Índice
Introdução
Um campo social contém uma lei fundamental, uma lei instituída, uma constituição. Uma lei arbitrária, mas que define o próprio jogo, que é validada e valida o engajamento dos agentes sociais na illusio, que fundamenta as crenças existentes na doxa, que fornece a autonomia do campo.
Na medida em que os campos “se apresentam à apreensão sincrônica como espaços estruturados de posições (ou de postos) cujas propriedades dependem das posições nestes espaços” (BOURDIEU, 2003, p.119), se apresentam como um campo de poder em que as posições estão em concorrência pela dominação em seu interior, há algo que os une nesta disputa, há algo que garante a permanência desta pressão incessante dos dominados sobre os dominantes e pelos dominantes sobre o restante do campo.
A doxa é o elemento que garante certa coesão sobre os objetivos e objetos no campo. Doxa é o conjunto de “crenças fundamentais que nem sequer precisam se afirmar sob a forma de um dogma explícito e consciente de si mesmo” (BOURDIEU, 2001, p. 25).
Mas esta doxa é sustentada por uma lei geral, por princípio geral de visão e divisão. Trata-se do nomos. O objetivo deste artigo é expor o conceito de nomos para Pierre Bourdieu.
Nomos
O nomos é um “princípio legítimo de divisão aplicável a todos os aspectos fundamentais da existência, definindo o pensável e o impensável, o prescrito e o proscrito, ele acaba permanecendo impensado; matriz de todas a questões pertinentes, ele é incapaz de produzir as questões aptas a questioná-lo” (BOURDIEU, 2001, p. 117) que se expressa como uma “uma lei tácita (nomos) da percepção e da prática que fundamenta o consenso sobre o sentido do mundo social” que só se enuncia concretamente “quando acontece que o faça, a título excepcional, sob a forma de tautologias” (BOURDIEU, 2008b, p. 147-148).
Essas tautologias podem ser observadas na máxima artísticas, “arte pela arte” ou na máxima econômica, “negócios são negócios”. Ela tendem a normatizar o campo específico por meio da essencialização de seu princípio: no campo artística, a arte é o que importa; no campo econômico, os negócios é que importam.
Thiry-Cherques resume a nomos de maneira didática como o princípio de funcionamento do campo:
O nomos congrega as leis gerais, invariantes, de funcionamento do campo. A evolução das sociedades faz com que surjam novos campos, em um processo de diferenciação continuado. Todo campo, como produto histórico, tem um nomos distinto. Por exemplo, o campo artístico, instituído no século XIX, tinha como nomos: “a arte pela arte”. Tanto a doxa como o nomos são aceitos, legitimados no meio e pelo meio social conformado pelo campo (THIRY-CHERQUES, 2006, p. 37).
É por isso que o nomos estão num imbrincamento entre illusio e doxa, na medida em que criam a constituição do campo, fornecendo coesão para doxa e sentido ao engajamento no jogo. “Consequentemente, pode-se dizer que nomos são leis gerais que auxiliam a explicar o funcionamento de um campo” (CARVALHO, 2022, p. 50).
Os campos, enquanto universos sociais com leis próprias tendem a ter sua lei fundamental, seu nomos que é independente da constituição dos outros campos. Um campo se constitui diferencialmente em relação a outros campos quando alcança sua autonomia, ou seja, quando se constitui por leis internas, por normas internas e por uma constituição própria “que avaliam o que se faz aí, as questões que aí estão em jogo, de acordo com princípios e critérios irredutíveis aos de outros universos” (BOURDIEU, 2008b, p. 147-148).
Daí vem, por exemplo, a rejeição ao economicismo, a tentativa de reduzir toda a realidade social às regras do campo econômico, que tende a destruir a autonomia dos campos sociais externos ao econômico:
Estamos aqui nos antípodas do economicismo, que consiste em aplicar a todos os universos o nomos característico do campo econômico. O que implica esquecer que esse mesmo campo se construiu por meio de um processo de diferenciação que postulava que o economico não é redutível às leis que regem a economia doméstica, a philia, como dizia Aristóteles, e também o inverso (BOURDIEU, 2008b, p. 147-148).
Isso pois, o campo se autonomiza a partir de sua lei geral e, sem ela, deixa de existir. Trata-se da destruição de um universo social autônomo, da destruição da vida daqueles que participam do campo. Mas é importante compreender que esta lei fundamental é arbitrária e, justamente por isso, é social e simbólica:
O arbitrário situa-se no princípio de todos os campos, até dos mais “puros”, como os mundos artístico e ou científico: cada um deles possui sua “lei fundamental”, seu nomos (palavras que e traduz em geral por “lei” e que seria preferível verter por “constituição”, que lembra melhor o ato de instituição arbitrária, ou por “princípio de visão e de divisão”, mais colado à etimologia). Não há nada a dizer a repeito dessa lei a não ser, como dizia Pascal, que “a lei é a lei, e nada mais” (BOURDIEU, 2001, p. 117).
Nomos é a lei que não se questiona, pois seu questionamento é a invalidação da existência do campo constituído. Daí da existência de mecanismos de seleção para a entrada num campo social (os universitários devem fazer mestrado e doutorado para entrar no mundo acadêmico e propôr mudanças em modelos teóricos ou conclusões empíricas com relevância) e de mecanismos de exclusão (o universitário que não atender ao método, não obedecer a metodologia, não incorporar os princípios puros de produção de conhecimento serão paulatinamente excluídos dos círculos de pesquisa por fazerem, às vezes, uma investigação sob o interesse econômico do financiador; às vezes, por manipular os resultados; às vezes, por utilizar um método sigular sem reconhecimento dos pares e, portanto, impossível de ter seus resultados reconhecidos.
A família
Para exemplificar o nomos no nível da constituição do mundo social amplo a partir do Estado, Pierre Bourdieu insere a família como palavra de ordem que fundamenta a existência de um núcleo de socialização básico responsável pela reprodução social e pela manutenção dos agentes sociais presentes.
A família, assim, é entendida como construção social, na medida em que as formas da família se modificam em diferentes sociedades, mas, ao mesmo tempo, enquanto ficção social instituída, é uma realidade imperativa:
Dito isso, se é verdade que a família é apenas uma palavra, também é verdade que se trata de uma palavra de ordem, ou melhor, de uma categoria, princípio coletivo de constrção da realidade coletiva. Pode-se dizer, sem contradição, que as realidade sociais são ficções sociais sem outro fundamento que a construção social e que, ao mesmo tempo, existem realmente, coletivamente reconhecidas. Em todos os usos de conceitos classificatórios, como o de família, fazemos ao mesmo tempo uma descrição e uma prescrição que não aparece como tal porque é (quase) universalmente aceita, e admitida como dada: admitimos tacitamente que a realidade à qual atribuímos o nome família, e que colocamos na categoria de famílias de verdade, é uma família real (BOURDIEU, 2008, p. 126-127).
Percebe-se, assim, a importância dos debates jurídicos sobre a designação da família que pode ou não incluir mães solteiras, pode ou não incluir casais LGBT, pode ou não incluir membros que distoam da normatização heterossexual conservadora cristã.
Assim, se podemos admitir, acompanhando a etnometodologia, que a família é um princípio de construção da realidade social, também é preciso lembrar, contra a etnometodologia, que esse princípio de construção é ele próprio socialmente construído e que é comum a todos os agentes socializados de uma certa maneira. Dito de outro modo, é um princípio comum de visão e de divisão, um nomos, que todos temos no espírito, porque ele nos foi inculcado por meio de um trabalho de socialização concretizado em um universo que era ele próprio realmente organizado de acordo com a divisão em famílias (BOURDIEU, 2008, p. 127-128).
A família, na organização das sociedades do Ocidente, tem como papel inculcar o habitus primário, básico para a existência do agente dentro dos campos que irá participar e, principalmente, de retirá-lo dos campos em que a entrada não será possível:
Esse princípio de construção é um dos elementos constitutivos de nosso habitus, uma estrutura mental que, tendo sido inculcada em todas as mentes socializadas de uma certa maneira, é ao mesmo tempo individual e coletiva; uma lei tácita (nomos) da percepção e da prática que fundamenta o consenso sobre o sentido do mundo social (e da palavra família em particular), fundamenta o senso comum. Isto é, as pré-noções do senso comum e as folk categories da sociologia espontânea, aquelas que a boa metodologia manda que se questione primeiro, podem, como aqui, estar bem fundamentadas, porque contribuem para criar a realidade que evocam (BOURDIEU, 2008, p. 127-128).
Então, Bourdieu compreende que a ficção que a linguagem materializa se faz, através da materialização na linguagem e na sua força enquanto elemento social, em realidade:
Quando se trata do mundo social, as palavras criam as coisas, já que criam o consenso sobre a existência e o sentido das coisas, o senso comum, a doxa aceita por todos como dada. (Para medir a força dessa evidência compartilhada, seria preciso relatar aqui o testemunho daquelas mulheres que entrevistamos recentemente, no decorrer de uma pesquisa sobre a miséria social e que, por não se comportarem de acordo com a norma tácita que impõe, de maneira cada vez mais imperativa à medida que envelhecemos, casar e ter filhos, falam todas das pressões sociais exercidas sobre elas, para chamá-las à ordem, a se “comportar”, a encontrar um cônjuge e a ter filhos – por exemplo, as fofocas e os problemas associados ao estatuto da mulher sozinha, em festa ou jantares, ou a dificuldade de ser inteiramente levada a sério, porquanto ser social incompleto, inacabado, como que mutilado) (BOURDIEU, 2008, p. 127-128).
A família, assim, não é só uma instituição social, mas é uma nomos da própria sociedade no interior de um Estado-nação, no miolo de um Estado de direito em que a socialização mínima é de sua responsabilidade.
Cabe justamente ao Estado realizar a ficção familiar enquanto realidade impossível de ser mitigada, a fundamentando em lei, garantindo o direito de sua existência, delimitando sua configuração e garantindo processos de sua construção particular.
Considerações finais
O nomos, então, é a lei fundamental que, na medida em que constitui o campo, não pode ser questionada sem o risco de destruir a própria autonomia que ele mesmo fundamenta:
Tendo-se aceitado o ponto de vista constitutivo de um campo, torna-se completamente inviável assumir a seu respeito um ponto de vista externo: por jamais ter sido postulada desse modo, tal “tese” não pode ser contestada, e o nomos não tem antítese; princípio legítimo de divisão aplicável a todos os aspectos fundamento e o proscrito, ele acaba permanecendo impensado; matriz de todas a questões pertinentes, ele é incapaz de produzir as questões aptas a questioná-lo (BOURDIEU, 2001, p. 117).
O nomos, manifestado como lei geral de um campo específico, é “irredutível e incomensurável a qualquer outra, ela nunca poder ser referida à lei de um outro campo ou ao regime de verdade aí implicado”, é o princípio geral de distinção entre os campos e a manutenção de sua autonomia, de sua autoridade em produzir sua própria verdade.
Referências
BOURDIEU, Pierre. Meditações pascalianas. Tradução Sergio Miceli. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
BOURDIEU, Pierre. Espíritos de Estado: gênese e estrutura do campo burocrático. Apêndice: o espírito da família. IN Razões práticas: sobre a teoria da ação. 9ª edição, Campinas: Papirus, 2008.
BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. 1ª edição, Fim de Século: Lisboa, 2003.
BOURDIEU, Pierre. É possível um ato desinteressado? IN Razões práticas: sobre a teoria da ação. 9ª edição, Campinas: Papirus, 2008b.
CARVALHO, A. L. Pierre Bourdieu: contribuições para o pensamento jurídico. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Direito do Mackenzie, 2022.
GOMES, R. O.; ALMEIDA JUNIOR, A. S. Revisitando a noção de campo de Pierre Bourdieu para Compreender a produção de conhecimentos da educação física brasileira. Educ. rev., Belo Horizonte , v. 38, e26794, 2022.
THIRY-CHERQUES, H. R.. Pierre Bourdieu: a teoria na prática. Revista de Administração Pública, v. 40, n. 1, p. 27–53, jan. 2006.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.