As causas próximas da loucura – Michel Foucault

Das passagens qualitativas às observações anatômicas e fisiológicas, o entendimento sobre a loucura e sua relação com o corpo e a alma caminhou para a desconsideração paulatina do simbolismo próprio das qualidades para a consideração passível de ser medida das alterações cerebrais. Esta nova estrutura de causalidade linear será determinante na percepção da loucura na formação discursiva da loucura na Idade Clássica.

Da série “Os loucos de Foucault“.

Índice

Introdução

cau·sa (Dicionário Michaelis on-line)

  1. Aquilo que determina a existência de uma coisa ou de um acontecimento; razão, motivo, explicação: “Não estamos no momento investigando as causas da morte do cidadão João Paz” (Érico Veríssimo).
  2. Aquilo que provoca o início ou determina a origem de algo; agente, origem, princípio.
  3. Razão pela qual se faz algo ou se provoca um acontecimento.

As causas de uma loucura são relacionadas ao corpo, à alma, são visíveis na superfície do corpo, são visíveis na conduta, são investigadas a partir de um olhar detalhado no tripé corpo-alma-cognição. As causas próximas estão inseridas no corpo e afetam a alma e a estrutura cognitiva, a estrutura que funciona como condição para compreender, entender e aprender sobre a realidade como ela deveria ser compreendida, entendida e aprendida.

O entendimento sobre as causas próximas é relevante na constituição do discurso acerca da loucura na Idade Clássica. Através deste artigo, perceberemos como a percepção das paixões teve influência nas considerações sobre o desenrolar próprio da loucura e em suas causas próximas.


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Qualidades

O sistema de causas próximas é construído a partir de um movimento que parte da percepção e caminha para a explicação. Um sistema de causalidade que movimenta as qualidades dos elementos em jogo, que transforma em coisas os valores que estavam armazenados como juízos morais. É interessante citar Thomas Sydenham, médico inglês do século XVII:

A força da alma, diz Sydenham, enquanto está fechada neste corpo mortal, depende principalmente da força dos espíritos animais, que lhe servem de instrumentos no exercício de suas funções e são a porção mais fina da matéria, e aquela que mais se aproxima da substância espiritual. Assim, a fraqueza e a desordem dos espíritos causa necessariamente a fraqueza e a desordem da alma, tornando-a um joguete das paixões mais violentas, sem que ela possa de algum modo resistir.[1]

A ética burguesa em ascensão é transformada em dinâmica nas transformações qualitativas. Como numa comunicação direta e instantânea, alma e corpo trocam impressões, trocam passagens, trocam toques e influências.

Entre as causas próximas e seus efeitos se estabelece uma espécie de comunicação qualitativa imediata, sem interrupções nem intermediação; forma-se um sistema de presença simultânea, que está do lado do efeito qualidade percebida e do lado da causa imagem invisível. E, de uma para outra a circularidade é perfeita: induz-se a imagem a partir das familiaridades da percepção; e deduz-se a singularidade sintomática do doente a partir das propriedades físicas atribuídas à imagem causal.[2]

A transformação na Idade Clássica se refere à exclusão dos elementos imaginários que fundamentavam a explicação mecânica da loucura através das paixões: a estrutura se torna linear e deixa de ser circular em relação ao elemento imaginário, ela passa a se organizar frente a uma percepção organizada e as causas passam a ser entendidas “pura e simplesmente” como fato de antecedência.

A patologia das fibras nervosas é exemplo de Foucault para observação das causas próximas:

Não que a qualidade e a imagem sejam escorraçadas dessa nova estrutura da causalidade próxima; mas elas devem ser investidas e apresentadas num fenômeno orgânico visível que possa vir disfarçado, sem o risco  de um erro ou do retorno circular como fato antecedente.[3]

Nas observações acerca da fisiologia das fibras há pouca clareza sobre as relações entre a alma e as paixões. No entanto, ainda há uma consideração em forma de imagem que coloca a alma como elástica, necessariamente flexível. Tudo se passa como se um foco fisiológico das fibras contribuísse com uma percepção objetiva das causas próximas da loucura. Entretanto, a “alteração que serve de causa imediata para a loucura não é, propriamente falando, perceptível; ela é ainda, no máximo, uma qualidade palpável, quase moral, inserida no tecido da percepção”[4].

E assim se desenvolve uma maneira de se entender as causas próximas em conjunção com uma segunda percepção:

Trata-se, paradoxalmente, de uma modificação puramente física e mesmo, muito freqüentemente, de uma modificação mecânica da fibra, mas que só a altera aquém de toda percepção possível e na determinação infinitamente pequena de seu funcionamento. Os fisiólogos que vêem a fibra sabem muito bem que não se pode constatar sobre ela ou nela nenhuma tensão ou nenhum relaxamento mensurável […] Mas os médicos e os práticos também vêem, e vêem coisa diferente: vêem um maníaco, músculos contraídos, um ricto no rosto, os gestos duros, violentos, responder com a mais extrema vivacidade à menor excitação; vêem o gênero nervoso levado ao grau último da tensão. Entre essas duas formas de percepção, a da coisa modificada e a da qualidade alterada, reina o conflito, obscuramente, no pensamento médico do século XVIII. Mas aos poucos a primeira forma predomina, não sem levar consigo os valores da segunda.[5]

  • Primeira forma, a da coisa modificada: “Mas os médicos e os práticos também vêem, e vêem coisa diferente: vêem um maníaco, músculos contraídos, um ricto no rosto, os gestos duros, violentos, responder com a mais extrema vivacidade à menor excitação”;
  • Segunda forma, a da qualidade alterada: “Trata-se, paradoxalmente, de uma modificação puramente física e mesmo, muito freqüentemente, de uma modificação mecânica da fibra, mas que só a altera aquém de toda percepção possível”.

A hegemonia da primeira forma pode ser observada em Pierre Pomme e seu Traité des affections vaporeuses des deux sexes em que descreveu sua experiência imediata com o corpo humano e, ironicamente, fortaleceu a estrutura de causalidade proposta pelos fisiólogos (mesmo acreditando superá-la). Vale dizer que o autor relatava ter visto e ouvido os estados de tensão no corpo humano, o que não era visto pelos fisiólogos:

Debruçado sobre o corpo de um paciente, ouviu ele as vibrações de um gênero nervoso demasiado irritado; e depois de tê-lo macerado na água à razão de doze horas por dia durante dez meses, viu que se separavam os elementos ressecados do sistema e caíam na água “porções membranosas semelhantes a porções de pergaminho empapado”.[6]

Uma estrutura linear de causalidade e pautada nas modificações físicas ganhava espaço na percepção das causas próximas da loucura.

Fisiologia

A busca da causa próxima, por fim, já não era feita de uma descrição minuciosa das relações entre os efeitos e os valores essenciais que carregam numa comunicação qualitativa. No decorrer da Idade Clássica, a causa é diminuída a uma significação transposta: “trata-se apenas de encontrar, para percebê-lo, o evento simples que pode determinar, do modo mais imediato, a doença”[7].

Desta forma, na proximidade imediata junto a alma designada através do termo “sede da alma”, o cérebro passa a ser o elemento em que o olhar do pesquisador deverá observar alterações, perturbações anatômicas e fisiológicas.

A causa da loucura, portanto, deve ser uma alteração visível desse órgão que é o mais próximo da alma, isto é, do sistema nervoso e, tanto quanto possível, do próprio cérebro […] A causa será encontrada quando se puder designar, situar e perceber a perturbação anatômica ou fisiológica – pouco importa sua natureza, pouco importa sua forma ou a maneira pela qual ela afeta o sistema nervoso – que está mais próxima da unção da alma com o corpo.[8]

Assim as pesquisas anatômicas sobre a loucura na Idade Clássica devem adquirir sentido. As descrições qualitativas que versam sobre as pressões imaginárias e já carregavam valores que lhe davam um sentido circular e pré-determinado ainda continuavam a ser produzidas, mas descrições sobre “o cérebro dos maníacos seco e quebradiço, e o dos melancólicos úmido e congestionado de humores”[9] começaram a ser produzidas. A qualidade (como a secura ou umidade do cérebro) deve ser percebida num suporte de percepção, deve ser percebida e medida: o cérebro não é mais contrapartida do estado da alma. O estado do cérebro revela a alteração essencial que causa a loucura.

Considerações finais

Das passagens qualitativas às observações anatômicas e fisiológicas, o entendimento sobre a loucura e sua relação com o corpo e a alma caminhou para a desconsideração paulatina do simbolismo próprio das qualidades para a consideração passível de ser medida das alterações cerebrais. Esta nova estrutura de causalidade linear será determinante na percepção da loucura na formação discursiva da Idade Clássica:

Entre essa alteração e os sintomas da loucura não existe outro elo de pertinência, outro sistema de comunicação além de uma extrema proximidade: a que faz do cérebro o órgão mais próximo da alma […] Corpo e a alma numa ordem de vizinhança e sucessão causal que não autoriza nem retorno, nem transposição, nem comunicação qualitativa.[10]

O cérebro como espaço de alterações que causam a loucura quando o acometido está acordado e geram sonhos quando está dormindo. O cérebro passa a ser mapeado, setores são categorizados, movimentos são percebidos. Enfim, as condições de possibilidade para uma ciência materialista e organicista são postas ao longo da Idade Clássica. O corpo já não passa a ser mais considerado em sua totalidade para a observação da loucura: o cérebro, órgão – e objeto – privilegiado, que fornece a base necessária para uma aproximação perceptiva na loucura.

Figuras do desatino

Referências

[1] SYDENHAM, Thomas. Dissertation sur l’affection hystérique. IN FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 9ª edição, 2012, p. 216.

[2] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 9ª edição, 2012, p. 216.

[3] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 217.

[4] Ibidem.

[5] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 217-218.

[6] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 218.

[7] Ibidem.

[8] Ibidem.

[9] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 220.

[10] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 220.

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