não se comunica coerentemente.

Considerações finais

O princípio de cooperação circula por uma situação específica em que há 1) normas para reger a comunicação, 2) reconhecimento mútuo entre os parceiros da comunicação conforme exemplificado pelo esquema das formações imaginárias e 3) a prática da fala em diferentes gêneros do discurso.

Trata-se de um princípio constitutivo para a comunicação verbal, não de uma norma a ser acatada: a cooperação é o princípio que permite a existência e eficiência das normas de fato, na medida que, pelas normas serem explícitas e ordenadas, precisam do reconhecimento mútuo entre enunciador e destinatário, entendimento de que a comunicação é impositiva e a utilização de mensagens verbais à comunicação da norma. Não há norma sem cooperação. Da mesma maneira, não há relação de poder sem sujeitos livres que, no limite conflituosamente, “cooperam”.

E-books foucaultianos.

Referências

[1] ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. 3 ed. Lisboa: Editorial Presença/Martins Fontes, 1980, p. 77.

[2] MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2004, p. 32.

[3] Idem. “[Paul] Grice coloca essas leis na dependência de uma lei superior, que ele chama de princípio de cooperação”.

[4] Idem.

[5] MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação… p. 33.

a ideologia representa a relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência

Deixe sua provocação! Comente aqui!