O que é um campo de concentração? – Giorgio Agamben

O campo é o novo nómos biopolítico da vida contemporânea. É um elemento estrutural da gestão biopolítica. É o lugar em que a exceção do nascimento, do ordenameto e do território se complementam, gerando uma vida nua passivel de qualquer tipo de transgressão por parte do Estado.

Índice

Introdução

O campo (de concentração, de refugiados, de extermínio, etc) é um paradigma da existência de nossa realidade política. É um elemento central na estrutura jurídico-política da sociedade moderna e que precisa de certa explicação que exponha sua função.

Para Giorgio Agamben, o campo não é um erro no progresso histórico das sociedades modernas, não é um desvio que o século XX infelizmente foi vitimado, mas é uma espécie de condição fundamental para a própria existência da política soberana, da possibilidade de se evocar um estado de exceção e produzir o homo sacer.

Este artigo tem como objetivo descrever a noção de campo e sua localização na política moderna.

O nazismo

O regime nazista é objeto privilegiado para observar o uso extremo, na política moderna, dos instrumentos que a levam até o limite. O campo de concentração nazista foi objetivamente terrível, entretanto, para além do que houve em seu interior, Agamben propõe uma pergunta fundamental: o que é um campo?

Qual a sua estrutura jurídico-política, por que semelhantes eventos aí puderam ter lugar? Isto nos levará a olhar o campo não como um fato histórico e uma anomalia pertencente ao passado (mesmo que, eventualmente, ainda verificável), mas, de algum modo, como a matriz oculta, o nómos do espaço político em que ainda vivemos.[1]

Ou seja, há algo no campo que o transforma elemento fundamental do espaço político. E observar o nazismo é fixar o olhar em um espaço específico num tempo específico em que o estado de exceção de instituiu estavelmente, deixando de ser elemento de segurança da sociedade sob um perigo factício e se confundindo com a própria norma. O estado de exceção nazista era peculiar e, segundo o jurista nazista Wemner Spohr, desejado.


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Desta forma, a instauração do estado nacional-socialista pedia a suspensão dos direitos fundamentais que, quando adquire estabilidade, gera uma disposição espacial permanente, um espaço que permanece fora do ordenamento jurídico normal, o campo. “O campo é o espaço que se abre quando o estado de exceção começa a tonar-se a regra”[2], afirma Agamben, pois o campo é a exceção dentro da exceção. Desta forma, é o espaço em que o ordenamento normal, que já é de exceção, não precisa tocar. É o espaço da arbitrariedade fluida num domínio da arbitrariedade minimamente estável.

Quando, em março de 1933, coincidindo com as celebrações pela eleição de Hitler como chanceler do Reich, Himmler decidiu criar em Dachau um “campo de concentração para prisioneiros políticos”, este foi imediatamente confiado às SS e, através da Schutzbaft, posto fora das regras do direito penal e do dreito carcerário, com os quais, nem então e nem em seguida, jamais teve algo a ver.[3]

Schutzbaft, por sua vez, era a “custódia protetora”, que tornava possível ao regime nazista driblar todo o sistema judiciário para perseguir e prender inimigos políticos. Tal tipo de dispositivo foi a materialização do braço executor de um sistema de exclusão que independente do sistema judiciário. É a manifestação concreta da existência do campo, já que ele é diretamente relacionado ao entendimento de que a lei se faz na própria voz do Führer, diretamente relacionado à aplicação da lei que se faz na suspensão da norma, ou seja, nos decretos do Führer com força-de-lei.

A custódia protetora é a execução desta manifestação específica da força-de-lei, é a garantia material de que a enunciação do Führer de fato é a aplicação da norma do direito de exceção sem necessidade de haver instituída as normas de sua realização. Ou seja, o campo não foi instituído, ele simplesmente nasceu com a própria revolução nacional-socialista, pois seu espaço de emergência foi estrutural:

Por isto, dado que, como vimos, os campos tinham lugar em um tal peculiar espaço de exceção, o chefe da Gestapo Diels pôde afirmar: “Não existe ordem alguma nem instrução alguma para a origem dos campos: estes não foram instituídos mas um certo dia vieram a ser (sie wurden nicht gegründet, sie waren eines Tages da)”.[4]

É importante interpretar este “vieram a ser” como parte da própria emergência do espaço de exceção no interior do ordenamento de exceção estabelecido. É o escape necessário de um espaço ordenado.

Como entender o biopoder em Michel Foucault

O campo é “um pedaço de território que é colocado fora do ordenamento jurídico normal, mas não é, por causa disso, simplesmente um espaço externo”[5]. Como um espaço interno e excluído, ou seja, pertencente mas não incluído, o campo detém aqueles que foram “capturados fora”, mas o próprio estado de exceção, quando se torna norma, já é o elemento capturado fora que transforma a norma e a exceção em elementos indistinguíveis. O campo é elemento central de normalização do estado de exceção:

Na medida em que o estado de exceção é, de fato, “desejado”, ele inaugura um novo paradigma jurídico-político, na qual a norma torna-se indiscernível da exceção. O campo é, digamos, a estrutura em que o estado de exceção, em cuja possível decisão se baseia o poder soberano, é realizado normalmente.[6]

Há algo de relevante aqui: a presença do campo cria um espaço para que o soberano não se limite somente a decidir sobre a exceção, deixando ao ordenamento o funcionamento da política: o soberano opera diretamente, normalizando o estado de exceção e abrindo um espaço sem ordenamento regulado para aplicação da lei. O estado de exceção possui um ordenamento extraordinário, supostamente de passagem para a constituição de um novo ordenamento, mas o espaço despido de direito é o campo:

exibindo a nu a íntima estrutura de bando que caracteriza o seu poder, ele agora produz a situação de fato como consequência da decisão sobre a exceção. Por isso, observando-se bem, no campo a quaestio iuris não é mais absolutamente distinguível da quaestio facti e, neste sentido, qualquer questionamento sobre a legalidade ou ilegalidade daquilo que nele sucede é simplesmente desprovido de sentido. O campo é um híbrido de direito e de fato, no qual os dois termos tornaram-se indiscerníveis.[7]

A questão de fato, ou seja, o perigo à sociedade, é gerado posteriormente como justificativa mas também como motor da própria existência do estado de exceção nazista. A consequência disso é a indistinção de fato e direito, de tal maneira que o campo, como elemento de exceção dentro do estado de exceção permanente, é o local em que abre-se margem para que tudo possa acontecer.

Nos campos, tanto a lei é suspensa como fato e direito “se confundem sem resíduos, neles tudo é verdadeiramente possível”[8].

A função do campo

O campo é uma estrutura jurídico-político que permite a realização estável da exceção. Só é possível, para Agamben, entender o que se passou nos campos nazistas se for compreensível que o campo é uma zona de indistinção entre exceção e regra, lícito e ilícito. No campo, o direito não faz sentido, assim como a subjetividade não é elemento que gera direito ao sujeito.

As leis de Nuremberg, por sua vez, já garantiam que o hebreu não tivesse nenhum direito de cidadão

Na medida em que os seus habitantes foram despojados de todo estatuto político e reduzidos integralmente a vida nua, o campo é também o mais absoluto espaço biopolítico que jamais tenha sido realizado, no qual o poder não tem diante de si senão a pura vida sem qualquer mediação. Por isso o campo é o próprio paradigma do espaço político no ponto em que a política torna-se biopolítica e o homo sacer se confunde virtualmente com o cidadão.[9]

O campo não é, portanto, um espaço em que seres humanos cometeram delitos horríveis. O que está em jogo não é a maldade humana, mas sim os procedimentos jurídicos e políticos que tornaram possível que, neste espaço, qualquer ato cometido não pudesse ser classificado como delito. Ou seja, um campo não é somente um lugar de pessoas sem escrúpulos, mas é um local em que a suspensão do direito acontece de tal maneira que qualquer ato é possível e o conceito de “escrúpulo” não é mais aplicável. Em vez de olhar para os algozes com certo psicologismo ou moralismo, olhar para a vida nua das vítimas e, acima de tudo, para o processo que as nudifica.

E essa vida nua que despiu aqueles que foram submetidos ao campo não é um elemento de constatação do direito, ou seja, não é um elemento que acontece para além da ação política, que se situa do lado de fora da esfera política. Novamente, Agamben não delimita o problema em torno da moralidade ou da psique dos assassinos, pois a vida nua é resultado de um processo de exceção em que o direito e o fato se confundem no interior no campo.

Não se compreende a especificidade do conceito nacional-socialista de raça – e, juntamente, a peculiar imprecisão e inconsistência que o caracteriza – se esquece-se que o corpo biopolítico, que constitui o novo sujeito político fundamental, não é uma quaestio facti (como, por exemplo, a identificação de um certo corpo biológico) nem uma quaestio iuris (a identificação de uma certa norma a ser aplicada), mas a aposta de uma decisão política soberana, que opera na absoluta indiferenciação de fato e direito.[10]

Somado a isso, a constituição do perí0do nazista era repleta de termos equívocos que não se remetiam a uma norma, como “bom costume”, “segurança e ordem pública”, “estado de perigo”, que são referentes a uma situação, o que torna falha a ideia de uma lei que seria somente aplicada pelo juiz. A inconsistência era base para uma prática de exceção em que fato e direito se confundem.

O conceito de raça nacional-socialista, por exemplo, não remete a qualquer situação de fato externa. Trata-se de uma cláusula geral que indiscerne fato e direito:

O juiz, o funcionário, ou qualquer outro que deva medir-se com ela, não se orientam mais pela norma ou por uma situação de fato, mas, vinculando-se unicamente à própria comunidade de raça com o povo alemão e o Führer, movem-se em uma zona na qual as distinções entre a vida e política e entre questão de fato e questão de direito não têm mais, literalmente, sentido algum.[11]

Neste sentido, até mesmo a função do Führer assume seu significado real. A palavra do Führer já é norma em si, e não uma situação factícia que passa por um processo de transformação de norma. O corpo biopolítico (a presença, portanto, do corpo hebreu indigno e do corpo alemão digno), neste caso, não é um elemento biológico sobre o qual a norma remete para sua aplicação: ele é norma e é critério da aplicação, “norma que decide o fato que decide da sua aplicação”[12].

O Führer é verdadeiramente, segundo a definição pitagórica do soberano, um nómos êmpsykhon, uma lei vivente. (Por isto, mesmo permanecendo formalmente em vigor, a distinção dos poderes que acaracteriza o Estado democrático e liberal perde aquii o seu sentido. Daí a dificuldade de julgar, segundo os normais critérios jurídicos, aqueles funcionários que, como Eichmann, não haviam feito mais do que executar como lei a palavra do Führer).[13]

É interessante reparar que o termo citado por Agamben é “Führer” e não Hitler. O que lhe interessa é a função Führer, é o estatuto que ela recebe de tal maneira que a palavra dita por aquele que está nesta função, num estado de exceção permanente, tem força-de-lei. A norma dita a situação que irá remeter à aplicação da norma, sendo assim, a palavra do Führer dita a situação que irá remeter a aplicação de sua palavra.

O que é o campo?

O campo é a manifestação material de um tipo de política que se faz na escolha do impolítico[14].

O racismo de Estado perpetrado pelo Estado biopolítico nazista coloca o campo como o espaço de impossibilidade de decisão entre exceção e regra, mas, ao mesmo tempo, faz com que cada membro da população alemão, ao se deparar com um corpo hebreu, tenha a soberania de decidir sobre a vida e a morte. O corpo biopolítico alemão é produzido justamente neste momento de soberania:

O campo é o espaço desta absoluta impossibilidade de decidir entre fato e direito, entre norma e aplicação, entre exceção e regra, que entretanto decide incessantemente sobre eles. O que o guardião ou o funcionário do campo têm diante de si não é um fato extrajurídico (um indivíduo biologicamente pertencente à raça hebraica), o qual se trata de discriminar na norma nacional-socialista; ao contrário, cada gesto, cada evento no campo, do mais ordinário ao mais excepcional, opera a decisão sobre a vida nua que efetiva o corpo biopolítico alemão. A separação do corpo hebreu é imediata produção do corpo próprio alemão, assim como a aplicação da norma é sua produção.[14]

Ou seja, o campo, enquanto espaço de indistinção entre norma e vida nua, enquanto materialização do estado de exceção justamente quando este elemento político erige e se mantém de forma permanente, é um espaço que não depende da moralidade específica de seus aplicadores. Está presente no subtexto de Agamben que a questão acerca do estado de exceção não é uma patologia política, mas é essência da própria política moderna.

O campo, sendo assim, não é uma criação material específico de um passado presente: ele existe em todos os locais em que tal estrutura jurídico-política de indistinção entre norma e vida nua é encontrada, independentemente do tipo de crime que se pratica em seu interior.

Weimar recolheu os refugiados hebreus orientais, quanto as zones d’attente nos aeroporto internacionais franceses, nas quais são retidos os estrangeiros que pedem o reconhecimento do estatuto de refugiado. Em todos estes casos, um local aparentemente anódino (como, por exemplo, o Hotel Árcades, em Roissy) delimita na realidade um espaço no qual o ordenamento normal é de fato suspenso, e que aí se cometam ou não atrocidades não depende do direito, mas somente da civilidade e do senso ético da polícia que age provisoriamente como soberana (por exemplo, nos quatro dias em que os estrangeiros podem ser retidos nas zone d’attente, antes da intervenção da autoridade judiciária).[15]

O campo, desta forma, não é uma emergência material e geográfica de uma moralidade específica ou de uma psique específica, pois ele é um evento constitutivo do próprio espaço político da modernidade. O nexo funcional entre localização (território), ordenamento (Estado) e regras de inscrição da vida (nascimento ou nação), tão fundamentais na política moderna e na criação dos Estados-nação, entra em crise duradoura e passa a ser função do Estado lidar diretamente com a vida biológica da nação.

O estado de exceção deixa de ser um elemento temporal e passa a ser permanente, tendo no campo sua materialização mesmo em momento de suposta normalização jurídica. “O descolamento crescente entre o nascimento (a vida nua) e o Estado-nação é o fato novo da política do nosso tempo, e aquilo que chamamos de campo é seu resíduo”[16], afirma Agamben.

A um ordenamento sem localização (o estado de exceção, no qual a lei é suspensa) corresponde agora uma localização sem ordenamento (o campo, como espaço permanente de exceção).[17]

Enquanto o Estado nazista é um exemplo de estado de exceção que se torna norma, sendo o campo a transferência da exceção para uma localização em que de fato é possível produzir a vida nua, o Estado moderno pacificado, ordenado, é visto como gestor dos espaços de exceção que nascem como resíduo da necessidade estatal de gerir diretamente a vida biológica da população.

O campo é a transferência de um estado de exceção para uma localidade específica que pode acontecer mesmo dentro de estados regidos por ordenamentos estáveis. É a materialização do estado de exceçã em um local física, geograficamente determinado, em que a suspensão da lei se faz absoluta.

Considerações finais

O campo, segundo a análise de Agamben, é uma localização deslocante que funciona como matriz oculta da política contemporânea. Matriz oculta porque não se apresenta como exceção, mas que garante a gestão da vida biológica dentro dos Estados-nação.

O campo como localização deslocante é a matriz oculta da política em que ainda vivemos, que devemos aprender a reconhecer através de todas as suas metamorfoses, nas zones d’attente de nossos aeroportos bem como em certas periferias de nossas cidades. Este é o quarto, inseparável elemento que veio a juntar-se, rompendo-a, à velha trindade Estado-nação (nascimento)-território.[18]

O campo é o novo nómos biopolítico da vida contemporânea. É um elemento estrutural da gestão biopolítica. É o lugar em que a exceção do nascimento, do ordenameto e do território se complementam, gerando uma vida nua passivel de qualquer tipo de transgressão por parte do Estado.

Como entender o biopoder em Michel Foucault

Referências

[1] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 173.

[2] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 175.

[3] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 176.

[4] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 176.

[5] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 176.

[6] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 177.

[7] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 177.

[8] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 177.

[9] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 177-178.

[10] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 178.

[11] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 179.

[12] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 180.

[13] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 180.

[14] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 180-181.

[15] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 181.

[16] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 182.

[17] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 182.

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