Voltaire. Dicionário Filosófico. Domínio Público, 1764. Verbete: Loucura.
Não se trata de reeditar o livro de Erasmo[1], que na atualidade não seria mais do que um lugar comum bastante insípido.
Chamamos loucura a essa doença dos órgãos do cérebro que impede um homem de pensar e de agir como os outros[2]. Não podendo gerir seus bens, é interdito; não podendo ter idéias de acordo com a sociedade, é excluído; se for nocivo, é enclausurado; se for furioso, trancafiam-no.[3]
É importante observar que esse homem, entretanto, não carece de idéias; ele as tem como todos os outros enquanto acordado e, freqüentemente, enquanto dorme[4]. Poder-se-á perguntar como sua alma espiritual, imortal, alojada em seu cérebro, recebendo todas as idéias por meio dos sentidos coordenados e divididos, não possa concluir um julgamento são. Ela vê os objetos como os viam a alma de Aristóteles e de Platão, de Locke e de Newton; ouve os mesmos sons, tem o mesmo sentido do tacto: por que motivo, pois, recebendo percepções que os mais sábios experimentam, compõe um conjunto inevitavelmente extravagante?[5]
Se essa substância simples e eterna possui para as suas ações os mesmos instrumentos das almas dos cérebros mais sábios, deve raciocinar como eles. Que o impediria? Claro que se um maluco vê vermelho e os sábios azul; se quando os sábios ouvem uma música o louco ouve o zurrar de um asno; se quando eles estão no sermão o louco julga estar na comédia; se quando eles ouvem sim, ele entende não, então sua alma deve pensar ao contrário das outras. Mas o louco tem as mesmas percepções que eles; não há nenhuma razão aparente pela qual sua alma, tendo recebido mediante os sentidos todos os seus utensílios, não os possa usar. Ela é pura, dizemos; não está sujeita por si própria a nenhuma enfermidade; ei-la provida de todos os recursos necessários; passe o que se passar em seu corpo, nada poderá mudar a sua essência; contudo, ei-la encerrada num manicômio.[6]
Essa reflexão pode fazer supor que a faculdade de pensar, doada por Deus ao homem, esteja sujeita a desarranjos como os outros sentidos. Um louco é um doente cujo cérebro sofre, como o gotoso é um doente que sofre dos pés e das mãos; ele pensa com o cérebro, assim como anda com os pés, sem nada conhecer nem do seu poder incompreensível de andar, nem do seu não menos incompreensível poder de pensar[7]. Sofre-se a gota no cérebro como nos pés. Enfim, após mil reflexões, é preciso convir em que somente a fé, talvez, possa convencer-nos de que uma substância simples e imaterial seja passível de doença.[8]
Os doutos ou os doutores dirão ao louco: “Meu amigo, não obstante teres perdido o senso comum, tua alma é tão espiritual, tão pura, tão imortal como a nossa; porém nossa alma está bem alojada e a tua o está mal; as janelas da casa estão fechadas para ela; falta-lhe ar, ela sufoca”. O maluco, em seus bons momentos, lhes responderia: Meus amigos, pensais à vossa moda, o que é discutível. Minhas janelas estão tão abertas como as vossas, porquanto eu vejo os mesmos objetos e ouço as mesmas palavras: é pois necessário que, ou minha alma empregue mal os seus sentidos, ou seja ela própria um sentido viciado, uma qualidade depravada. Numa palavra, ou minha alma é louca por sua própria conta ou eu não tenho alma”.[9]
Um dos doutores poderá responder: “Meu irmão, Deus criou, é possível, almas loucas, assim como criou almas sábias.” O louco replicará: “Se eu fosse acreditar no que me dizeis, seria ainda mais louco do que já sou. Por obséquio, vós que sabeis tanto, dizei-me, por que sou louco?”[10]
Se os doutores tiverem ainda um pouco de bom senso lhe responderão: “Ignoro-o absolutamente”[11]. Eles não compreenderão por que um cérebro tem idéias incoerentes; não compreenderão melhor por que outro cérebro tem idéias regulares e coerentes. Julgar-se-ão sábios, e serão tão loucos como ele.
Notas*
* Todas as notas representam observações nossas.
[1] Erasmo de Roterdã.
[2] Doença daquilo que se passa no órgão material cérebro que é vista através de um prisma ético normativo. Doença do corpo material.
[3] Uma doença da matéria, do corpo, que é identificada através de um prisma ético e justamente na reprimenda, na negatividade, suas condutas são conduzidas e seu corpo punido.
[4] Aqui, compreende-se que, diferentemente das noções de idiota e imbecil, o louco, na visão de Voltaire, não tem a cabeça vazia de pensamentos. O louco pensa. Sendo assim, o louco pensa, mas há algo na matéria de seu corpo que participa da emergência individual da loucura.
[5] Além de pensar, também se entende que os sentidos estão preservados em sua função de transmitir as impressões do mundo à alma, para sua percepção.
[6] O louco recebeu as ferramentas para entender o mundo, no entanto, sua alma, após receber as impressões do mundo externo, cria conclusões extravagantes. Primeira crítica: se a alma é a mesma, intacta, pura, então o enclausuramento se faz como prisão de uma alma inocente de alguma maneira afetada por qualquer tipo de desequilíbrio que possa ser chamado de loucura.
[7] A faculdade de pensar está no mesmo nível dos sentidos. O que não modifica a existência e pureza da alma, mas introduz um corte: talvez não seja necessário explicar a relação entre alma e corpo, sendo que a materialidade do corpo que situa a existência da doença. Doença, inclusive, do cérebro, não da alma ou do espírito.
[8] Ou seja, somente com fé, não com observação, que se pode acreditar numa alma doente. A alma não adoece na loucura.
[9] Se a consideração da alma for relevante, então chegaríamos à conclusão de que a loucura não separa espaço para um conceito de alma divina, incorruptível, pura, essencial. Se a loucura envolve a alma, então a alma entregue por Deus é imperfeita, o que faria de Deus imperfeito ou simplesmente não se tem alma. Entretanto, se a alma é um motor, uma essência ideal à vida racional, então não ter alma significa não ter a capacidade de raciocínio, o que foi recusado pelo autor anteriormente.
[10] Novamente, alma louca aparece como produto vulnerável da obra divina.
[11] Por fim, abre-se o caminho para um estudo da loucura unicamente como fenômeno do corpo dentro mesmo da discussão filosófica.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.