Índice
Introdução
A fabricação de um sujeito se dá através das inúmeras relações de poder e discursivas em que é inserido e que, em última instância, lhe delimitarão na realidade social. Essa delimitação é, ao mesmo tempo, sua prisão e sua possibilidade de liberdade. Seu “não” e seu “sim”.
Com base em Michel Foucault, Sueli Carneiro realiza uma análise da fabricação do corpo negro no período pós-abolição no Brasil. Ela percorre pelos estudos sobre o biopoder e sobre o poder disciplinar para entender o jogo de inclusão e exclusão do homem negro na formação social brasileira.
Tomarei como base sua tese de doutorado A construção do outro como não-ser como fundamento do ser defendida em 2005.
Disciplina e biopoder
Para Michel Foucault, a sociedade disciplinar emerge no século XVIII a partir de uma necessidade de maximizar a utilidade dos corpos em um momento de crescimento fabril e formação de Estados-nação modernos. A delimitação territorial do Estado-nação foi consolidada no mesmo contexto de uma nova revolução: a riqueza de uma nação não era mais relacionado à quantidade de terras que se podia conquistar, mas era medida pela produção de mercadorias que a nação tinha condições de fabricar e do montante de capital que cada país poderia acumular e transformar em mais capital. Um corpo adequado numa sociedade disciplinar é um corpo disciplinado. Como resposta ao indisciplnamento, a prisão emerge como local de cárcere e reforma.
O poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função “adestrar”; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor. Ele não amarra as forças para reduzi-las; procura ligá-las para multiplicá-las e utilizá-las num todo […] A disciplina “fabrica” indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício (FOUCAULT, 1999a, p. 143).
No fim do século XVIII e início do século XIX, também há aemergência de uma nova forma de governo, de uma nova forma de administração política de nível nacional chamada biopoder. Nesta estratégia de poder, o corpo tende a ser visto também em sua forma biológica, enquanto espécie. O objetivo do biopoder é estabelecer controles populacionais utilizando a biologia e a estatística como alicerces à política. Ela é o
conjunto dos mecanismos pelos quais aquilo que, na espécie humana, constitui suas características biológicas fundamentais vai poder entrar numa política, numa estratégia política numa estratégia geral de poder. Em outras palavras, como a sociedade, as sociedades ocidentais modernas, a partir do século XVIII, voltaram a levar em conta o fato biológico fundamental de que o ser humano constitui uma espécie humana (FOUCAULT, 1999b, p. 3).
A introdução do sujeito numa sociedade disciplinar se dá, portanto, pela sua inscrição na rede de relações de poder e de saberes que atuam a partir desta estratégia. A condição para ser inserido está diretamente relacionada à possibilidade de reproduzir a conduta disciplinada, docilizada.
É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado. Os famosos autômatos, por seu lado, não eram apenas uma maneira de ilustrar o organismo; eram também bonecos políticos, modelos reduzidos de poder: obsessão de Frederico II, rei minucioso das pequenas máquinas, dos regimentos bem treinados e dos longos exercícios. (FOUCAULT, 1999a, p. 118).
Ao mesmo tempo, numa sociedade que também está sendo governada pelo biopoder, a inscrição do sujeito se dá pela sua posição em relação ao normal estabelecido.
É necessário compreender que o biopoder atua em conjunto com o poder disciplinar. Enquanto o primeiro é relativo ao governo da população, à atuação política em nível nacional, à análise estatística da população para que ela seja melhor conduzida; a segunda diz respeito a um microgerenciamento, a um olhar específico ao corpo individual, a um conjunto de práticas que individualizam o sujeito em seu corpo. A falta de adequação vista pelas práticas biopolíticas nas estatísticas (como o aumento da criminalidade) é corrigido pelas práticas disciplinares (como o encarceramento).
Entende-se, então, que estas duas estratégias de poder são condições da inserção do sujeito na vida em sociedade. A anormalidade identificada a partir das técnicas do biopoder e a ausência da docilização promovida pelas técnicas disciplinares fabricam o sujeito excluído da vida social, o delinquente perfeito, a razão de ser do policiamente ostensivo das sociedades modernas.
O homem negro pós-abolição
Ao ser excluída da esfera do trabalho por meio da introdução de mão de obra imigrante aos trabalhos especializados e campesinos, a população negra pós-abolição também foi excluída dos processos disciplinares constituinte desta esfera, o que a inseriu num campo negativo de sociabilidade. Em vez de “ser”, a população negra era um “não ser” num sentido sociológico, ou seja, em vez de comportar um status de sujeito de direito, a população negra tinha o status de sujeito alvo do direito. Uma população excluída no interior de uma sociedade suportada por um Estado de direito.
Portanto, estando o negro deslocado da esfera do trabalho no pós-abolição, ele estará alijado das técnicas disciplinares do trabalho. No entanto a sua existência social irá estar subordinada a essa nova tecnologia de poder. As técnicas disciplinares visam o corpo que vai produzir, assim como no pós-abolição o alvo dessas técnicas serão os trabalhadores imigrantes que substituem os ex-escravos na nova ordem econômica. (CARNEIRO, 2005, p.90)
O resultado disso é a ausência de uma transição do sujeito escravo para sujeito cidadão. A cidadania, diretamente relacionada ao trabalho e à possibilidade de compor um corpo social dócil, torna-se um objetivo impossivel e, ao mesmo tempo, uma arma de controle. Enquanto a mão de obra imigrante ocupava as vagas de trabalho assalariado, os ex-escravos, neste momento sem terras, teto, posses ou trabalho tendiam a ser enquadrados na ilicitude da vadiagem e, assim, a se manter sob o controle do Estado por meio de sua exclusão da vida social através da prisão.
A ilicitude da vadiagem previa de 2 a 6 meses de prisão com trabalhos forçados além de forçar uma promessa de não reicidência, o que frequentemente acontecia. Havia, então, uma associação entre o cumprimento da pena como punição associada a uma responsabilidade moral exprimida pela promessa. Assim, a reincidência fechava a análise sobre o corpo negro como corpo incorrigível.
O flagrante de negros em rodas de capoeira era, inclusive, enquadrado como ato de vadiagem. Sendo assim, a tentativa de constrir uma vida social por ex-escravos era criminalizada quando exibida em espaços públicos e, por sua vez, a “racialidade negra [era produzida] como o meio delinquente por excelência” (CARNEIRO, 2005, p.87).
Os mecanismos de controle social dessa massa para a qual não há projeto de inclusão irão se inscrever no âmbito das tecnologias oriundas do biopoder por meio das quais o Estado exercitará o seu direito de matar ou de “deixar morrer” (CARNEIRO, 2005, p.90).
Carneiro toma como base o estudo A Cor da Morte (BATISTA; ESCUDER; PEREIRA, 2004), composto por uma análise estatística e criminológica sobre vítimas de homicídio no Brasil. Tal estudo aponta para a marcação do corpo negro como signo da morte. O biopoder, em sua face de racismo de Estado, tem, então, seu alvo privilegiado produzido: “é o corpo do homem negro em que a violência se torna grandemente no solo constitutivo da produção do gênero masculino negro”(CARNEIRO, 2005, p.91).
Se a estratégia do biopoder faz viver uma população normalizada e deixa morrer uma população indesejável, “O ‘deixar morrer’ configura-se, nesse caso, no abandono a que estão relegados os jovens negros à guerra do tráfico de drogas, no qual eles comparecem como soldados destinados a morrer e matar” (CARNEIRO, 2005, p.91).
Com base no Mapa da Violência 4, Sueli Carneiro (2005) expõe que o Brasil se situa como quarto país com mais morte entre jovens de 15 a 24 anos. Quando os dados são separados por cor, a juventude negra tem 74% mais mortes violentas que a juventude branca.
Sendo assim, é possível estabelecer uma relação entre a escravização, o momento pós-abolição de exclusão social de ex-escravizados que nem sequer entraram no fluxo de disciplinarização para entrada no mercado de trabalho e o presente de morte estatisticamente superior de pessoas negras comparadas com pessoas brancas.
Considerações finais
O esforço de modernização pós-abolição abriu espaço para a emergência das técnicas de controle e aperfeiçoamento do corpo do ponto de vista da produção, entretanto, ao mesmo tempo, tornou este próprio aperfeiçoamento sob o signo da docilidade uma condição de participação da própria sociedade moderna em formação. Os corpos brancos, destinados ao trabalho livre, foram docilizados e introduzidos nesta nova sociedade, mas somente os corpos negros que escapavam do biopoder e que, mais tarde, quando confundidos com negros delinquentes, eram considerados “negros errados” (CARNEIRO, 2005, p. 92), na medida em que alcançavam uma posição social não esperada, eram alcançados pela possibilidade do trabalho livre.
Extermínios, homicídios, assassinatos físicos ou morais, pobreza e miséria crônicas, ausência de políticas de inclusão social, tratamento negativamente diferenciado no acesso à saúde, inscrevem a negritude no signo da morte no Brasil (CARNEIRO, 2005, p. 94).
E, assim, a autora termina por dizer que, neste sentido e no contexto atual, a resistência negra tem como objetivo adentrar na sociedade disciplinar, ou seja, se submeter aos mecanismos de controle e docilidade para, enfim, ter uma existência respeitada enquanto corpo legítimo do sistema capitalista de produção baseada em lucro (o que descendentes de imigrantes europeus e orientais já conseguiram) enquanto, ao mesmo tempo, busca a oportunidade de adquirir, finalmente, o direito à vida.
Referências
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão. 20ª ed. São Paulo: Vozes, 1999a.
FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 1999b.
CARNEIRO, A. S. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Programa de pós-graduação em Educação da Universidade de São Paulo – USP. Tese de Doutorado, 2005.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.