Em Gostos de Classe e Estilos de Vida, Pierre Bourdieu tenta aplicar sua interpretação sociológica para realizar uma das análises mais inusitadas e, ao mesmo tempo, mais comprobatórias acerca da construção social do gosto.
Trata-se de um texto em que o autor coloca como tema central sua tese de que para cada posição social há um gosto possível e que este gosto não é uma aleatoriedade incontrolável, não é autodeterminação, não é desvinculado às imposições e aos imperativos da vida em sociedade.
Habitus para definir os estilos de vida
“Às diferentes posições no espaço social correspondem estilos de vida, sistemas de desvios diferenciais que são a retradução simbólica de diferenças objetivamente inscritas nas condições de existência.”
O que isso significa? As condições de existência, como a posição dentro da estrutura econômica (operário, funcionário de colarinho branco, capitalista) e os grupos quais o sujeito se relaciona, são como modelos que, de certa forma, definem os estilos de vida (ou seja, as práticas e as propriedades) de uma dada posição social que é ocupada por um dado agente social.
É importante compreender que Pierre Bourdieu não utiliza o conceito de sujeito, mas de agentes sociais, ou seja, de um agente que transforma o mundo cotidianamente pela prática social.
Mas essa prática não é livre, autodeterminante. Ela é mediada pelo habitus, que é um sistema de disposições inculcadas e incorporadas socialmente. É um sistema de disposições, portanto, que projeta práticas, mas, como dito, essas práticas são inculcadas e incorporadas, ou seja, elas não são criações individuais, mas construções sociais. O habitus é, então, a estrutura social que, ao ser interiorizada pelo indivíduo, se transforma em estrutura mental. O habitus é aquilo que foi estruturado pela realidade exterior e que estrutura as práticas “interiormente”, enquanto disposição.
Sendo assim, o habitus é aquilo que gera o gosto de classe. É um princípio unificador e gerador de todas as práticas. Isso significa, mais ou menos, que, apesar da consciência (se é que se pode utilizar essa palavra) ser algo individual (por que precisa do cérebro), ela não é livre de qualquer estruturação. Não somos, neste ponto de vista, nem totalmente livres, nem marionetes do espaço social.
O luxo e a necessidade
Para Bourdieu, as formas de apreensão do mundo estão diretamente relacionadas com o distanciamento que se pode ter das urgências da realidade. A depender da posição social que se ocupa, o agente perceberá os bens culturais valorizados no campo social, como obras de arte em pintura, música e escultura, de maneira diferente.
Bourdieu, a partir de sua pesquisa, conclui que aqueles que percebem os bens culturais de maneira legitimada pelo campo, os percebem enquanto forma; já aqueles que não dominam a apreciação dos bens culturais considerados legítimos da forma também legítima, os percebem enquanto função.
Existe, desta forma, uma maneira legítima de apreender cada obra de arte e ela está ligada com a formação do campo artístico e com a reivindicação da arte cuja função é o próprio usufruto artístico: a maneira legítima de apreender a obra de arte é entendê-la como um produto puramente artístico, como pura forma.
Esta é a maneira como os intelectuais da arte, os “bons críticos”, os mecenas e os produtores de arte legitimam seu próprio trabalho no campo artístico: arte é aquilo que é feita para si, não para servir aos interesses econômicos ou políticos de algum indivíduo ou grupo social.
Já as camadas menos intelectualizadas, como a pequena burguesia ou os operários, se relacionam com a arte enquanto função. Isso significa que, ao em vez de apreciar uma certa “aura” da obra, o que se aprecia, o que se entende, o que se observa, é sua função. A partir deste tipo de apreciação, algumas frases genéricas podem ser formuladas para exemplificar: “nossa, esse quadro combinou com sua parede”, “que bonita essa pintura colorida”, “que feio essa pessoa estranha que parece dar um grito de desespero”.
De um lado a outro da estrutura social
Mas o interessante deste texto de Bourdieu é como esta oposição (forma X função) vai variando e tombando para um dos lados conforme se aproxima de um extremo da estrutura social. Ou seja, os intelectuais e os “filhos da aristocracia” herdaram um capital cultural, ou seja, uma maneira legitimada do saber artístico, aprendida cotidianamente, em cada partitura no piano, a cada treino de voz, a cada ópera, que os permitem agir “naturalmente” da forma legítima, ou seja, uma forma de apreender a arte (e o mundo) que aparece até mesmo ser natural, ser dom divino.
Ao contrário, a burguesia, por saber quais são os autores legítimos, costumam responder às pesquisas os citando (principalmente os mais famosos), entretanto, quando são perguntados do por quê de se gostar de tal autor, as respostas são vazias. Ao contrário, os operários não gostam da arte “complicada”, não gostam de uma apresentação artística sem a comunicação com o público (o apresentador, o mediador, neste caso, seria aquilo que “quebra o gelo” e dá uma sensação de intimidade, necessária no entretenimento).
Vale dizer que essas constatações citadas fazem parte do trabalho de pesquisa de Bourdieu. Ele consegue desenvolver sua teoria tendo como base uma pesquisa empírica invejável. Se trata, então, de saber interpretar os dados que se tem com o máximo de abrangência possível.
Desta forma, a competência cultural, ou seja, a capacidade prática, fruto de um habitus incorporado que permite uma certa sincronia entre a recepção e a concepção da obra, que permite apreender de maneira legítima o bem cultural, é produto do nível de escolaridade (aqui entra a crítica ao sistema de ensino, enquanto reprodutor das desigualdades sociais) e da herança familiar. A apreensão da arte, portanto, também é uma forma de dominação – a dominação simbólica.
Os intelectuais não são dominantes em uma relação com operários, por exemplo, por serem ricos, mas sim por deterem a competência cultural “correta” dentro da sociedade. Eles sabem “o que é certo e o que é errado” na cultura e sabem disso de uma maneira que parece ser natural, impossível de se combater. E impossível de se aprender.
Boa vontade cultural
Aqui entra um conceito que, pra mim, é muito interessante.
A boa vontade cultural se exprime, entre outras coisas, por uma escolha particularmente frequente dos mais incondicionais testemunhos da docilidade cultural (escolha de amigos ‘que têm educação’, gosto pelos espetáculos ‘educativos’ ou ‘instrutivos’) frequentemente acompanhados de um sentimento de indignidade ou de demissão (‘a pintura é bonita, mas é difícil’ etc.).
A boa vontade cultural aparece no agente que não incorporou as práticas culturais legítimas, mas sabe que existem e, desta forma, simula a conduta legitimada. Sabe-se que algo é bom mesmo que não se saiba porque é bom.
Então, é possível que alguém diga que jazz é uma maravilha, sertanejo é horrível, que Dante Alighieri é gênio puro, Bukowski é gênio incompreendido, já Paulo Coelho é terrível, ou que A Doce Vida é uma obra de arte, mas Velozes e Furiosos é só um produto comercial, no entanto, no fundo, não saiba porque disse tal coisa.
Na verdade sabe, uma pessoa diria tais coisas porque esta é a forma legítima de julgar a arte, mas não entenderia tão profundamente o por quê disso. Essa é a diferença que Bourdieu exemplifica com o Gourmet, o sujeito que sabe o sabor correto “por natureza”, e o gastrônomo, aquele que precisou aprender durante uma jornada truncada e acelerada os referenciais legítimos da gastronomia.
O gourmet sabe porque sabe, o gastrônomo precisa pensar, racionalizar e utilizar sua técnicas com consciência para definir se um prato está bom ou não.
A boa vontade cultural é a reprodução da estrutura social sendo feita por aqueles que estão em posição dominada. É a tentativa de participar do grupo dominante. É um suspiro.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.
Muito bom ver esse Bourdieu e inteligência pura
Gostaria muito de saber a referência bibliográfica deste livro.
BOURDIEU, P. Gosto de classe e estilo de vida. In: ORTIZ, R. Pierre Bourdieu. São Paulo: Ática, 1983. p. 82-121.
Gostei do texto, objetivamente explicou de maneira leve as ideias a que se propôs, embora existam partes confusas e mal elaboradas/explicadas. Senti falta de um debate, que mostre mais ou menos um contra ponto ao Bourdieu, para alguém leigo como eu seria legal.
Obrigado pelo comentário, Patricia!
Interessante me descobrir com traços fortes de “boa vontade cultural”… Meus gostos por vinhos, museus ou música clássica dizem isso… no entanto meu desejo por individualidade e autenticidade camuflam minha necessidade de participar de certos campos e meu desprezo por outros campos… talvez um ressentimento justamente por não fazer parte deles e ser socialmente aplaudido (chegar ao troféu).
Muitos alunos meus, ao optarem por “certo curso superior” deixam muito visível a busca por trofeis sociais, que já foram internalizados. Eles não querem “a profissão”, eles querem os “louros sociais” que tal posição profissional angaria, de preferência com muito capital simbólico já acumulado sem esforço. O uso de “terno” ou “jaleco branco” e a expressão “Dr.” antes do nome são evidências sociológicas.
Excelente texto. Resume de forma objetiva e clara as principais ideias de Bourdieu. Por mais polêmico que possa ser, Bourdieu não se utilizou de um discurso vazio, com uma base empírica extremamente cuidadosa, trouxe à luz aspectos ásperos, que provavelmente, cutucou a classe intelectualizada! Pena que seus trabalhos ainda se restringem aos campo acadêmico.
Obrigado pelo elogio, Danielle! 🙂
Que texto incrível
Obrigado, Osvaldo!