O louco astrólogo – Michel Foucault

A magia não era mais inscrita no conjunto de técnicas e artes que obtêm sucesso na realidade concreta, no entanto, o século XVII ainda não havia a solidificado como compensação imaginária do fracasso em sua apreensão individual. Se a psiquiatria transformou estes signos mágicos e profanadores em inequívoco sinal de doença, por quase dois séculos ao longo de toda Idade Clássica, ainda transitavam em duas possibilidades: da impiedade e da extravagância, entre o profano e o patológico, justamente na posição de desatino.

Da série “Os loucos de Foucault“.

Índice

Introdução

Após endurecimento na legislação para o suicídio e sua ligação com o funcionamento da loucura que recolocou o corpo num campo de normatização não só sagrado, mas também racional: num campo da razão, numa delimitação baseada na razão que emergia enquanto elemento fundamental do sujeito em vias de nascimento na Idade Clássica, diversas outras condutas inadequadas transformaram-se em sinais de uma loucura que urgia por internação.

Michel Foucault inicia sua descrição acerca da formação de um cerco sobre adivinhos e astrólogos – membros do conjunto que chamarei doravante como “feitiçeiros” ou me referirei como “magia” – a partir da ordenança de 1628 na França, em que a aplicação de multa e punição corporal eram previstas, e do édito de 1682, que prescreve expulsão do praticante do país, além de pena de morte àqueles que misturassem “à superstição a impiedade e o sacrilégio”[1].

Se a pena para feitiçaria do século XVII se mostra rigorosa, Foucault relembra que, na prática, são raros os casos de condenação e aplicação da pena. O destino daqueles que praticavam feitiçaria, adivinhação, astrologia, manipulação de venenos e poções não era o da punição imediata, mas sim o das casas de internamento. O objetivo deste artigo é expor as ligações entre a loucura e a feitiçaria conforme entendido por Foucault em História da Loucura na Idade Clássica.


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Não mais profana, ilusória

O perigo da feitiçaria não estaria em seu potencial profano, não estaria na crueza do desrespeito aos símbolos do sagrado ou à própria vida santa, não se trataria de uma feitiçaria que, dentro do campo da religião, teria relações com o sagrado invertendo os polos e o tornando profano. A Idade Clássica, da mesma maneira que reconfigurou o entendimento sobre o suicídio, também relocalizou a prática da feitiçaria.

Se o suicídio, como profanação do corpo, deixou de ser entendido como crime para ser percebido como loucura, deixou de receber punições exemplares para demandar internação, a feitiçaria também se afastou da temática criminosa ou sacrílega para adentrar na seara da loucura.

O deslocamento pode ser visto no édito de 1682, utilizado como fonte pelo jurista Nicolas Delamare[2]:

Com o pretexto dos horóscopos e de adivinhações e através de operações pretensamente mágicas, e outras ilusões das quais essas pessoa costumam servir-se, teriam surpreendido diversas pessoas ignorantes ou crédulas que insensivelmente se tinham comprometido com eles […] [Aqueles que] sob a vã profissão de adivinhos, mágicos, feiticeiros ou outros nomes semelhantes, condenados pelas leis humanas e divinas, corrompem e infeccionam o espírito das pessoas com seus discursos e práticas e com a profanação daquilo que a religião tem de mais sagrado.

A feitiçaria já não tem sua força no campo do sagrado. Ela é ilusória. A feitiçaria passa a ser ilusão e, assim, localiza-se no campo da razão. Não tem poder de realidade, não é real, mas pode cegar aqueles que não têm espírito reto. Ela denuncia os elementos que possibilitam que a ilusão se realize: o malandro e o ingênuo.

A prática da magia pode até ser meio para um crime, mas não é crime em si. Nem mesmo é uma ação sacrílega:

Despida de seus poderes sacros, ostenta apenas intenções maléficas: uma ilusão do espírito a serviço das desordens do coração. Não é mais julgada conforme seu prestígio de profanadora, mas segundo aquilo que ela provoca como insanidade.[3]

A eficácia simbólica da feitiçaria ou da adivinhação, aos poucos, se limitou à ilusão. Esta ilusão, por sua vez, revela uma fraqueza na vontade:

Todos esses velhos ritos da magia, da profanação, da blasfêmia, todas essas palavras, doravante ineficazes, deslizam de um domínio da eficácia onde tinham sentido para um domínio da ilusão onde se tornam sem sentido e condenáveis ao mesmo tempo: o da insanidade.[4]

Na prática, a profanação deixa de gerar efeitos verdadeiros na realidade, deixa de ter sua eficácia comprovada na prática, deixa de funcionar no corpo. Pelo contrário, sua eficácia estará na formação discursiva da loucura, pois será vista como sinal de insanidade, desta forma, de um tipo específico de desarranjo relacionado à razão, não mais ao sagrado.

Não há mais escapatória para a feitiçaria, não há mais um caminho de eficácia que a colocaria como parte do mundo real. Seus efeitos não são relativos ao trabalho profanador, mas ao trabalhador profanador. “Dia virá em que a profanação e toda sua gestualidade trágica terá apenas o sentido patológico da obsessão”[5].

O erro

A eficácia própria da profanação, da feitiçaria, foi colocada em xeque durante a Idade Clássica e, aos poucos, ela deixou de pertencer ao conjunto de práticas de sucesso na realidade concreta. Deixou de fazer parte da concretude do mundo da maneira como ela própria se entendia, da maneira como a própria profanação funcionava em relação aos seus objetivos (em relação ao crime sacrílego ou em relação à eficiência prática do feitiço, das poções). Sua expressão concreta passou a ser a do erro, como denúncia do profanador errático, “através da transição de uma época que neutralizou sua eficácia culpabilizando sua crença”[6].

Foucault esclarece sob quais termos a culpabilização se fez real: “A transformação dos interditos em neuroses passa por uma etapa em que a interiorização se faz sob as espécies de uma citação moral: condenação ética do erro”[7]. Uma recusa ética fundamental.

Considerações finais

A magia não era mais inscrita no conjunto de técnicas e artes que obtêm sucesso na realidade concreta, no entanto, o século XVII ainda não havia a solidificado como compensação imaginária do fracasso em sua apreensão individual: a profanação não era crível institucionalmente mas, ao mesmo tempo, circulava como técnica possível e poderia facilmente ser percebida ainda como técnica de sucesso por uma consciência individual. A realidade concreta desta percepção que demorou para morrer e ser substituída pela racional era vista nas casas de internamento que, durante todo o século, passou a registrar entradas regulares de profanadores (em oposição às execuções de penas judiciárias, repito, quase não acionadas).

O erro da magia se encontra, então, ainda no meio do caminho:

Situa-se exatamente no ponto onde o erro articula-se sobre a falta, nessa região (para nós difícil de apreender) da insanidade, mas a respeito da qual o Classicismo havia formado uma sensibilidade suficientemente fina para ser inventado um modo de relação original: o internamento.[8]

Se a psiquiatria transformou estes signos mágicos e profanadores em inequívoco sinal de doença, por quase dois séculos ao longo de toda Idade Clássica, ainda transitavam em duas possibilidades: da impiedade e da extravagância, entre o profano e o patológico, justamente na posição de desatino.

Referências

[1] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 9ª edição, 2012, p. 96.

[2] DELAMARE, Nicolas. Traité de la police IN FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 9ª edição, 2012, p. 96.

[3] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 97.

[4] Idem.

[5] Idem.

[6] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 97-98.

[7] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 98.

[8] Idem.

Cite este artigo:

SIQUEIRA, Vinicius. O louco astrólogo – Michel Foucault. Colunas Tortas. Acesso em [DD Mês AAAA]. Disponível em <<https://colunastortas.com.br/o-louco-astrologo-michel-foucault/>>.

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