Da série “A disciplina em Foucault“.
Índice
Introdução
O princípio da localização imediata surge no livro Vigiar e punir: o nascimento da prisão, de Michel Foucault, como elemento para descrever as práticas de poder sobre o espaço disciplinar. Trata-se de uma técnica de prática do poder, de uma técnica específica observada na arte da distribuição de espaços e indivíduos desenvolvida pelo poder disciplinar desde o século XVIII e é chamada de quadriculamento (como continuarei a chamar daqui em diante).
Quadriculamento na medida em que se desenvolve uma técnica de separação e organização dos corpos que os coloca num mapa previsível, pronto para ser administrado por qualquer sujeito inserido neste contexto de prática disciplinar. Quadriculamento na medida em que os corpos são inseridos num espaço vigiado só seu mas também por se quadricular o espaço total vigiado para que cada separação menor tenha uma latitude e uma longitude. O livro de Foucault acima citado será utilizado como base para este texto.
A individualização
O quadriculamento é resumido por Michel Foucault como: “Cada indivíduo no seu lugar; e em cada lugar, um indivíduo”[1]. Ou seja, o quadriculamento pensado enquanto esquema de distribuição e vigilância de corpos em arquiteturas físicas. Coloca-se um indivíduo em um lugar, seu lugar e nada mais. As relações entre os indivíduos são cortadas pelos muros que separam cada espaço quadriculado, cada espaço demarcado e separado para uma vigilância individualizada.
É necessário “evitar as distribuições por grupos; decompor as implantações coletivas; analisar as pluralidades confusas, maciças ou fugidias”[2]. Separar cada possível grupo, cada possível coletividade. A coletividade é um conceito que, a partir da técnica de quadriculamento, funciona como uma ausência: é a ausência da coletividade entre os vigiados que vaticina a eficiência do poder individualizador.
Ferrari e Dinali acentuam que “o quadriculamento é um tipo de técnica disciplinar que permite estabelecer presenças, ausências, saber onde localizar os indivíduos, promover as comunicações úteis e interromper as perigosas”[3]. Há um sentido de corte também presente no quadriculamento: para além da ausência, a individualização também promove uma quebra de comunicação. O quadriculamento também interrompe circuitos de comunicação e impossibilita, a partir do nível da comunicação, a formação de uma coletividade.
Ambos os autores também utilizaram o Colégio de Aplicação João XXIII da Universidade Federal de Juiz de Fora como campo para observar esse tipo de quadriculamento em prática:
o Regimento Interno do C.A. João XXIII é emblemático porque nele está presente um conjunto de regras que regulamentam a estrutura de seu funcionamento. Encontramos artigos destacando, detalhadamente, sobre a constituição, a função, a hierarquia, os direitos e os deveres de cada um dentro da instituição.[4]
Localizando, portanto, cada indivíduo dentro da estrutura do próprio colégio e, a partir disso, delimitando suas possibilidade de atuação, de comunicação, de interação.
Dessa forma, está definida determinada organização, por exemplo, para o diretor, para os alunos, os professores, os coordenadores, os técnicos, os pais e os estagiários no interior do Colégio. Uma série de regulamentações que dão funções para o corpo escolar, que estabelecem lugares, enfim, que enquadram.[5]
Cada regulamentação concede ao sujeito delimitado uma série de deveres e o coloca em relação com outros sujeitos também delimitados por suas funções. Segundo Valle: “No espaço escolar, por exemplo, há salas determinadas para cada tipo de atividade, uma ficha de matrícula com todos os detalhes do aluno frequentador daquele espaço”[6], assim, para cada atividade há também uma sala específica que permite o controle dos responsáveis pelo bom andamento do dia a dia na escola. Espaço físico e especificidade do aluno: dois elementos que são observados e trabalhados para permitir melhor controle e ação sobre cada elemento, humano ou não, que possa fazer parte da administração escolar.
Evidentemente, essas funções são delimitadas por padrão numa organização moderna e é justamente este o ponto foucaultiano: a técnica de poder não é um objeto para se gerar valores sobre o que ela é, mas é um objeto para se entender como a vida acontece e funciona. O olhar da analítica do poder, de certa forma, pode ser entendido como um olhar que não avalia, mas que torna visível em sua dinâmica o que parece ser espontâneo, bem intencionado e inofensivo.
Produção de conhecimento
O quadriculamento também permite certa produção de conhecimento acerca dos vigiados. É preciso “poder a cada instante vigiar o comportamento de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades ou os méritos. Procedimento, portanto, para conhecer, dominar e utilizar”[7]. A apreciação do comportamento compreende a observação gratuita, interessada mas não necessariamente focada em um objeto específico: observação geral que permite a produção de conhecimento, a criação de conceitos, a observação de dinâmicas, a descoberta de pontos-cegos dos sistemas de controle e sua posterior correção, enfim, a apreciação é um método de produção de conhecimento a partir da observação exaustiva dos vigiados, ou seja, produção de conhecimento que favorece o bom desempenho da organização em que a disciplina opera.
Desta forma, Lacerda e Rocha comentam que “evitando os grupos, evitar-se-iam também as insurreições. Essa antiaglomeração tem como alvo a pluralidade, potencializando a vigilância e a formação de uma rede de informações sobre cada um”[8].
A escrita disciplinar, mecanismo de produção e organização de dados no poder disciplinar, não visa simplesmente satisfazer um objetivo, mas gerar dados que sejam eficientes o bastante para permitir a observação de novos problemas, para que se possa dar conta de diferentes objetivos não necessariamente imediatos. Tal processo de escrita é favorecido por um esquema de quadriculamento. Os exemplos acima citados sobre o Colégio de Aplicação João XXIII contribuem para compreender como o quadriculamento fornece condições para que diferentes interações possam acontecer a partir dos deveres que cada função carrega na organização escolar. Junto a isso, as ferramentas de comunicação entre professores, entre professores e diretores ou coordenadores, até entre professores e pais a respeito dos alunos permite a transmissão e produção de conhecimento sobre os corpos que são vigiados no espaço escolar.
Considerações finais
Compreende-se, assim, o quadriculamento como uma técnica utilizada no interior do poder disciplinar para individualizar corpos e desagregar coletividades. Ao mesmo tempo, tem seu valor adicionado na possibilidade de introduzir vias de comunicação que sejam favoráveis a quem vigia enquanto destrói as formas de comunicação insurgentes.
Individualiza o corpo, mas também constrói um sujeito individualizado, ou seja, isolado das relações sociais que extravasam as designações formais da organização em que se está inserido. As relações humanas inseridas nesta estratégia de poder tendem a ser intermediadas, a custa de punição, pela formalidade das regulamentações institucionais.
Referências
[1] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão. 20ª ed. São Paulo: Vozes, 1999, p.123.
[2] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão… p. 124.
[3] Ferrari, A.; & Dinali, W. Herança moderna disciplinar e controle dos corpos: quando a escola se parece com uma “gaiola”. Educação Em Revista, 28(Educ. rev., 2012 28(2)), 393–422. Disponível em <<https://www.scielo.br/j/edur/a/Bb7Z48GbWzmp4GQG33xGDxx/>>. Acesso em 15 mar 2023.
[4] Ferrari, A.; & Dinali, W. Herança moderna disciplinar e controle dos corpos: quando a escola se parece com uma “gaiola”…
[5] Ferrari, A.; & Dinali, W. Herança moderna disciplinar e controle dos corpos: quando a escola se parece com uma “gaiola”…
[6] DEL VALLE, S. O conceito de poder disciplinar no pensamento de Michel Foucault. Revista SABERES, Natal RN, v. 18, n. 3, Dezembro, 2018, p. 254.
[7] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão… p. 124.
[8] LACERDA, R. C.; ROCHA, L. F. Fazer viver e deixar morrer: os mecanismos de controle do biopoder segundo Michel Foucault. Revista Kínesis, Vol. X, n° 22, Julho 2018, p. 155.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.