Da série “Biopoder“.
Índice
Introdução
O século XVIII trouxe consigo o nascimento do biopoder, do governo dos corpos vivos feito de maneira laica pelo Estado, através do recolhimento de informações sobre a população e sua relação com o meio, através da necessidade de entender o ser humano como corpo-espécie, como animal, como coletividade biológica[1].
Este entendimento específico torna as ciências biológicas protagonistas das análises na passagem de século, em conjunto com a estatística e com a matematização das populações, com a separação de informações por segmentos estatísticos, com a administração focada no atingimento do normal. A prática biopolítica se dá através de dispositivos muito próprios ao biopoder: os dispositivos de segurança, que formam uma sociedade de segurança.
O dispostivo
Para Foucault, o dispositivo pode ser definido como:
um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode tecer entre estes elementos.[2]
O que está em jogo na noção foucaultiana de dispositivo são as relações entre o discursivo e o não discursivo, este último podendo ser isto como o campo das relações de poder. A constituição dos diferentes sujeitos que são marcados e atravessados pelos cortes entre os saberes, pelas injunções dos poderes. Esse dispositivo é uma estação de construção de sujeitos, para isso, precisa promover diferentes relações em diferentes esferas da sociedade (como a econômica, a militar, a científica e etc).
O dispositivo, de maneira ilustrativa, dá conta de modelar o barro, mas também de significá-lo, de torná-lo arte, tijolo, apoio ou caneca. O dispositivo lida com o signo e com o significável, com a hierarquia e com a dispersão.
A sociedade de segurança
Para entender o funcionamento dos mecanismos de segurança, Michel Foucault expõe uma situação modulada em três perspectivas como exemplo:
- Um lei penal simples como “não matarás” e sua punição, por exemplo, o enforcamento.
- A mesma lei ainda recheada por suas punições, no entanto, que são enquadradas em sistemas de vigilância, olhares, controles e mecanismos que ajudam a descobrir, antes mesmo de roubar, se um ladrão irá roubar ou não. Ao mesmo tempo, a punição não será o simples castigo, mas sim inserida num contexto de retirada da liberdade: encarceramento.
- A mesma lei com punições sob o mesmo modelo do exemplo 2, no entanto, guiadas pelas seguintes questões: “qual é a taxa média da criminalidade desse [tipo]? Como se pode prever estatisticamente que haverá esta ou aquela quantidade de roubos num momento dado, numa sociedade dada, numa cidade dada, na cidade, no campo, em determinada camada social, etc.?”[3].
Para essas perguntas, há outras que também podem fazer parte da arguição:
A repressão a esses roubos custa quanto? É mais oneroso ter uma repressão severa e rigorosa, uma repressão fraca, uma repressão de tipo exemplar e descontínua ou, ao contrário, uma repressão contínua? Qual é o custo comparado do roubo e da sua repressão? O que é melhor, relaxar um pouco com o roubo ou relaxar um pouco a repressão? Mais outras perguntas: se o culpado é encontrado, vale à pena puni-lo?[4]
Temos, primeiramente, o mecanismo legal ou jurídico do poder soberano que consiste em estabelecer uma lei e uma punição aos que a infringirem: uma ação proibida e uma consequência legal, um sistema binário de punição. Depois, passamos por uma punição coberta por sistema de vigilância e controle, declaradamente um mecanismo do tipo disciplinar. Por último, a terceira forma do exemplo coloca em jogo o dispositivo de segurança que vai
inserir o fenômeno em questão, a saber, o roubo, numa série de acontecimentos prováveis. Em segundo lugar, as reações do poder ante esse fenômeno vão ser inseridas num cálculo que é um cálculo de custo. Enfim, em terceiro lugar, em vez de instaurar uma divisão binária entre o permitido e o proibido, vai-se fixar de um lado uma média considerada ótima e, depois, estabelecer os limites do aceitável, além dos quais a coisa não deve ir.[5]
O dispositivo de segurança matematiza e biologiciza as ações humanas através de um ponto de vista global, através de segmentações que somente separam os exemplares, mas não retiram o fato de serem parte de uma espécie, de um todo globalizante e, acima de tudo, que estão sujeitos ao meio, às tendências, às probabilidades.
É necessário pensar sobre o ato de corrigir um detento: o detento passa a ser preso numa visão não só disciplinar, mas também através de um prisma que pretende mostrar como a prisão tinha como objetivo também diminuir os riscos de reincidência que sua periculosidade oferece. A tecnologia disciplinar e o mecanismo de segurança não são excludentes, não se colocam em lados diferentes.
Para exemplificar a especificidade da tecnologia de segurança, Foucault utiliza três grandes doenças que se transformara em problema social em suas épocas:
- A lepra na Idade Média, cujo estatuto de exilado se dava através de uma série de leis, de regulamentos, um conjunto jurídico que trazia a divisão entre aqueles que eram leprosos e os que não eram.
- A peste, que assolou a Europa e teve, no século XVI e XVII um tratamento diferente, guiado por uma tecnologia de poder disciplinar, através da minuciosa definição de horários para sair de casa, da proibição de certos tipos de contato, obrigação em se apresentar aos inspetores e etc.
- Por último, a varíola, que colocou outras questões em jogo: quantas pessoas pegaram a doença? Qual idade tinham? Quais foram as sequelas? Qual a probabilidade de morte? Os efeitos estatísticos na população em geral passou a ser um caminho para decisões de cunho administrativo, político.
As necessidades de encontrar o normal através da medição do real e do uso estatístico como base para tomadas de decisões políticas se tornam imediatas com a ascensão da tecnologia de segurança através de seus dispositivos.
Considerações finais
Eu gostaria portanto de fazer aqui uma espécie de história das tecnologias de segurança e tentar ver se podemos efetivamente falar de uma sociedade de segurança.[6]
A sociedade de segurança é aquela, assim, cuja economia própria do poder tenha uma forma tal que possa ser denominada de segurança, majoritariamente com a franca prática dos dispositivos de segurança. Sendo assim, é dominada pela previsão de acontecimentos através de dados estatísticos, segmentação da sociedade em microgrupos que tendem a gerar melhor administração da população e que considera os homens como parte de uma espécie. Homem-espécie em vez de puramente homem-indivíduo.
Referências
[1] SIQUEIRA, Vinicius. O biopoder – Michel Foucault. Colunas Tortas, 2021. Acesso em 17 jan 2020. Disponível em <<http://bit.ly/38P2JXM>>.
[2] FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p.244.
[3] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.7.
[4] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p.8.
[5] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p.9.
[6] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p.15. Nosso negrito.
Cite este artigo:
SIQUEIRA, Vinicius. A sociedade de segurança – Michel Foucault . Colunas Tortas. Acesso em [DD Mês AAAA]. Disponível em <<https://colunastortas.com.br/dispositivo-seguranca-biopoder-michel-foucault/>>.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.