Índice
- Introdução;
- A leitura enquanto componente da luta de classes;
- Os gestos de leitura;
- Considerações finais;
- Referências.
Introdução
A interpretação funciona como uma máquina de realizar a concretude do mundo no nível discursivo. É a partir da interpretação que o signo adquire seu sentido e constrói a realidade como espaço de entendimento e de possibilidade de ação. Para a análise do discurso francesa, a interpretação não é resultado de uma ação individual, subjetiva e, portanto, livre, indeterminável. Ela é um gesto de leitura.
Os gestos de leitura têm sua própria história, contam os caminhos que os sujeitos do discurso passam para conduzir sua explicação do mundo e reproduzir as relações que seus discursos acarretam. O objetivo deste artigo é mostrar o funcionamento dos gestos de leitura a partir da perspectiva pecheuxtiana tomando como objeto a reunião ministerial do governo Bolsonaro no dia 22 de abril de 2020, que foi disponibilizada ao público em 22 de maio do mesmo ano. Para isso, analisaremos as leituras de Ciro Gomes, Fernando Haddad e Marina Silva.
Não serão detalhadas as relações que constituem as formações discursivas que interpelam estes sujeitos, mas sim as características dos enunciados ditos no momento da publicização do conteúdo em vídeo da reunião ministerial, o que indica o gesto de leitura próprio e característico do discurso que atravessa cada candidato.
A leitura enquanto componente da luta de classes
Pêcheux, no objetivo de retirar as massas populares de um certo status de objeto, elabora uma pesquisa com análise centrada na interpretação de um texto político (o relatório Mansholt) feita por dois grupos de participantes pertencentes à pequeno-burguesia francesa[1]. O primeiro grupo foi conduzido a acreditar que se tratava de uma proposta política de esquerda, já o segundo, que se tratava de uma proposta política de direita.
O mote de interpretação gerou dois grupos diferentes de enunciados para descrever o texto político e entendê-lo no contexto francês. O objetivo não era determinar as variações utilizadas para produzir os enunciados explicativos,
a distribuição lexical se mostrava quase idêntica nos dois corpora, e nenhuma outra diferença podia ser identificada no nível sintático. No entanto, essas constatações não se colocavam para nós como suficientes para chegarmos a uma conclusão, porque pressentíamos que as diferenças e as contradições, se é que as haveria entre os dois corpora, não poderiam situar-se no nível sintático ou no nível puramente lexical. O que queríamos determinar era como as palavras, expressões, enunciados funcionavam em cada um dos corpora, com referentes ideológicos e políticos diferentes e eventualmente antagônicos: enfim, eram as características “semânticas” e “argumentativas” dos dois corpora que sobretudo nos interessavam.[2]
Pois o discurso também é objeto e objetivo na luta de classes:
No terreno da linguagem, a luta de classes ideológica é uma luta pelo sentido das palavras, expressões e enunciados, uma luta vital por cada uma das duas classes sociais opostas que têm se confrontado ao longo da história. Essa luta continua hoje como uma luta revolucionária incessante contra o estágio final do capitalismo.[3]
Dentro do campo daquilo que é dito, há luta de classes que está fundada justamente na disputa pelos significados, no embate constante do sentido sobre o mundo e seus elementos. É justamente neste campo de luta que os dizeres se organizam e o mundo passa a ser um razoável receptáculo de ações práticas. O significado que damos ao mundo é aquilo que nos permite agir e modificá-lo ou, por sua vez, mantê-lo.
Todas as movimentações possíveis acontecem através do processo de interpelação que, na análise pecheuxtiana, tem lugar nas formações discursivas. Ao interpelar o indivíduo, o transforma em seu sujeito, capaz de praticar aquilo que “pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc.) a partir de uma posição dada numa conjuntura dada”[4]. A formação discursiva está localizada em uma formação ideológica dada, que fornece “os ‘objetos’ ideológicos [que] são sempre fornecidos ao mesmo tempo que a ‘maneira de se servir deles’ – seu ‘sentido’, isto é, sua orientação, ou seja, os interesses de classe aos quais eles servem”[5].
A disputa de significados pode ser vista no discurso dito por um grupo social, mas também através da produção individual do sujeito assujeitado por uma formação discursiva dada. A interpretação expressa na escritura (no comentário, na crítica, na descrição) é uma forma imediata do sujeito produzir textos, sempre estando interpelado por uma formação discursiva dada.
Os gestos de leitura
Desde a Era Clássica, dois tipos de tratamento de textos, um referente à cultura literária e outro à cultura científica, eram comuns no mundo acadêmico. Essas duas culturas podiam ser metaforizadas na figura de Blaise Pascal, intelectual que lidava com questões filosóficas e teológicas, mas também físico-matemático, que se esforçava para resolver os problemas destas áreas em seu tempo.
Do século XVIII ao século XX, ambas as culturas se distanciaram cada vez mais e, de certa forma, passaram a se ignorar como variáveis de leituras possíveis. De um lado, filósofos, historiadores e pessoas de letras com suas leituras subjetivas, solitárias e individuais; do outro lado, os aparelhos do poder de nossa sociedade, de maneira anônima e fastidiosa, gerando a memória coletiva através do ato de copiar, transcrever, codificar, extrair, indexar, etc. Estava posta a dicotomia entre o singular e o anônimo, entre o criativo e o mecânico, entre o subjetivo e o objetivo, entre, finalmente, as filosofias da história e as disciplinas da interpretação e o positivismo lógico.
Por tradição, os profissionais da leitura de arquivos são “literatos” (historiadores, filósofos, pessoas de letras) que têm o hábito de contornar a própria questão da leitura regulando-a num ímpeto, porque praticam cada um deles sua própria leitura (singular e solitária) construindo o seu mundo de arquivos.[6]
A leitura individual só parece de fato individual na falsa evidência causada pela sua prática através dos esquecimentos que constituem a forma-sujeito. Estes esquecimentos são as ilusões que constroem a experiência imediata de ser um indivíduo produtor de suas falas, de seus significados, de ser senhor daquilo que diz. O gesto de leitura, por sua vez, aparece como acontecimento irrepetível, como construção mágica e única, na medida que é ato de um sujeito senhor de sua prática do discurso. Entretanto, através dos conceitos já esboçados anteriormente, a prática da leitura é uma prática feita através do campo discursivo, desta forma, é possível recolher uma história dos gestos de leitura materializados nas escrituras delineando este campo de relações que possibilitam a produção de enunciados.
Pensando numa linha de investigação focada na leitura dos literatos:
Seria de maior interesse reconstruir a história desse sistema diferencial dos gestos de leitura subjacente, na construção do arquivo, no acesso aos documentos e a maneira de apreendê-los, nas práticas silenciosas da leitura “espontânea” reconstituíveis a partir de seus efeitos na escritura: consistiria em marcar e reconhecer as evidências práticas que organizam essa leitura, que organizam essa “leitura literal” (enquanto apreensão-do-documento) numa “leitura” interpretativa – que já é uma escritura.[7]
É desta maneira que seria possível criar um espaço de investigação para exibir as diferentes maneiras de ler, para mostrar as relações do sujeito leitor com seus arquivos, com suas conjunturas próprias de leitura. O sujeito leitor é atravessado pelo discurso, de tal maneira que a leitura se transforma em um trabalho de dizer quando se produz o esforço interpretativo na forma de uma escritura.
Sendo assim, é possível refazer, como no trabalho de Pêcheux em As massas populares são um objeto inanimado e com base em Ler o Arquivo Hoje, o caminho das leituras de diferentes sujeitos num mesmo campo de atuação a respeito de um mesmo objeto (que se transforma em objeto diferente quando a leitura é produzida, quando os caracteres de definição que a própria leitura vai constituir o objeto é expressado). Para isso, ir-se-á analisar a fala de três políticos brasileiros candidatos à Presidência da República a respeito da reunião ministerial do governo Bolsonaro do dia 22 de abril de 2020.
A reunião foi liberada ao público no dia 22 de maio e mostrou, na íntegra, todos os assuntos conversados pelos ministros do Governo em conjunto com o Presidente da República. As falas analisadas serão de: Ciro Gomes[8], candidato à Presidência em 2018 pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), Fernando Haddad[9], candidato pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e Marina Silva[10], candidata pela Rede Sustentabilidade (REDE).
Ciro Gomes e a racionalidade politicamente democrática
Primeiramente, a fala de Ciro Gomes, divulgadas em seu perfil no Twitter, terá espaço para análise:
“Com números de ontem, 20 mil e 47 brasileiros já tinham morrido por esta terrível pandemia do COVID. 390 mil brasileiros contaminados estão aí desesperados por falta de leito de UTI, por falta de teste, por falta de respiradores e eu esperava, porque além dessa tragédia de saúde pública, uma das piores da nossa história, eu também estou testemunhando milhões de empregos serem destruídos, um verdadeiro genocídio das pequenas e micro empresas. Isso tudo pede que o país faça um enorme esforço, reunido, para lutar contra essas coisas. Aí, o que eu assisto e não posso ficar calado: uma reunião que parece que transformou o palácio do planalto num verdadeiro covil de bandidos, esse é o meu sentimento. Quem assistiu essa reunião, como eu agora assisti na televisão, fica chocado com o nível de vulgaridade, de incompetência, de paranoia, de alucinação coletiva que o Jair Bolsonaro conseguiu levar para o Poder no Brasil. O presidente, que notoriamente faz da reunião um esforço para invadir atribuições da polícia, Judiciário, da Polícia Federal, em direção a proteger o que ele mesmo fala: seus familiares e seus amigos em função dos crimes que cometeram. Em seguida, distribuindo a palavra, é um verdadeiro [inaudível]. Uma verdadeira fila de desatinos e maluquices que começa por um ministro da Educação defendendo que os vagabundos, ele chamou de vagabundos, do Supremo Tribunal Federal devam ser presos. Isso é um cometimento de um crime muito grave de responsabilidade e o Bolsonaro viu e assentiu. Vira para o outro lado da mesa e está o Paulo Guedes com todo cinismo e ironia, numa época dessas, falando números absolutamente mentirosos de 300 bilhões de reais que teriam sido desembolsados, de crédito em profusão que teria sido liberado, o que simplesmente não aconteceu. Até o presente momento, 30 bilhões foram liberados para pagar as 55 milhões de família que vão receberam… Que receberam a primeira parcela da ajuda. Passa pra essa bandida ministra das Mulheres, dos Direitos Humanos, defendendo a prisão de governadores e prefeitos pelo crime de estarem fazendo aquilo que manda a Organização Mundial de Saúde ou seja, estimulando o isolamento social, protegendo vidas. Passa pro outro lado da mesa, vem o outro ministro, do Meio Ambiente, dizer assim com essas palavras (com Bolsonaro aplaudindo): que nós precisamos aproveitar, disse o ministro, essa distração macabra que hoje orienta nosso povo pelo medo e pelo pavor de morrer ou de perder o emprego, para destruir a legislação que protege o meio ambiente, o patrimônio histórico e as populações indígenas. Gente querida, não dá pra ficar calado. Nós estamos sendo governados por uma quadrilha de bandidos e essa quadrilha de bandidos precisa ser afastada do poder pelos caminhos da democracia, por isso eu defendo o impedimento deste Presidente da República sem o que, este país, não sei que futuro terá.”
É possível identificar três tipos de construções no enunciado de Ciro Gomes, um relacionado à sanidade, um relacionado ao crime, outro relacionado à solução:
Em relação à sanidade:
- “Quem assistiu essa reunião, como eu agora assisti na televisão, fica chocado com o nível de vulgaridade, de incompetência, de paranoia, de alucinação coletiva que o Jair Bolsonaro conseguiu levar para o Poder no Brasil”;
- “Em seguida, distribuindo a palavra, é um verdadeiro [inaudível]. Uma verdadeira fila de desatinos e maluquices que começa por um ministro da Educação defendendo que os vagabundos […]”.
Assim, temos o seguinte esquema: local de sanidade – prática insana.
Em relação ao crime:
- “Gente querida, não dá pra ficar calado. Nós estamos sendo governados por uma quadrilha de bandidos”;
- “Aí, o que eu assisto e não posso ficar calado: uma reunião que parece que transformou o palácio do planalto num verdadeiro covil de bandidos”.
Podemos retirar o seguinte esquema: indignação – transformação – crime. Indignação justamente com a transformação de um local que deveria, idealmente, ser imaculado pelo crime.
Por fim, a solução das luzes, da racionalidade, através da exibição de dados estatísticos e proposta de resolução pela via democrática:
- “Com números de ontem, 20 mil e 47 brasileiros já tinham morrido por esta terrível pandemia do COVID. 390 mil brasileiros contaminados estão aí desesperados por falta de leito de UTI, por falta de teste, por falta de respiradores e eu esperava, porque além dessa tragédia de saíde pública, uma das piores da nossa história, eu também estou testemunhando milhões de empregos serem destruídos, um verdadeiro genocídio das pequenas e micro empresas. Isso tudo pede que o país faça um enorme esforço, reunido, para lutar contra essas coisas…”;
- “Por isso eu defendo o impedimento deste presidente da república sem o que, este país, não sei que futuro terá.”.
Assim, é possível estabelecer o seguinte esquema semântico: razão instrumental – solução racional politicamente democrática. Aqui, a democracia sendo a forma de governo racional, pois ela pede o uso do método quantitativo de análise de conjuntura para tomada de decisão política (o impedimento).
Por fim, temos, em justaposição, os seguintes esquemas:
- Local de sanidade – prática insana;
- Indignação – transformação – crime;
- Razão instrumental – solução racional politicamente democrática.
Haddad e a ineficiência administrativa
Fernando Haddad publicou dois tweets relacionados à reunião ministerial, com os seguintes conteúdos:
Tweet 1: “Se a preocupação do presidente fosse com a segurança da família, ele não se referiria a “F**** AMIGO MEU”. Não há dúvida. PF não faz segurança de amigo. Nem vou falar do nível do governo. Sem condições!!
Tweet 2: “Tem que vender essa porra (Banco do Brasil) logo” (Guedes).
“Aproveitar a pandemia para ir passando a boiada (destruição da Amazônia)” (Salles)
“Eu, por mim, botava esses vagabundos todos na cadeia. Começando no STF” (Weintraub)
Baita equipe!!”
A relação entre o discurso direto de Haddad e seu discurso indireto que apresenta as falas dos ministros leva a dois caminhos diferentes, guiados pela memória discursiva da oposição entre o governo democrático liberal e sua luta com os regimes autoritários. Primeiramente, o caminho da eficiência administrativa:
- “Nem vou falar do nível do governo. Sem condições!!”;
- “Baita equipe!!” (ironia após a citação de falas dos ministros, sem mais explicações. Momento que a memória é ativada para cobrir de significados os sintagmas ditos).
Sendo possível compreender esta série enunciativa irônica através do esquema: expectativa administrativa – realidade administrativa abaixo da expectativa.
Para além disso, ainda há o questionamento da própria função dos aparelhos estatais: “Não há dúvida. PF não faz segurança de amigo”. Ao relacionar este segmento com o restante do enunciado de Haddad, é possível ter dois caminhos interpretativos para o discurso produzido: incapacidade cognitiva em entender a função do aparelho estatal e/ou instrumentalização do aparelho estatal para fins pessoais, o que reitera a falta de entendimento da função do aparelho estatal, mas também caminha para a inadequação política do governo Bolsonaro em lidar com um aparelho de Estado democrático liberal.
Sendo assim, temos o seguinte esquema semântico: incapacidade democrático-liberal – incapacidade administrativa.
Então, a série de justaposições se delineia de tal forma que:
- Incapacidade democrático-liberal – incapacidade administrativa;
- Expectativa administrativa – realidade administrativa abaixo da expectativa – incapacidade administrativa.
Tanto incapacidade democrático-liberal e expectativa administrativa – realidade administrativa abaixo da expectativa fazem parte de uma mesma justaposição vertical. São mutuamente dependentes.
Marina Silva e a estética do óbvio
No momento da publicização da reunião ministerial, Marina Silva elaborou um texto em seu perfil no Facebook com o seguinte conteúdo:
“O vídeo da reunião ministerial é um show de horrores.
São demonstrações assombrosas de quebra de decoro, desprezo pelas instituições, infrações administrativas e inúmeros preconceitos, como os insultos proferidos contra os povos indígenas.
O ministro Weintraub, da “educação”, além de proferir xingamentos, falou pra botar os ministros do STF na cadeia.
A ministra Damares, de “direitos humanos”, pediu a prisão de governadores e prefeitos.
O ministro Ricardo Salles, do “meio ambiente”, confessou seu plano criminoso de desmonte ambiental. Disse pra aproveitar o momento da pandemia para “passar a boiada” com o objetivo de destruir o meio ambiente.
O presidente deixou clara sua disposição de interferência na PF. Em outro contexto, defendeu o armamento em massa da população.
Agora o Brasil todo viu as entranhas tenebrosas que estão no comando do país.
O objetivo da reunião era discutir o plano pró-Brasil, mas o conteúdo é tão baixo que a credibilidade do país foi lançada a um poço sem fundo. Não dá mais.“
O enunciado de Marina Silva tem teor de exposição descritiva. No discurso produzido, a própria exposição seria suficiente para demonstrar as supostas falhas da reunião, desta forma, os pré-construídos e a memória discursiva agiriam para trazer à superfície a relação existente entre o conteúdo da reunião e sua relação com a realidade, de maneira parecida com a fala de Haddad.
Desta forma:
- “O ministro Weintraub, da “educação”, além de proferir xingamentos, falou pra botar os ministros do STF na cadeia.
- A ministra Damares, de “direitos humanos”, pediu a prisão de governadores e prefeitos.
- O ministro Ricardo Salles, do “meio ambiente”, confessou seu plano criminoso de desmonte ambiental. Disse pra aproveitar o momento da pandemia para “passar a boiada” com o objetivo de destruir o meio ambiente.O presidente deixou clara sua disposição de interferência na PF. Em outro contexto, defendeu o armamento em massa da população”.
Sozinhos, sem nenhuma explicação, de forma parecida com o que acontece com o discurso indireto de Haddad, os enunciados já se significam. Tudo se passa como se fosse evidente o que cada frase deve comunicar. Assim, os pré-construídos trabalham de tal maneira que as frases poderiam ser completadas:
- “Falou pra botar os ministros do STF na cadeia”, mas não deveria.
- “Pediu a prisão de governadores e prefeitos”, mas não deveria.
- “Deixou clara sua disposição de interferência na PF”, mas não deveria intervir.
- “Confessou seu plano criminoso de desmonte ambiental […] aproveitar o momento da pandemia para “passar a boiada” com o objetivo de destruir o meio ambiente”: neste enunciado, há marcadores que qualificam o dito (como “criminoso” e “destruir o meio ambiente“) e, retrospectivamente, ativam o caminho significativo dos enunciados sem os mesmos marcadores. Na prática, ativam o pré-construído e contribuem para a reconstrução da memória discursiva para uma possível interpretação das frases.
O seguinte esquema semântico poderia ser elaborado: disse que sim – deve ser não.
Também há o escopo de segmentos de cunho estético e moral:
- “…Show de horrores…“;
- “…Quebra de decoro…”;
- “…Insultos proferidos…“;
- “Brasil todo viu as entranhas tenebrosas…”;
- “…Mas o conteúdo é tão baixo que a credibilidade do país…”.
No fim, pode-se compreender que o esquema de significação passa pelo estético-moral e atravessa o erro como descrição do fato: diz que sim – deve ser não (atravessados pela desaprovação estética e moral).
Considerações finais
Através da análise dos enunciados no dia da publicização da reunião ministerial, é possível chegar até os esquemas de significação praticados pelos discursos de Ciro Gomes, Fernando Haddad e Marina Silva, assim, delineando algumas características das formações discursivas que os interpelam. Pois então, ficam as justaposições dos esquemas de cada candidato:
Para Ciro Gomes:
- Local de sanidade – prática insana;
- Indignação – transformação – crime;
- Razão instrumental – solução racional politicamente democrática.
A reunião ministerial mostra como um local de racionalidade política é defenestrado pela insanidade da equipe de Bolsonaro, que macula a política brasileira. Desta forma, para retirá-lo da política brasileira, é necessário utilizar os mecanismos da nossa democracia liberal vigente, terminando por dar a vitória à razão e à forma de governo que a razão legitima. O discurso é baseado na oposição entre razão e desrazão, entre iluminismo e trevas.
Para Fernando Haddad:
- Incapacidade democrático-liberal – incapacidade administrativa;
- Expectativa administrativa – realidade administrativa abaixo da expectativa – incapacidade administrativa.
No discurso de Haddad, o que opera sua fala é a noção de que a incapacidade administrativa de Bolsonaro está ligada a uma incapacidade democrática. A incapacidade administrativa é resultado da própria incapacidade de se adequar aos mecanismos democráticos. Desta forma, o discurso é constituído pelo signo da ineficiência com peso maior que a indicação da incapacidade democrática. Apontar o erro administrativo prático é mais relevante que a inadequação à política democrático-liberal.
Para Marina Silva:
- Diz que sim – deve ser não (atravessados pela desaprovação estética e moral).
Desta forma, a reunião ministerial mostraria como o governo Bolsonaro seria a negação do certo. Mostraria como a forma seria já uma denúncia de seu conteúdo. O discurso de Marina Silva é atravessado por uma crítica moral e estética mais forte que a crítica política, deixada para que o leitor complete as ausências com os pré-construídos, assim, retirando a necessidade de, de fato, construir sentenças críticas de cunho propriamente político.
Referências
[1] PÊCHEUX, Michel. As Massas Populares são um Objeto Inanimado?. Trad. Suzy Lagazzi. In: ORLANDI, Eni. (org.) Análise de Discurso – Michel Pêcheux. Campinas: Pontes, p.251-273, 2011.
[2] PÊCHEUX, Michel. As Massas Populares são um Objeto Inanimado?… p.255. Negritos nossos.
[3] PÊCHEUX, Michel. As Massas Populares são um Objeto Inanimado?… p.273.
[4] HAROCHE, C. PÊCHEUX, M. HENRY, P. A Semântica e o Corte Saussuriano: Língua, Linguagem, Discurso. Linguasagem – Revista Eletrônica de Popularização Científica em Ciências da Linguagem. Acessado em 2 de abril de 2017. Disponível em <<https://tinyurl.com/y9jbvcvv>>.
[5] PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Traduzido por Eni Pulcinelli Orlandi, Lorenço Chacon J. filho, Manoel Luiz Gonçalves Corrêa e Silvana M. Serrani, 2ª ed., Campinas: Editora da Unicamp, 1995, p. 146.
[6] PÊCHEUX, Michel. Ler o arquivo hoje IN ORLANDI, Eni (Org.). Gestos de Leitura: da história no discurso. 4ª edição, Campinas: Editora da Unicamp, 2014, p. 58.
[7] PÊCHEUX, Michel. Ler o arquivo hoje… p. 59.
[8] Ciro chama reunião de ‘alucinação coletiva’ e pede impeachment de Bolsonaro. UOL, 22 mai 2020. Acesso em 06 set 2020. Disponível em <<https://tinyurl.com/y63zuy7f>>.
[9] Haddad vê deslize em frase de Bolsonaro: ‘PF não faz segurança de amigo’. UOL, 22 mai 2020. Acesso em 06 set 2020. Disponível em <<https://tinyurl.com/y3uwu6et>>.
[10] SILVA, Marina. Postagem de Facebook. 22 mai 2020. Acesso em 06 set 2020. Disponível em <<https://tinyurl.com/y5mzqq78>>.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.
Eu não li o texto porque hoje eu sai atrás do meu passe gratuito e cansei demais porque os ônibus demoraram muito. Estou muito cansada mas o texto parece interessante.
Obrigado pelo comentário, Aida! Depois, deixe suas impressões 🙂