“Sempre desconfiei um pouco do tema geral da libertação, na medida em que, caso não o tratemos com algumas precauções e no interior de determinados limites, corre-se o risco de recorrer à ideia de que existe uma natureza ou um fundo humano que tem sido mascarado, alienado ou aprisionado em e por mecanismos de repressão, como consequência de um determinado número de processos históricos, econômicos e sociais. Caso seja aceita esta hipótese, bastaria saltar estes bloqueios repressivos para que o homem se reconciliasse com ele próprio, para que se reencontrasse com sua natureza ou retomasse o contato com sua origem, restaurando uma relação plena e positiva com ele próprio.
Parece-me que este pensamento não pode ser admitido de qualquer jeito, sem ser previamente submetido ao exame. Com isto não quero dizer que a libertação, ou melhor, determinadas formas de libertação, não existam. Quando um povo colonizado tenta se libertar de seu colonizador, estamos diante de uma prática de libertação em sentido estrito. Porém, sabemos muito bem que, também neste caso concreto, esta prática de libertação não basta para definir as práticas de liberdade que serão a continuidade necessária para que este povo, esta sociedade e estes indivíduos possam definir formas válidas e aceitáveis de existência ou formas mais válidas e aceitáveis naquilo que se refere à sociedade política. Por isso, insisto mais nas práticas de liberdade do que nos processos de libertação que, é preciso dizer mais uma vez, possuem seu espaço, mas que não podem por eles mesmos, em minha opinião, definir todas as formas práticas de liberdade. Estamos diante de um problema do qual tenho me ocupado, justamente na relação com a sexualidade. Faz sentido dizer “libertemos nossa sexualidade”? O problema não consiste mais em tentar definir as práticas de liberdade, por meio das quais poderia se definir o que é o prazer sexual, as relações eróticas, amorosas e passionais com os outros? Este problema ético, da definição das práticas de liberdade, parece-me muito mais importante do que a afirmação, um tanto batida, de que é necessário libertar a sexualidade ou o desejo” (FOUCAULT, 2013) .
Neste trecho da entrevista realizada por Raúl Fornet-Beancourt, Michel Foucault (2013) revela sua desconfiança acerca do tema da libertação. Uma desconfiança localizada nas bases da busca pela libertação. Eu diria que a mesma desconfiança está na base da busca pela emancipação. Para realizar um princípio de análise sobre a desconfiança que o autor apresenta em sua fala, é necessário expôr o que seria esta libertação ou essa emancipação.
Pretendo inserir três visões específicas sobre assunto, sendo uma de Theodor Adorno, uma de Jean-Paul Sartre e uma de Jacques Rancière:
- Para Adorno (1995), a emancipação é a condição de existência de indivíduo não-menorizado, presente sempre uma sociedade livre e desenvolvido através da educação. No contexto histórico em que Adorno versa sobre a emancipação, ela é oposta à experiência histórica do fascismo e da subserviência ao líder ou ao aparelho de Estado. A educação é vista como meio para desenvolver indivíduos emancipados, autodirigidos. Ou seja, a emancipação é uma construção que envolve a autodireção.
- Para Sartre (1970), na medida em que a existência precede a essência, o predicado perfeito que define o sujeito é a liberdade. O indivíduo é livre e, na medida que é livre, está responsável por sua ação. Se se desresponsabiliza, atua de má-fé. Basicamente, a emancipação é a liberdade exercida com boa-fé, com intenção de legislar a si mesmo a toda humanidade. A emancipação é um atributo existencial que pode, no máximo, ser negado com má-fé.
- Para Rancière (2010), a emancipação está ligada a uma tomada de posição em que o espectador participa ativamente do espetáculo e escolhe, julga, avalia, reflete sobre o que acontece tendo como base sua experiência e sua participação. Ou seja, a emancipação é ligada à participação.
Para Sartre, emancipação é uma qualidade do próprio ser humano a partir de uma ontologia existencial em que o primeiro elemento da existência do mundo para um humano é sua própria liberdade e, a partir disso, a única coisa que precisa para “ativar” sua emancipação é a honestidade de se responsabilizar por seus atos. Adorno e Rancière inserem a emancipação como a necessidade de autodireção e, para o último, uma necessidade de participação.
Todos eles entendem a emancipação como aquilo que individualiza, que distancia o indivíduo da massa e, ao completar perfeitamente um suposto processo de emancipação (que, em Sartre, seria um processo de responsabilização), o conduz para a existência plena, emancipada e livre.
Essas explicações são, sobretudo, abstratas. Elas abrem um leque de possibilidades práticas. Por exemplo, o que um sujeito emancipado por efetivamente fazer? Podem, sujeitos emancipados, se associarem num grupo de opressão às minorias por livre e esclarecida vontade? O princípio de emancipação de Adorno envolve o esclarecimento que teria como resultado o entendimento de que a experiência do holocausto é determinante para se entender o que não é emancipação. Entretanto, até que ponto este princípio deixa de ser normativo?
Até que ponto uma pessoa, responsabilizando-se por seus atos, poderia se filiar a um partido abertamente fascista? A liberdade e a responsabilidade não evitariam este tipo de ato. Sartre mantém aberta a gaveta da escolha pelo fascismo, pois somente um princípio normativo a retiraria de questão. Ao mesmo tempo, até que ponto a participação na atividade política não poderia descambar no próprio bolsonarismo nas ruas? Rancière, evidentemente, não preconiza este tipo de movimento político, mas somente com uma barreira normativa que este tipo de ato poderia ser retirado do campo da emancipação.
Isso pois todas as noções de emancipação dependem de um movimento interno, realizado na consciência – na conscientização esclarecida, na responsabilização e na escolha através da participação.
O trabalho de Michel Foucault é focado nas condições de possibilidade das práticas reais e nas lutas existentes que demonstram uma dominação, uma exclusão, uma interdição e etc. Para Michel Foucault, liberdade é uma prática definida como tal, que trabalha no limite externo das estratégias de poder. O poder não é definido como aquilo que o Estado aplica, que o líder aplica, mas é aquilo que se extende em malha por todo o corpo social.
Ao realizar seu funcionamento imanente às relações sociais, econômica, linguísticas, etc., o poder marca os corpos. Ao mesmo tempo, o saber, enquanto sistema de dispersão de enunciados que podem ou não se tornar científicos, que podem ou não compor discursos, constitui sujeitos. Os sujeitos são constituídos e os corpos são marcados.
Mais importante que buscar uma essência do sujeito-indivíduo-pessoa, mais importante que buscar uma explicação abstrata sobre a emancipação, é necessário buscar uma explicação concreta sobre as estratégias de poder que nos marcam, sobre os saberes que nos constituem e sobre, então, as táticas de resistência que podem ser utilizadas para transitar neste limite externo das estratégias de poder.
Ou seja, a emancipação conforme descrito acima, pode ser entendida como uma forma de libertação de determinadas conduções a que todo sujeito contemporâneo é submetido, mas não esclarecem quais são as práticas de liberdade que poderão dar continuidade a este movimento. Isso significa que, para além do entendimento abstrato da emancipação, é necessário o entendimento concreto das possibilidades de cravar a emancipação em contraposição à própria prática de poder dominante. Obviamente, isso não se dá por meio da pura introspecção.
Ao mesmo tempo, agora retornando ao conceito de libertação e pensando em suas formas históricas, a libertação de países colonizados não impediu que fossem dominados por uma forma histórica de governo pautada nos mesmos princípios do colonizador. Burkina Fasso, por meio de golpe de Estado, instaurou um regime capitalista e privatizante após a revolução de Sankara; A Líbia tem um governo internacionalmente reconhecido liderado por empresários, após a morte de Muammar Gaddafi. A União Soviética, apesar de revolucionária, manteve os princípios biopolíticos de governo e logo que foi derrubada na luta anticapitalista, foi tomada por formas de governo quase czaristas.
O ponto de Foucault é: o que vem depois da libertação? O que acontece após se ter condições materiais para a emancipação? Daí sua preocupação com as práticas de liberdade relacionadas à sexualidade, não exatamente no discurso sobre a necessidade de uma liberação sexual. O que não anula a própria necessidade da libertação, conforme o próprio Foucault (2013) entende em sua entrevista:
Quando um indivíduo ou um grupo social consegue bloquear um campo de relações de poder, fazendo destas relações algo imóvel e fixo e impedindo a mínima reversibilidade de movimentos – mediante instrumentos que podem ser tanto econômicos como políticos ou militares -, nós nos encontramos diante do que podemos denominar um estado de dominação. É correto que numa situação deste tipo as práticas de liberdade não existem, ou existem apenas unilateralmente ou são recortadas e extraordinariamente limitadas. Estou de acordo com você que a libertação é, em certas ocasiões, a condição política ou histórica para que possam existir práticas de liberdade.
Daí, portanto, também, a importância da pesquisa sobre as formas de cuidado de si na antiguidade, pois nelas estariam germes de uma possível forma de resistência para o presente, na medida em que nossa sociedade é estabelecida sobre formas de moralidade impostas aos indivíduos e formas de reflexão baseadas na obediência ou desobediência às normas (FOUCAULT, 1988). Trata-se de uma pesquisa ética, pois
na realidade o que é a ética senão a prática da liberdade, a prática reflexiva da liberdade? A liberdade é a condição ontológica da ética; mas a ética é a forma reflexiva que adota a liberdade (FOUCAULT, 2013).
Nossa sociedade moderna não é baseada nas formas de cuidado de si, de construção de formas de sujeição baseadas numa reflexão de si consigo mesmo. Eis porque, em última instância, é relevante estabelecer uma reflexão sobre esses saberes antigos que, em sua insurreição, podem servir concretamente para pensar a resistência no presente.
Referências
ADORNO, T. Educação e Emancipação. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1995.
FOUCAULT, Michel. “Cuida de ti mesmo”. Entrevista com Michel Foucault. Entrevista realizada por Raúl Fornet-Beancourt, Helmut Becker e Alfredo Gómez-Muller. Tradução de CEPAT. Instituto Humanitas Unisinos, on-line, 2013. Disponível em <<https://www.ihu.unisinos.br/noticias/517228-cuida-de-ti-mesmo-entrevista-com-michel-foucault>>. Acesso em 08 de agosto de 2024.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 13ª edição, Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.
RANCIÈRE, Jacques. El espectador emancipado. Buenpaos Aires: Bordes Manantial, 2010.
SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. Tradutora: Rita Correa Guedes. Les éditions Nagel, Paris: 1970.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.