A loucura em René Descartes – DROPS #12

DESCARTES, René. Meditações. 2º ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005 (Clássicos), p. 31-33.

Tudo o que recebi até o presente como mais verdadeiro e seguro, aprendi-o dos sentidos ou pelos sentidos; ora, algumas vezes experimentei que tais sentidos eram enganadores, e é de prudência jamais confiar inteiramente naqueles que uma vez nos enganaram.


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Mas, ainda que os sentidos nos enganem algumas vezes no tocante às coisas pouco sensíveis e muito distantes, talvez se encontrem muitas outras, das quais não se pode razoavelmente duvidar, conquanto as conheçamos por meio deles: por exemplo, que estou aqui, sentado perto do fogo, vestido com um roupão, com este papel entre as mãos, e outras coisas dessa natureza. E como é que eu poderia negar que estas mãos e este corpo sejam meus? A não ser, talvez, que me compare com aqueles insensatos[1] cujo cérebro é de tal maneira perturbado e ofuscado[2] pelos negros vapores da bílis[3], que asseguram constantemente que são reis quando paupérrimos, que estão vestidos com ouro e púrpura, quando estão de todo nus, ou imaginam ser cântaros, ou ter um corpo de vidro[4]. Mas quê? São loucos[5], e eu não seria menos extravagante se me regrasse por seus exemplos[6].

Todavia, tenho de considerar aqui que sou homem e, por conseguinte, que costumo dormir e representar-me em meus sonhos as mesmas coisas, ou algumas vezes menos verossímeis, que aqueles insensatos quando estão em vigília. Quantas vezes aconteceu-me sonhar, à noite, que estava neste lugar, que estava vestido, que estava junto ao fogo, embora estivesse todo nu em minha cama? Parece-me presentemente que não é com olhos adormecidos que olho este papel, que esta cabeça que remexo não está dormente, que é com desígnio e propósito deliberado que estendo esta mão e que a sinto: o que acontece no sono não parece tão claro nem tão distinto quanto tudo isto. Mas, pensando nisso cuidadosamente, lembro-me de ter sido freqüentemente enganado, quando dormia, por semelhantes ilusões. E, detendo-me nesse pensamento, vejo tão manifestamente que não há indícios concludentes nem marcas bastante certas por onde se possa distinguir nitidamente a vigília do sono, que fico muito espantado, e meu espanto é tal que é quase capaz de persuadir-me de que eu durmo.

Suponhamos então, agora, que estamos adormecidos e que todas estas particularidades, a saber, que abrimos os olhos, que remexemos a cabeça, que estendemos as mãos, e coisas semelhantes, são apenas falsas ilusões; e pensemos que talvez nossas mãos, e também todo nosso corpo, não são tais como os vemos. Todavia, há que confessar, pelo menos, que as coisas que nos são representadas no sono são como quadros e pinturas, que só podem ser formadas à semelhança de algo real e verdadeiro; e que, assim, pelo menos essas coisas gerais, a saber, olhos, uma cabeça, mãos e todo o resto do corpo, não são coisas imaginárias, mas verdadeiras e existentes. Pois na verdade os pintores, mesmo quando se esforçam com o maior artifício em representar sereias e sátiros com formas esquisitas e extraordinárias, não lhes podem, todavia, atribuir formas e naturezas inteiramente novas, mas fazem somente certa mistura e composição dos membros de diversos animais; ou então, se talvez sua imaginação for bastante extravagante para inventar algo de t;1o novo que jamais tenhamos visto nada de semelhante, e que assim sua obra nos represente uma coisa puramente fingida- e absolutamente falsa, por certo no mínimo as cores com que eles o compõem elevem ser verdadeiras.

E pela mesma razão, ainda que essas coisas gerais, a saber, olhos, uma cabeça, mãos e outras semelhantes, possam ser imaginárias, é preciso confessar todavia que há coisas ainda mais simples e mais universais, que são verdadeiras e existentes, da mistura das quais, nem mais nem menos que daquela de algumas cores verdadeiras, todas essas imagens das coisas que residem em nosso pensamento, sejam verdadeiras e reais, sejam fingidas e fantásticas. são formadas. Desse gênero de coisas é a natureza corpórea em geral e sua extensão, também a figura das coisas extensas, sua quantidade ou grandeza e seu número, bem como o lugar onde estão, o tempo que mede sua duração, e outras coisas semelhantes.

 – René Descartes.

Notas

Todas as notas são minhas com exceção dos trechos citados e indicados.

[1] A referência à loucura;

[2] A ofuscação é característica utilizada por Foucault para definir o desatino: uma razão ofuscada, ou seja, uma razão que não só erra como contém um juízo baseado numa negatividade: o juízo não é do erro, não é errante, mas é justamente do não-erro, ou seja, da paralisia perante a verdade e o falso e, na reflexão cartesiana, paralisia perante o cogito. A ligação do homem com a verdade é destruída perante a loucura;

[3] Esses movimentos corporais em conjunto com elementos espirituais (ou ideais) aparecem nas explicações acerca das paixões e sua importância na emergência da loucura;

[4] Na medida em que, em seu não-erro, o louco engana-se. A loucura é um nada e o louco, um não-ser. Seu erro não é positivo, não é proposto, é resultado de uma cegueira, de uma enganação, é negativo. A liberdade corrompida termina em um erro ético fundamental, mas não retira a responsabilidade da escolha.

[5] “Corresponde ao latim amentes, ou seja, pessoas despossuídas de mente ou espírito, em suma , de pensamento, justo o que Descartes encontrará de mais verdadeiro em si mesmo”, nota do próprio livro. Ou seja, a hipótese da loucura é rejeitada por Descartes na medida em que ela é a condição de impossibilidade do pensamento.

[6] “Extravagante traduz demens, aquele que perdeu a mente, afastou-se dela”, nota do próprio livro. Na medida em que traduz a impossibilidade do pensamento, a loucura é vazia, é a ausência da mente.

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