Da série “Os loucos de Foucault“.
Índice
Introdução
Se a loucura tem relações com o crime na medida em que é percebida a presença do mal nas condutas desatinadas e, assim, sendo a conduta má praticada, o sujeito mau pode ser identificado. Na medida em que a maldade caminha pelo trajeto oposto da razão, então o crime, na sua realidade, é composto pelo desatino imoral da má conduta somado à própria maldade (entendida aqui como uma escolha imoral, inadequada, que leva, por exemplo, ao crime)[1].
A sodomia, por sua vez, ainda é alvo de condenação no século XVIII. Sodomia como crime, desta forma, como conduta imoral praticada por escolha. Apesar disso, Voltaire, a título de exemplo, no Dicionário Filosófico, já tecia críticas à punição da homossexualidade no verbete Amor Socrático:
Era tão comum o amor entre rapazes em Roma que ninguém pensava em puni-lo. Otávio Augusto, esse assassino devasso e poltrão que teve o desplante de exilar Ovídio, achou muito natural que Virgílio cantasse Aleixo e Horácio escrevesse odes a Ligurino. Não obstante, sempre subsistiu a lei Scantínia, preventiva da pederastia. Repô-la em vigor o imperador Filipe, que expulsou de Roma os meninos que se dedicavam ao ofício. Enfim não creio que em tempo algum nação civilizada haja lavrado leis contra os próprios costumes.[2]
Ao mesmo tempo, o entendimento de Voltaire passa pela exclusão do ato sexual como elemento para compreender o dito amor socrático:
Certo é, tanto quanto o pode ser a ciência da antiguidade, que o amor socrático não era um amor infame. A palavra amor foi que enganou. O que se chamavam os amantes de um jovem era nem mais nem menos o que são hoje os infantes de companhia dos nossos príncipes, os jovens companheiros de educação de um menino distinto, participando dos mesmos estudos, dos mesmos exercícios militares.[3]
Tudo se passa como se a relação entre pessoas do mesmo sexo se apresentasse como algo comum, mas sem vestígios históricos aprováveis moralmente ou filosoficamente. Loucura, homossexualidade e crime andam em trilhas justapostas e este artigo tem como objetivo descrever a relação entre homossexualidade e loucura como observada por Michel Foucault no livro História da Loucura na Idade Clássica.
Amor racional
Seguiremos com Voltaire e seu entendimento de que “assaz sabido é ser esse equívoco da natureza muito mais comum nos climas suaves que nos gelos do norte. Porque nos climas mais doces o sangue é mais quente e mais frequente a ocasião”[4]. O meio, aqui, exerce influência na expressão da sodomia, que se faz já num corpo-espécie localizado, não mais isolado dos fluxos de calor, de frio, que o meio exerce sobre as condutas. Corpo que se inicia num trajeto de constituição biopolítica.
A pederastia, por sua vez, assume papel de desvio da natureza, pois “sentindo essa força que a natureza começa a insuflar-lhes e não encontrando o objeto natural do instinto, atiram-se os jovens machos da nossa espécie sobre o que melhor se lhe semelhe”[5]. Um erro da própria natureza, uma necessidade que precisa ser satisfeita e, em seu erro impetuoso, é plena quando toca o corpo de um jovem do sexo masculino.
O que dá significação particular a essa nova indulgência para com a sodomia é a condenação moral e a sanção do escândalo que começa a punir a homossexualidade, em suas expressões sociais e literárias […] A homossexualidade, à qual a Renascença havia concedido liberdade de expressão, vai doravante ser posta sob uma capa de silêncio e passar para o lado do proibido, herdando as velhas condenações de uma sodomia ora dessacralizada.[6]
A renascença separou um espaço de circulação da homossexualidade, um certo lirismo que somente a Idade Clássica poderia separar do campo da imaginação e inserir, de maneira simplória, no campo frio da moralidade. “Tem-se a impressão de que a sodomia, outrora condenada pela mesma razão que a magia e a heresia, e no mesmo contexto de profanação religiosa, só é condenada agora por razões morais, junto com a homossexualidade”[7] assinala Foucault.
Na classificação Clássica entre um amor racional, que está de acordo com a natureza, e um amor desatinado, a homossexualidade passou a pertencer ao segundo grupo. Entra no campo da loucura e se desfaz na culpabilidade moral, na medida em que a sexualidade da idade moderna passa necessariamente por uma escolha “natural”, racional, que deve ser e é sempre reafirmada. Trata-se do império da heterossexualidade que nasce e se impõe como amor racional.
E é justamente na ligação da sexualidade com a loucura, situando-se no limiar entre a razão e a loucura sendo mais um dos elementos de passagem da razão à loucura, que a psicanálise pôde entender toda loucura enraizada em alguma questão sexual, Foucault enfatiza[8]. Ou seja, a eficiência da psicanálise está, aqui, considerada como temporal, na medida em que depende de um tipo de sujeito constituído entre a Idade Clássica e moderna, um tipo que tem na razão seu centro, na liberdade seu fardo, na loucura sua inversão e na sexualidade a expressão de um possível limiar da loucura. Há uma gênese histórica da psicanálise, mas não só do conhecimento produzido, também dos efeitos observados, ou seja, da relação entre sua prática e o sujeito atingido, assim como na prática do próprio sujeito paciente, confessor, entregue à sexualidade. Desta maneira, a referência de Foucault à psicanálise não é relativa à sua cientificidade, em relação à sua adequação ao método científico, mas é relativa à sua eficiência prática em relação ao sujeito constituído na modernidade. Sub-repticiamente, entende-se que o sujeito é histórico assim como os modos de conhecimento e seus resultados, entende-se que o universal não tem lugar cativo na reflexão foucaultiana acerca da psicanálise, mas pode-se extrapolar para o conhecimento em geral.
A família
Este sujeito em nascimento, que tem na sexualidade uma linha de demarcação entre a razão e a desrazão, que pode ver na sexualidade a expressão da loucura, este sujeito específico pode ser preso ou internado por sodomia, mas sob condições peculiares: as medidas carcerárias são tomadas “se o escândalo é público ou se o interesse das famílias corre o risco de ver-se comprometido; trata-se antes de mais nada de evitar que o patrimônio seja dilapidado, ou que passe para mãos indignas”[9]. O internamento, de certa forma, mantém uma estrutura familiar que se faz como regra social, como possibilidade de um tipo moderno de sociabilidade, mas também como norma da razão, ou seja, como instituição de localização e vigília da razão. A família, assim, é um operador do internamento: ela pede que se interne e consegue satisfazer sua ânsia sem muitos problemas.
A família é também o local da observação do casamento, do amor racional, do amor sob contrato, da forma de amor que gera a família burguesa. O amor se dessacraliza, o sagrado, que antes pertencia ao amor, passa a ser característica do casamento. Na medida em que o casamento é sagrado, é para ele que se deve satisfação, é frente ao casamento que a realização moral ou espiritual se faz. O ato de fazer amor, o sexo, também passa a ser categorizado dentro deste novo guarda-chuva sagrado do casamento: o amor sexual só será aceito sob contrato de casamento.
As velhas formas do amor ocidental são substituídas por uma nova sensibilidade: a que nasce da família e na família; ela exclui, como pertencendo à ordem do desatino, tudo aquilo que não é conforme à sua ordem ou ao seu interesse.[10]
Aos poucos, abre-se espaço para a condenação do Marido da marquesa D’espart, que solicita seu internamento após perceber suas fantasias sexuais fora do comum, lhe revelando uma loucura passiva de péssima administração de seu patrimônio. Aos olhos da justiça, motivo razoável para internamento.
Devassidão, prodigalidade, ligação inconfessável, casamento vergonhoso: tudo isso está entre os motivos mais numerosos do internamento. Este poder de repressão, que não pertence inteiramente ao domínio da justiça nem exatamente ao da religião, este poder arrancado diretamente à autoridade rela não representa, no fundo, a arbitrariedade do despotismo, mas sim o caráter doravante rigoroso das exigências familiares. O internamento foi colocado pela monarquia absoluta à disposição da família burguesa.[11]
Talvez como parte do jogo de forças entre burguesia em ascensão e aristocracia decadente, ou entre as tentativas da classe burguesa em conseguir domínio também na esfera política (por exemplo, deslocando a centralidade jurídica da soberania e inserindo a infrapenalidade das disciplinas), além da econômica, o que importa é que a formação da família burguesa e sua centralidade neste novo tipo de sociabilidade que vinha surgindo fornece condições para uma normatividade social e para a própria normatividade da razão, desta vez, entrelaçada com esta instituição de reprodução social.
Considerações finais
O escândalo, que primeiramente levava o homossexual à prisão ou ao internamento, no século XIX será característica de uma tensão entre indivíduo e família e, assim, não será mais encarado como problema público. Caberá ao núcleo familiar a observação do problema que já é entendido em seu aspecto de problema psicológico[12].
Trata-se de um movimento inverso ao da Idade Clássica, onde a esfera pública tinha interesse na vigência de uma moral universal, em que a estrutura familiar e seu rigor também eram interessantes à cidade e sua administração. “Todo aquele que feria essa estrutura passava para o mundo do desatino” e a família se colocava, aos poucos, como topos dos conflitos geradores de diferentes formas da loucura[13].
A partir do signo da insanidade, a família foi capaz de reunir toda uma variedade de inadequações e inseri-las num campo de culpa em que a psicologia tentou encontrar posteriormente a culpabilidade anteriormente moral nas próprias características da doença mental. De maneira inútil, afirma Foucault. O nosso conhecimento médico e científico acerca da loucura teve como berço a própria experiência ética do desatino[14].
Referências
[1] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 9ª edição, 2012, p. 88.
[2] VOLTAIRE, Denis. Dicionário Filosófico. Edição: Ridendo Castigat Mores, p. 43. Disponível em <<http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/filosofico.pdf>> Acesso em 18 jan 2020.
[3] VOLTAIRE, Denis. Dicionário Filosófico… p. 43.
[4] VOLTAIRE, Denis. Dicionário Filosófico… p. 41.
[5] VOLTAIRE, Denis. Dicionário Filosófico… p. 40.
[6] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 89.
[7] Ibidem.
[8] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 90.
[9] Ibidem.
[10] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 91.
[11] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 91-92.
[12] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 92.
[13] Ibidem.
[14] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 93.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.