Curso Introdução à dialética hegeliana, ministrado por Vladimir Safatle.
Vladimir Safatle é professor do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
Safatle lançou “Dar Corpo ao Impossível”, livro sobre a dialética e as ideias do filósofo alemão Theodor Adorno, além de ser responsável pelo curso sobre a dialética hegeliana no espaço Cult.
Vladimir Safatle – A dialética é um dos termos técnicos mais antigos da filosofia, foi um dos primeiros. Indicava um processo muito vinculado ao diálogo no qual você utilizava os pressupostos do seu oponente o fazendo entrar em contradição com seus próprios pressupostos.
Por isso que depois, na idade média, a dialético se transformou em um elemento da arte da retórica. Até o século XIX, quando ela ganha uma outra configuração, ela vira uma dimensão fundamental de uma noção de filosofia ligada a uma potência de crítica e no interior dessa crítica dialética, o exercício fundamental é insistir em como contradições que aparecem na vida social quanto aparecem também na estrutura do pensamento não são indicações de impossibilidades, de pontos onde não é possível mais pensar (como normalmente se pensa, onde há uma contradição há algo em que não se pode pensar).
A dialética insistia, na verdade, que essas contradições simplesmente indicavam processos que dentro da nossa situação, tal como nós a organizamos, tal como nós a pensamento, são impensáveis, mas esse impensável não é um inexistente (por isso essa ideia de impossível, esse impossível não é o inexistente, ele é a possibilidade de algo que até agora não se configurou). A dialética tentava, a sua maneira, ser fiel a esta ideia, de que aquilo que é impossível, torna-se possível.
Mario Sergio Conti – Hegel, Adorno, como você vê isso. Você chegou ao conceito de dialética negativa, que é do adorno, o que é isso?
Vladimir Safatle – Os conceitos filosófico são conceitos em situações históricas. A dialética teve três grandes versões e cada uma dessas versões (Hegel, Marx, Adorno) diz respeito a um certo momento histórico. Ela indica coisas que podem ser feitas naquele momento histórico e como fazê-las.
A última versão, a dialética negativa, parte do seguinte pressuposto: o modo de organização da nossa situação atual, da nossa linguagem, da nossa forma de pensar, está tão bloqueado que é necessário utilizada uma força de negação para que aquilo que possa um dia ser diferente, apareça.
Há certas situações em que se você afirmar algo, você anula a sua força de existência, então você precisa retirá-la da situação, como uma estratégia de guardar um tipo de existência que agora, neste momento, não pode se configurar. As pessoas viam isso como um niilismo, mas era uma falta de compreensão de uma estratégia filosófica muito importante e muito utilizada: em certas situações não dizer algo é a única maneira de preservá-lo.
O que é dialética
A dialética é um método filosófico que busca compreender a realidade através da interação e confronto de ideias opostas, visando alcançar uma síntese ou compreensão mais profunda.
Sua origem e desenvolvimento envolvem diversos filósofos ao longo da história, cada um contribuindo com diferentes perspectivas e conceitos.
Origem e Evolução da Dialética
Etimologia: A palavra “dialética” deriva do grego, onde o prefixo “dia” indica reciprocidade ou troca. “Dialegein” significa trocar palavras ou razões, ou seja, conversar ou discutir.
Assim, “dialectike” refere-se à arte da discussão.
A dialética socrática
A dialética de Sócrates, também conhecida como método socrático, é uma técnica de investigação filosófica que busca elucidar a verdade por meio do diálogo e do questionamento sistemático. Baseada na troca de ideias entre interlocutores, a dialética socrática opera pela exposição de contradições e inconsistências no pensamento do interlocutor, com o objetivo de levá-lo a uma reflexão mais profunda e, eventualmente, à descoberta do conhecimento verdadeiro.
O método socrático geralmente inicia com Sócrates propondo uma pergunta ao seu interlocutor sobre um conceito ou ideia fundamental, como “o que é a justiça?” ou “o que é a virtude?”. Ao receber uma resposta, Sócrates não a aceita ou refuta diretamente, mas sim, faz novas perguntas que exploram as implicações e consequências lógicas dessa resposta. Esse processo de questionamento visa revelar ambiguidades, contradições ou falta de fundamentação na crença inicial do interlocutor. Através da exposição dessas falhas, Sócrates conduz seu interlocutor a um estado de aporia, uma perplexidade produtiva na qual este percebe que seu conhecimento era insuficiente ou equivocado.
A ironia socrática é uma característica central desse método. Sócrates frequentemente se apresentava como ignorante ou incapaz de compreender o tema em discussão, incentivando seu interlocutor a expor suas ideias mais livremente. No entanto, ao dirigir o diálogo de maneira sutil, Sócrates gradualmente revelava as falhas na argumentação do interlocutor, conduzindo-o a reconsiderar suas posições.
O objetivo final do método socrático é a maiêutica, termo que remete ao ato de “partejar”. Assim como uma parteira assiste no nascimento de uma criança, Sócrates acreditava que poderia auxiliar no “nascimento” do conhecimento verdadeiro dentro de seus interlocutores. Portanto, a dialética socrática não se propõe apenas a refutar ou destruir opiniões alheias, mas a guiar o interlocutor a uma compreensão mais clara e fundamentada da verdade.
A dialética de Sócrates é fundamental não apenas para a tradição filosófica ocidental, mas também para a prática educativa. Seu método promove o pensamento crítico, a auto-reflexão e a descoberta autônoma do conhecimento. Através da dialética, Sócrates encorajava seus interlocutores a questionarem suas próprias suposições e a desenvolverem um entendimento mais profundo e rigoroso das questões filosóficas. Em síntese, a dialética socrática é um método de investigação que, por meio do diálogo e do questionamento rigoroso, visa expor as limitações do conhecimento superficial e conduzir os interlocutores a uma compreensão mais autêntica e fundamentada.
A dialética de Heráclito
A dialética de Heráclito é uma abordagem filosófica que se baseia na ideia de que a realidade é constituída por contradições e está em constante mudança. Heráclito, um dos pré-socráticos mais importantes, acreditava que o mundo não é fixo, mas sim um processo contínuo de transformação. Sua dialética enfatiza o movimento e o conflito como elementos fundamentais da existência.
Heráclito argumentava que tudo no universo está em fluxo constante, resumido em sua famosa frase: “Não se pode entrar duas vezes no mesmo rio.” Isso significa que o rio, assim como qualquer outra coisa, está sempre mudando – as águas fluem, e a cada momento, o rio já não é mais o mesmo. Para Heráclito, essa constante mudança não é apenas uma característica acidental da realidade, mas sim sua essência fundamental.
A dialética de Heráclito também se fundamenta na ideia de que os opostos são interdependentes e, ao mesmo tempo, necessários para a existência um do outro. Ele defendia que a harmonia do mundo surge da tensão entre contrários, como o dia e a noite, a vida e a morte, ou o quente e o frio. Esses opostos não são vistos como forças separadas e antagônicas, mas como aspectos complementares de uma mesma realidade. A luta entre eles é o que gera o movimento e a mudança, que são os traços essenciais do universo.
Além disso, Heráclito é frequentemente associado ao conceito de “unidade dos opostos”, onde ele afirma que algo pode ser, ao mesmo tempo, igual e diferente de si mesmo. Por exemplo, o fogo, que é um dos elementos centrais em sua filosofia, pode tanto destruir quanto transformar, sendo simultaneamente criador e destruidor.
Dessa forma, a dialética de Heráclito não busca a estabilidade ou a permanência, mas sim a compreensão de que a realidade é um processo dinâmico de transformação contínua. Essa visão dialética da realidade influenciou profundamente o pensamento filosófico posterior, especialmente a tradição dialética desenvolvida por Hegel, que também enfatiza a importância do conflito e da contradição como motores do desenvolvimento e da mudança.
A dialética de Parmênides
A dialética de Parmênides se contrapõe diretamente à de Heráclito, defendendo uma visão radicalmente diferente da realidade. Enquanto Heráclito via o mundo como um processo contínuo de transformação, Parmênides argumentava que a verdadeira realidade é imutável, eterna e una. Sua filosofia é baseada no princípio de que o ser é, e o não-ser não é, o que implica que a mudança e a multiplicidade são ilusórias.
Parmênides afirmava que o ser é uno, imutável e indivisível. Ele sustentava que, se algo existe (o ser), então deve existir plenamente, sem mudança ou movimento, pois qualquer mudança implicaria em transitar de ser para não-ser, algo que ele considerava logicamente impossível. Para Parmênides, a ideia de que algo “deixa de ser” ou “passa a ser” é incoerente, pois o não-ser não tem existência e, portanto, não pode ser objeto de pensamento ou percepção.
A dialética de Parmênides utiliza a razão e a lógica para refutar a validade das percepções sensoriais, que sugerem que o mundo está em constante mudança e multiplicidade. Ele acreditava que as percepções dos sentidos são enganosas e que apenas o pensamento racional pode apreender a verdade do ser como uma realidade imutável e eterna.
Parmênides também introduziu o princípio de identidade, que se expressa na famosa fórmula “A é A”, ou seja, uma coisa é igual a si mesma e não pode ser diferente de si própria ao mesmo tempo e no mesmo sentido. Esse princípio rejeita a ideia de contradição e mutação, central na dialética de Heráclito, ao afirmar que o ser é constante e inalterável.
Na visão de Parmênides, o que parece ser uma multiplicidade de seres é, na verdade, uma ilusão criada pelas percepções sensoriais. Ele via a realidade como um todo único, indivisível e estático, onde não há espaço para o movimento ou a mudança. Essa filosofia tem um caráter profundamente racionalista, pois propõe que a verdadeira natureza do ser só pode ser compreendida através do uso rigoroso da lógica, ignorando as aparências e confiando inteiramente na razão.
Em resumo, a dialética de Parmênides é uma filosofia que defende a imutabilidade e a unidade do ser, contrapondo-se à ideia de mudança e multiplicidade. Para Parmênides, a realidade é uma entidade única, eterna e inalterável, e as percepções de mudança são meras ilusões dos sentidos, que devem ser superadas pelo pensamento racional.
A dialética de Platão
A dialética de Platão é um dos aspectos centrais de sua filosofia e desempenha um papel fundamental em sua teoria do conhecimento e da realidade. Para Platão, a dialética é um método de investigação filosófica que visa alcançar a compreensão das Formas ou Ideias, que são as essências eternas e imutáveis das coisas.
Platão via a dialética como o meio pelo qual a mente ascende do mundo das aparências sensíveis ao mundo das Formas, que ele considerava a verdadeira realidade. Segundo Platão, o mundo sensível, aquele que percebemos com nossos sentidos, é apenas uma cópia imperfeita e mutável do mundo das Formas, que é eterno e perfeito. A dialética, portanto, é o processo de mover-se da opinião (doxa) sobre o mundo sensível para o conhecimento verdadeiro (episteme) das Formas.
Esse processo dialético é ilustrado na famosa Alegoria da Caverna, onde Platão descreve prisioneiros que vivem acorrentados em uma caverna, vendo apenas sombras projetadas na parede, que eles acreditam ser a realidade. A libertação de um prisioneiro, que ascende à luz do sol e percebe o mundo real fora da caverna, simboliza a ascensão dialética da alma desde o mundo das sombras (o mundo sensível) até o conhecimento das Formas.
Platão utilizava a dialética em seus diálogos como um método de investigação filosófica, que envolvia a exposição de contradições e a superação de crenças errôneas para atingir um conhecimento mais profundo. Através do diálogo, os interlocutores, guiados por Sócrates (um personagem central nos diálogos de Platão), exploravam definições e conceitos, questionando e refutando opiniões superficiais até que se aproximassem da verdade.
A dialética platônica também tem uma estrutura triádica, que pode ser descrita em termos de tese, antítese e síntese. A tese representa uma afirmação inicial sobre um conceito; a antítese surge quando essa afirmação é questionada ou refutada, expondo suas limitações; a síntese é a resolução dessas contradições, levando a uma compreensão mais elevada e mais próxima da verdade.
No contexto da “República”, Platão descreve a dialética como o ponto culminante da educação filosófica, um método que permite ao filósofo ascender do conhecimento das coisas individuais para o conhecimento da Forma do Bem, que é a causa última de toda realidade e conhecimento.
Para Platão, a dialética é, portanto, não apenas um método de argumentação ou refutação, mas um caminho para a ascensão espiritual e intelectual da alma. É através da dialética que o filósofo pode escapar das ilusões do mundo sensível e alcançar o conhecimento verdadeiro das Formas, especialmente da Forma do Bem, que ilumina todas as outras Formas e dá sentido ao mundo.
A dialética de Hegel
A dialética de Hegel é uma das abordagens filosóficas mais influentes e complexas da história, conhecida por seu caráter dinâmico e triádico, envolvendo os conceitos de tese, antítese e síntese. Hegel concebe a dialética como o processo fundamental através do qual o espírito (ou a consciência) e a realidade se desenvolvem, por meio de uma sucessão de contradições e resoluções.
Na filosofia hegeliana, a realidade não é estática, mas um processo contínuo de desenvolvimento e transformação, impulsionado por contradições internas. O movimento dialético começa com uma tese, uma afirmação ou ideia inicial que representa uma posição ou estado de coisas. Esta tese inevitavelmente gera sua antítese, uma oposição ou contradição que desafia a tese, revelando suas limitações ou falhas.
A interação entre tese e antítese não resulta em uma simples negação ou destruição de uma pela outra, mas sim em uma superação dialética, chamada síntese. A síntese não é apenas uma combinação das duas, mas uma nova posição que resolve a contradição ao integrar os elementos verdadeiros da tese e da antítese em um nível superior de compreensão ou realidade. Importante notar que, para Hegel, essa síntese não é definitiva; ela mesma se torna uma nova tese, que, em algum momento, gerará uma nova antítese, e assim o processo dialético continua.
Hegel aplicou essa estrutura dialética a diversas áreas do conhecimento, incluindo a história, a política, a religião e a arte. Em sua obra mais famosa, a “Fenomenologia do Espírito”, ele descreve a evolução da consciência humana desde a percepção sensorial até o conhecimento absoluto, através de um processo dialético. Cada estágio da consciência é caracterizado por uma visão particular do mundo (tese), que encontra seus limites e dá origem a uma visão oposta (antítese), até que ambas são reconciliadas em um estágio superior de consciência (síntese).
Na “Ciência da Lógica”, Hegel argumenta que a própria lógica e as categorias fundamentais do pensamento seguem um processo dialético. Ele sustenta que o desenvolvimento do pensamento, como o desenvolvimento do espírito e da realidade, é movido pela necessidade interna de resolver contradições, o que leva a uma progressão de conceitos cada vez mais complexos e abrangentes.
A dialética de Hegel também desempenhou um papel crucial na filosofia da história. Ele acreditava que a história mundial se desenrola de maneira dialética, com cada período histórico representando uma tese que é eventualmente superada por sua antítese, levando a uma nova síntese histórica. Esse processo, segundo Hegel, é impulsionado pela “astúcia da razão”, onde a razão utiliza as paixões e os conflitos humanos para alcançar a liberdade e a realização do espírito no mundo.
Em resumo, a dialética hegeliana é um processo de desenvolvimento e evolução através da resolução de contradições, aplicável tanto ao pensamento quanto à realidade. Ela implica que a verdade não é estática, mas emerge gradualmente através de um movimento constante de tese, antítese e síntese, levando a uma compreensão mais profunda e abrangente da realidade.
Características da Dialética
- Contradição: É o núcleo da dialética, onde os opostos interagem e se resolvem mutuamente, promovendo o desenvolvimento e a compreensão aprofundada.
- Totalidade: A dialética considera a realidade como um todo interconectado, onde cada parte só pode ser compreendida em relação ao conjunto.
- Simultaneidade: Os processos dialéticos ocorrem de maneira simultânea e contínua, sem um início ou fim claramente definidos, similar às ondas do mar.
- Criticidade: Promove uma abordagem profundamente crítica, constantemente questionando e reavaliando conceitos e premissas estabelecidas.
- Ausência de Hierarquia: Todas as partes e aspectos da realidade possuem igual importância, favorecendo a igualdade e o equilíbrio nas relações humanas e com o meio ambiente.
Princípios da Dialética
- Princípio da Totalidade: Todos os fenômenos estão inter-relacionados e só podem ser plenamente entendidos dentro do contexto do todo.
- Princípio do Movimento: A realidade está em constante mudança e transformação, sendo o movimento intrínseco à natureza das coisas.
- Princípio da Mudança Qualitativa: As mudanças quantitativas acumulativas podem levar a transformações qualitativas significativas, alterando a essência e as características fundamentais de um fenômeno ou objeto.
Exemplo de Processo Dialético
- Grão de Milho (Tese): Representa o ponto de partida.
- Haste que Cresce (Antítese): Surge em oposição ou desenvolvimento da tese.
- Espiga de Milho (Síntese): Integra elementos da tese e antítese, resultando em uma nova realidade que inicia outro ciclo dialético.
Conclusão
A dialética serve como uma poderosa ferramenta filosófica para entender e explicar os processos de mudança e desenvolvimento na natureza, na sociedade e no pensamento humano.
Ao reconhecer e analisar as contradições inerentes à realidade, a dialética busca superar conflitos e alcançar uma compreensão mais abrangente e profunda do mundo que nos cerca.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.