Lugares que sempre existiram e existirão – Michel Foucault

Não há unidade possível às heterotopias, mas só a dispersão de um contraespaço, ou seja, a dispersão do irreconhecível, do irrepresentável, do outro lugar que existe, que é concreto, que existe na realidade portanto, mas que é preenchido por um conteúdo utópico, irreal, inalcançável.

Da série “As heterotopias“.

O primeiro princípio heterotopológico que Michel Foucault expõe em seu texto Heterotopias é formulado através de uma negação: “não há, provavelmente, nenhuma sociedade que não constitua sua heterotopia ou suas heterotopias. Está é, sem dúvida, uma constante de todo grupo humano”[1]. A negação da ausência de heterotopias e, portanto, a presença de uma positividade na emergência de uma heterotopia.


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Na medida em que uma sociedade precisa necessariamente, criar seus lugares, disso nasce, automaticamente, os outros lugares[2], as heterotopias próprias da sociedade em questão. A heterotopia, enquanto um outro lugar produzido pela mesma rede de poder que produz também os lugares estabelecidos, é um espaço diferente, um espaço que não se associa necessariamente à liberdade, nem à repressão. Os outros lugares são espaços em que coisas não adequadas à realidade concreta, às normas sociais ou aos códigos morais podem finalmente acontecer sob a batuta de seus participantes. São também espaços em que o ideal tenta ser aplicado na brutalidade do real, em que o utópico assume uma especificidade e momentaneidade.

São espaços específicos que se opõem aos espaços produzidos para o desenrolar da vida:

Há regiões de passagem, ruas, trens, metrôs; há regiões abertas de parada transitória, cafés, cinemas, praias, hotéis, e há regiões fechadas de repouso e da moradia. Ora, entre todos esses lugares que se distinguem uns dos outros, há os que são absolutamente diferentes: lugares que se opõem a todos os outros, destinados, de certo modo, a apagá-los, neutralizá-los ou purificá-los.[3]

Esses lugares absolutamente diferentes são contraespaços. “As crianças conhecem perfeitamente esses contraespaços, essas utopias localizadas”[4] argumenta Foucault, utilizando como exemplo a grande cama dos pais momentaneamente ausentes, a cama em que se pula, as cobertas em que se pode nadar, mas também se esconder. A cama como metáfora do espaço em que o conjunto de regras sociais tende a se desfazer e, neste caso, como sinalização de um prazer que nasce e tão logo morre com a chegada dos pais, que irão punir a criança pela bagunça.

Evidentemente, as heterotopias não são locais de simples prazer. São outros lugares. Locais que funcionam como subproduto de poder, pois estão no interior do poder mas se situam fora das realidades produzidas por ele. A produção de uma ciência das heterotopias precisa levar em consideração que não há uma estrutura fixa de heterotopias, pois elas nascem e morrem de maneira fluida. Segundo Karoline Pereira, “as heterotopias são assistemáticas e ilimitadas, assumindo formas muito variadas. Esse poderia ser um obstáculo, pois uma ciência só pode estudar aquilo que é recorrente e sistemático”[5].

Devido a esse comportamento de sua produção, ou seja, por ser uma contraprodução, Foucault prefere categorizar dois tipos de heterotopias produzidas por dois tipos de sociedades: as heterotopias de crise e as heterotopias de desvio.

  • Heterotopias de crise: categoria inserida para exemplificar as heterotopias produzidas por sociedades ditas primitivas. Nestas sociedades, as crises biológicas eram destinadas a serem tratadas em outro lugar e, no limite, em lugar nenhum. Um exemplo é a menarca, em que a mulher é isolada para que sua primeira menstruação aconteça fora dos lugares previstos de convívio mas, acima de tudo, de ordem social. O mesmo para a noite de núpcias, “era preciso que a defloração da jovem não ocorresse na mesma casa onde ela nascera, era preciso que esta defloração ocorresse, de certo modo, em parte alguma[6].
  • Heterotopias de desvio: o desaparecimento gradativo das heterotopias de crise deu lugar a um tipo diferente nas nossas sociedades: as de desvio, ou seja, as heterotopias destinadas ao desajustados.

    Essas heterotopias de crise, desaparecem cada vez mais e são substituídas por heterotopias de desvio: isto significa que os lugares que a sociedade dispõe em suas margens, nas paragens vazias que a rodeiam, são antes reservados aos indivíduos cujo comportamento é desviante relativamente à média ou à norma exigida.[7]

    De casas de repouso às prisões, as instituições utilizadas como exemplo por Michel Foucault substituem as heterotopias de crise e inserem a figura do desviante como foco.

A divisão entre sociedades primitivas com heterotopias biológicas, de crise, e sociedades contemporâneas com heterotopias de desvio é estabelecida por Michel Foucault para exemplificar a possibilidade de se caracterizar uma sociedade pela sua produção de outros lugares. Se os outros lugares não são fixos nem contém uma estrutura, eles ainda são produzidos como outros lugares e não são distantes das relações de poder. “Os espaços outros não são espaços à parte das relações de poder, mas de certo modo, são espaços que põe em questão essas relações, em que elas revelam a própria crise entre ordem e sua desordem”[8], salienta Clarissa Naback.

Naback pontua esta dificuldade de fixar uma estrutura para uma heterotopia, pois

elas se caracterizam pela justaposição de elementos incomuns e entre si (ou incomensuráveis) e que não permitem a construção de uma unidade, ou estabilidade. Apresentam, portanto, certo distúrbio na ordem das coisas, mas não são intrinsecamente espaços de resistência, podendo expressar ambas forças, controle e luta. Por isso, Hetherington trata-as como um limite da experiência, ou seja, aqueles espaços, que nas relações espaciais, põe em relevo, ou em crise a ordem das coisas; são espaços performativos que apontam o real como ilusório, ou a desordem como a possibilidade real.[9]

Unidade impossível às heterotopias, mas tão somente a dispersão de um contraespaço, ou seja, a dispersão do irreconhecível, do irrepresentável, do outro lugar que existe, que é concreto, que existe na realidade portanto, mas que é preenchido por um conteúdo utópico, irreal, inalcancável. Não são locais necessariamente de resistência, como as prisões ou manicômios, como os locais de isolamento das mulheres em sua primeira menstruação, mas são locais interligados ao poder e produzidos como que numa necessidade de mostrar o nó confuso de suas relações, como que numa necessidade de ser o outro espaço dos espaços socialmente previstos e ordenados, ou seja, um espaço que talvez exista pela finitude do social enquanto ainda é um lugar social, mas como resultado da existência finita deste social, não de sua ordenação planejada.


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Figuras do desatino

Referências

[1] FOUCAULT, Michel. O corpo utópico / As heterotopias. Tradução de Salma Tannus Muchail. 1ª edição, São Paulo: N-1 edições, 2013, p. 21.

[2] FOUCAULT, Michel. O corpo utópico / As heterotopias… p. 22.

[3] FOUCAULT, Michel. O corpo utópico / As heterotopias… p. 19-20.

[4] FOUCAULT, Michel. O corpo utópico / As heterotopias… p. 20.

[5] PEREIRA, Karoline M. F. Corpo, interdição e heterotopia: a nudez do corpo da mulher no discurso da propaganda turística oficial brasileira. Dissertação de mestrado, Programa de pós-graduação em linguística do Centro de ciências humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), 2015, p. 53.

[6] FOUCAULT, Michel. O corpo utópico / As heterotopias… p. 22.

[7] FOUCAULT, Michel. O corpo utópico / As heterotopias… p. 22.

[8] NABACK, Clarissa. Pensar o poder, o espaço e o corpo: heterotopias e fronteiras. Cadernos do Seminário da Pós, [S.l.], v. 1, n. 1, july 2017. Disponível em: <https://seminariopg.jur.puc-rio.br/index.php/cadernoseminariopos/article/view/10>. Acesso em: 05 apr. 2023, p. 11.

[9] NABACK, Clarissa. Pensar o poder, o espaço e o corpo: heterotopias e fronteiras… p. 11.

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