A cultura do estupro é o complexo de símbolos e atitudes que tornam o estupro um ato de fácil execução pelos homens e de difícil defesa às mulheres no interior de uma sociedade machista. Segundo a pesquisadora Dra. Marlise Matos em entrevista à Revista Ágora:
A cultura do estupro é um desdobramento de uma sociedade machista, mas eu acredito que a cultura do estupro envolve essa possibilidade de se cometer um ato abusivo e não ser culpado – envolve mais a violência simbólica envolvida a priori nas relações de gênero -, enquanto o machismo é aquilo que te obriga a realizar este ato.
A socióloga salienta que a sociedade estabelece padrões de interação entre os gêneros e, em nosso caso, esses padrões envolvem um direcionamento do desejo do homem para o corpo da mulher. Nesta dinâmica, o homem aparece como sujeito, enquanto a mulher, como objeto. Tal dinâmica não é meramente interindividual, mas é concebida como fato social, ou seja, a objetificação do corpo da mulher acontece independentemente de sua postura individual, mas enquanto concepção geral. A figura da mulher, seja ela qual for e independentemente de seu comportamento, é de um objeto para satisfação do desejo masculino. “Ao se transformar a mulher em objeto, retira-se dela, num primeiro momento, a capacidade de agência sobre o processo de violência, a capacidade de mudar essa situação. Outro fator, aliado a essa naturalização da violência, é a ideia de que as vítimas são sempre culpadas”, explica Marlise.
A própria questão acerca das condições do efetuamento do estupro demonstram como a responsabilidade sobre o ato recai ao corpo feminino, pois se trata de um corpo, ao mesmo tempo, passivo na relação ao ser objeto e ativo na relação ao supostamente ser provocador: “É muito comum responsabilizarem a vítima pelo estupro com perguntas como: “Onde você estava?”, “Em qual horário você estava andando?”, “Que roupa usava?”. Todas essas justificativas são descabidas. O exercício da dominação só tem justificativa na sanha do dominador”, assinala a pesquisadora.
Em posição alinhada à de Marlise, Isabella Ribeiro Garcia contribui para esta discussão em seu trabalho de conclusão em Serviço Social nomeado “Ser mulher no Brasil é um fator de risco”, apontando que
o termo cultura do estupro surge nos anos 1970, período da segunda onda feminista, para expressar comportamentos sutis ou explícitos que relativizam a violência sexual contra a mulher. Percebe-se que, a palavra cultura, neste contexto, busca reforçar a ideia de que essas atitudes não podem ser assimiladas como naturais. O estupro é configurado como um crime contra a liberdade sexual.
Além da falta de credibilidade da palavra da vítima, Isabella também destaca a indiferença das instituições em agir, reproduzindo as expectativas de gênero que se espera num interação entre homem e mulher. A falta de credibilidade é reaparece, a culpabilização da vítima também é praticada e, por fim, ainda sob o estatuto de objeto, o crime de estupro é esquecido ou amenizado pela moral e pela religião.
Renata Floriano de Sousa, em seu artigo “Cultura do estupro: prática e incitação à violência sexual contra mulheres”, explica que a maneira da sociedade ocidental lidar com a sexualidade tem efeito determinante:
Uma grande parte desse problema está na notável repressão sexual sofrida pela mulher, em contraposição ao incentivo sexual recebido pelos homens. O que é um paradoxo numa sociedade majoritariamente heteronormativa, onde parece muito incoerente que os homens, desde a mais tenra idade, sejam incitados ao sexo, enquanto que as mulheres recebam instruções contrárias.
Para a autora, este tipo de distinção (que pode ser visto por meio do entendimento do dispositivo da sexualidade, noção proposta por Michel Foucault) também separa as mulheres em dois grandes grupos: aquelas que servem para casar, que são reprimidas sexualmente; aquelas que servem para transar, que são libertinas ou portadoras de histórico público de abusos.
Cultura do estupro e construção da vítima
A construção da vítima também é abordada por Renata Floriano, que percebe uma inversão na constatação do crime. Em vez da situação imediata ser o foco na descrição do crime, o histórico pessoal da mulher se torna item de averiguação:
Não basta a constatação do ato do estupro consumado, seja lá de que forma se deu; também é feita uma apuração sobre o histórico da suposta vítima. Aqui entra o fator da reputação, ou seja, o modo como a sociedade julga o comportamento da vítima antes do estupro.
Se a vítima é considerada sexualmente libertina, se sua reputação é negativa, então seu status de vítima passa a ser questionado. Desta forma, o status de vítima de um estupro é relacionado a uma reputação construída ao longo da vida, o que torna a vida da mulher sempre ligada à construção de uma boa imagem, para só assim ser sujeito de direito em situações de violência sexual. Renata Floriano continua:
Atrelado à reputação é que se concede ou não o status de vítima de estupro para uma mulher. Desse modo, ser vítima de estupro é um status social condicionado à reputação e que corresponde a muito além do que apenas sofrer a violência sexual – é receber da sociedade o aval de quem realmente é inocente com relação ao ocorrido.
Para além da reputação, espera-se também que a vítima do estupro tenha as marcas do ato. Não basta a denúncia, é necessário as marcas da violência provocadas por uma tentativa de defesa:
Da vítima de estupro espera-se não apenas que a vítima resista bravamente às investidas do seu agressor, mas que, também, traga na pele marcas da violência sofrida como prova de sua tentativa de resistência quase heroica. Uma mulher ou menina que resiste e luta fisicamente contra a investida violenta de seu agressor cumpre corretamente o papel de vítima esperado pela sociedade.
E, se a vítima, por conta da tentativa de se defender, for à óbito, eis que se tem a construção perfeita da vítima. Esta, relegada à exemplo de virtude e resistência. Na análise de caso feita por Vanessa Ramos da Silva, em seu artigo “A cultura do estupro e a culpabilização da vítima de violência sexual: comentários ao Acórdão nº 70080574668 do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul”, esta necessidade de boa reputação que fornece base à cultura do estupro é evidenciada:
Em seu relatório, a desembargadora afirma: “ora se a ofendida bebeu por conta própria, dentro de seu livre arbítrio, não pode ela ser colocada na posição de vítima de abuso sexual pelo simples fato de ter bebido” (TJRS, 2019). Além disso, no acórdão a relatora afirma que “vítima admitiu que por vezes já se colocava nesse tipo de situação de risco, ou seja, de beber e depois não lembrar do que aconteceu”. Nos trechos citados verifica-se que a conduta e vida pregressa são levadas em consideração para retirá-la da posição de vítima, de forma que o fato de ter ingerido álcool “por sua livre e espontânea vontade” (TJRS, 2019), segundo a decisão, parece isentar o réu pelo sexo não consentido, culpabilizando a vítima e colocando o seu comportamento como algo determinante para a ocorrência do fato.
A vítima que não se comporta como vítima, automaticamente é retirada desta posição e tem sobre si a responsabilidade do abuso sexual. A cultura do estupro é esta união de símbolos que permite o afastamento da responsabilidade sobre o abusador e insere inúmeras barreiras para que a vítima seja reconhecida como tal.
A cultura do estupro é justamente uma cultura, desta forma, um conjunto complexo de símbolos e rituais que caracterizam a vida em sociedade, que estabelecem relações de poder entre os indivíduos e grupos e, por fim, que caracterizam inclusive o que seria uma vítima numa situação de estupro.
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Outros artigos sobre o assunto:
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.
Adorei o post, Vini! É muito importante darmos visibilidade a esse assunto. É sobretudo importante que as pessoas percebam o quanto os seus comportamentos machistas são culturais e aprendidos, isso sem falar que são tão sutis que tais pessoas não se percebem enquanto machistas ou perpetuadoras de tal comportamento!
Beijos!
Que bom que gostou 😀
Eu creio que o mínimo que a gente pode fazer é denunciar estes mecanismos.
Ora, a atuação do machismo sobre o homem vai além de meras “formas de agir” que atingem as mulheres. Se formos fazer um recorte de classe, implica num encarceramento em massa da população masculina pobre.
Dos 600 mil pessoas presas, apenas 6,5% são mulheres.
É verdade que o número de encarceradas – atualmente – cresce mais rápido (cresce a 32%, contra 15% do encarceramento masculino).
No mais, acho importante o acréscimo desses dados tão sempre esquecidos, pois parece que a ideologia machista “prescreve uma maneira de agir” que prejudica “um pouquinho” os homens e “de montão” as mulheres.
O nosso problema-mor de todos os dias e que deve ser discutido e não só discutido mas levado a sério é a nossa cultura da violência. Há um culto da violência que inicia-se dentro do Estado e se espraia pela sociedade. Nosso aparato estatal é o primeiro a desrespeitar a lei e incentivar a qualquer um a seguir seu exemplo.