Índice
- Introdução;
- A enunciação no emprego da língua;
- A formação do eu;
- O diálogo e o monólogo;
- Considerações finais;
- Referências.
Introdução
Émile Benveniste pretende separar a análise da forma e do emprego da língua para estabelecer um conjunto de elementos que possibilite a enunciação. O ponto de Benveniste é separar, assim, o texto do ato da enunciação, aquilo que é dito do ato de se dizer, já que o autor coloca seus esforços num caminho diferente das descrições linguísticas comuns em sua época, que trabalhavam com com vistas a esclarecer as condições sintáticas nas quais as formas podem e devem acontecer.
Na análise do aparelho formal de enunciação, o linguista não está preocupado com as variações morfológicas e latitudes combinatórias de signos que uma língua pode gerar. Assim, seu objetivo é descrever as condições necessárias para que a enunciação aconteça e os efeitos de seu acontecimento.
A enunciação no emprego da língua
Para Benveniste, é necessário distinguir as condições de emprego das formas e as condições de emprego da língua. Isso significa que um enfoque na nomenclatura morfológica e gramatical não é suficiente para entender como a língua de fato funciona.
- O emprego das formas envolve uma possibilidade de descoberta de “um grande número de modelos, tão variados quanto os tipos linguísticos dos quais eles procedem”[1]. Quando se pesquisa sobre as diferentes estruturas linguísticas, nota-se que não é possível definir um pequeno número de modelos com elementos essenciais, como uma estrutura universal da língua.
- O emprego da língua envolve a análise de um “mecanismo total e constante que, de uma maneira ou de outra, afeta a língua inteira”[2]. Este mecanismo total é um fenômeno de difícil apreensão e passa desapercebido, na medida em que parece se confundir com a própria língua.
Para o segundo tipo de análise, intenção de Benveniste, é necessário observar a língua em uso, na medida em que “a enunciação é este colocar em funcionamento a língua por um ato individual de utilização”[3]. Quando o sujeito coloca a língua em uso, ou seja, quando produz um discurso através da fala, cria-se a situação perfeita para análise da enunciação, mas é necessário compreender que este tipo de análise não tem como ponto central o texto do enunciado, mas a própria produção do enunciado. O simples ato da enunciação.
Este ato é fato do locutor que mobiliza a língua por sua conta. A relação do locutor com a língua determina os caracteres linguísticos da enunciação. Deve-se considerá-la como o fato do locutor, que toma a língua por instrumento, e nos caracteres linguísticos que marcam esta relação.[4]
A primeira consideração sobre a análise do aparelho formal da enunciação é, portanto, a sede da análise no ato da enunciação, não em seu conteúdo textual. Este ato promove a instrumentalização da língua, que é utilizada por um sujeito livre. A produção do enunciado se dá através de um mecanismo específico. Primeiramente, a enunciação “supõe a conversão individual da língua em discurso”[5]. A língua, através da fala, é colocada numa linha temporal e convertida em um discurso. Esta é a assunção básica para uma posterior análise do emprego das formas. Entretanto, Benveniste está preocupado com a análise formal da enunciação, ou seja, com a análise dos elementos necessário para a produção dos enunciados ao longo do tempo, com as condições necessárias para a produção do discurso.
Quando considerado o emprego da língua, tem-se: 1) o ato da enunciação em si; 2) as situação de sua realização; 3) os instrumentos necessários para que seja realizado:
- O ato da enunciação pressupõe uma língua e, durante o uso, o reconhecimento de si como locutor e do outro como ouvinte. Locutor e ouvinte são posições que, durante um diálogo, trocam entre si, independentemente da presença física de um outro indivíduo (na medida em que um sujeito solitário também pode exercer a função de locutor e de ouvinte de si), “toda enunciação é, explícita ou implicitamente, uma alocução, ela postula um alocutário”[7].
- A enunciação acontece numa situação em que o locutor instrumentaliza a língua para se relacionar com o mundo: “na enunciação, a língua se acha empregada para a expressão de uma certa relação com o mundo”[6]. Para isso, o locutor precisa se apropriar da língua, cuja condição de possibilidade é a referência estabelecida pelo discurso. O ouvinte pode, por sua vez, se co-referir identicamente. “A referência é parte integrante da enunciação”[8].
- Como instrumento, o locutor tem a própria língua que é apropriada, de maneira que somente assim é possível enunciar “sua posição de locutor por meio de índices específicos, de um lado, e por meio de procedimentos acessórios, de outro”[9]. Adiante, falaremos de ambos.
A formação do eu
Um indivíduo que enuncia, se introduz na fala e sua presença torna cada instância do discurso um centro de referência interno. Na fala, o locutor está em relação constante com sua própria enunciação através de formas específicas:
- Índices pessoais: eu e tu são dois índices que emergem na enunciação, sendo o eu responsável por identificar o locutor e o tu, o alocutário.
- Índices de ostensão: este, aqui e etc. são índices que designam o objeto e o tempo, mas sempre parte da posição do eu.
- Pronomes pessoais e demonstrativos: que aparecem como indivíduos linguísticos, que traçam uma ligação a indivíduos, diferentemente de pronomes pessoais que se referem a conceitos. “O estatuto destes ‘indivíduos linguísticos’ se deve ao fato de que eles nascem de uma enunciação, de que são produzidos por este acontecimento individual”[10].
- Formas temporais: todas se determinam em relação ao eu, localizado no centro de suas possibilidades de existência. “Os ‘tempos’ verbais cuja forma axial, o ‘presente’, coincide com o momento da enunciação, fazem parte deste aparelho necessário”[11].
Segundo Benveniste, a temporalidade nem mesmo é uma categoria inata ao pensamento. Ela é produzida na e pela enunciação e é necessária para seu acontecimento, pois a enunciação instaura a categoria do presente, condição da abertura de toda forma de temporalidade.
O presente é propriamente a origem do tempo. Ele é esta presença no mundo que somente o ato de enunciação torna possível, porque, é necessário refletir bem sobre isso, o homem não dispõe de nenhum outro meio de viver o “agora” e de torná-lo atual senão realizando-o pela inserção do discurso no mundo.[12]
Sendo assim, é possível compreender que a enunciação é responsável pela existência de certa classe de signos que dependem do uso da língua. Entidades linguísticas como o “eu”, “aquele” e o “amanhã” (quando inseridos num texto) são nomes metalinguísticos produzidos a partir da enunciação do eu, aquele e amanhã.
Além das formas que comanda, a enunciação fornece as condições necessárias às grandes funções sintáticas. Desde o momento em que o enunciador se serve da língua para influenciar de algum modo o comportamento do alocutário, ele dispõe para este fim de um aparelho de funções. É, em primeiro lugar, a interrogação, que é uma enunciação construída para suscitar uma “resposta”, por um processo linguístico que é ao mesmo tempo um processo de comportamento com dupla entrada. Todas as formas lexicais e sintáticas da interrogação, partículas, pronomes, sequência, entonação, etc., derivam deste aspecto da enunciação.[13]
A enunciação forma um eu, mas também permite que diversas outras categorias até então descritas como parte do pensamento passem a existir.
O diálogo e o monólogo
A enunciação, assim é caracterizada pela “acentuação da relação discursiva com o parceiro, seja este real ou imaginado, individual ou coletivo”[14] através do diálogo. Assim, tem-se o quadro figurativo da enunciação, que se resume na relação posta entre duas figuras necessárias: uma origem da enunciação, o locutor, o destinatário da enunciação, o alocutário, que se alternam no protagonismo do diálogo.
Até mesmo o monólogo se encaixa neste quadro figurativo:
Ele deve ser classificado, não obstante a aparência, como uma variedade do diálogo, estrutura fundamental. O “monólogo” é um diálogo interiorizado, formulado em “linguagem interior”, entre um eu locutor e um eu ouvinte. às vezes, o eu locutor é o único a falar; o eu ouvinte permanece entretanto presente; sua presença é necessária e suficiente para tornar significante a enunciação do eu locutor.[15]
O eu ouvinte, inclusive, pode entrar com objeções, com questões, dúvidas, insultos. Independentemente de como isso acontece, sempre se realiza através de uma forma “pessoal”.
Considerações finais
O aparelho formal da enunciação é um conjunto de mecanismos e situações em que a enunciação toma forma e sentido na prática social. Acima de tudo, a enunciação é uma prática social que pressupõe o diálogo, seja ele entre pares ou individual, reflexivo.
Até mesmo num diálogo de frases em que o sentido é indiferente, como numa conversar de bar após um dia longo de trabalho, em que o significado do que se diz vale menos do que o próprio ato de dizer e comungar entre pessoas que se gosta, a enunciação assume um papel coletivo, de prática social, de prática que depende dos elementos básicos do aparelho formal da enunciação para existir, como a presença do outro, a referência e o domínio do emprego da língua.
Referências
[1] BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral II. Tradução de Eduardo Guimarães et al; revisão técnica de Eduardo Guimarães. Campinas SP: Pontes, 1974, p. 82.
[2] BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral II… p. 82.
[3] BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral II… p. 82.
[4] BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral II… p. 82.
[5] BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral II… p. 83.
[6] BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral II… p. 84.
[7] BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral II… p. 84.
[8] BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral II… p. 84.
[9] BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral II… p. 84.
[10] BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral II… p. 85.
[11] BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral II… p. 85.
[12] BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral II… p. 85.
[13] BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral II… p. 86.
[14] BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral II… p. 87.
[15] BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral II… p. 87-88.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.
Olá Vinícius, muito boa sua explanação sobre este texto de Benveniste. Me ajudou muito. Grata pelo empenho.
Abraços,
Malu
Obrigado pelo comentário, Malu!