Da série “Janta Filosófica“.
Índice
Introdução
Olavo de Carvalho nasceu em Campinas em 1947, é conhecido como filósofo e astrólogo. Viveu seus últimos anos em Richmond, Virgínia, nos Estados Unidos da América e teve influência central na distribuição de certa ideologia reacionária no Brasil que se alinhou perfeitamente ao pré-modernismo bolsonarista[1].
O objetivo deste artigo é recolher os pontos de contato entre o bolsonarismo (em sua concretude, nos momentos após a vitória nas eleições) e a figura de Olavo de Carvalho.
De início, a primeira precaução: este artigo seguirá um caminho de explicação das relações entre o reacionarismo olavista e o reacionarismo bolsonarista, desta forma, considerando, de início, ambos, como distintos entre si. Este ponto de partida nos guiará no recolhimento de dados e em sua exposição doravante. Não há qualquer intenção de personalizar o reacionarismo em Olavo de Carvalho ou em Jair Bolsonaro: ambos, em suas personalidades individuais, serão o centro da busca de dados e reconstituição da dialética própria de suas visões de mundo, no entanto, parte-se do princípio de que ambos se localizam no campo de atuação da formação ideológica reacionária no Brasil que se faz atuante e forte principalmente após o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Deve-se compreender Olavo de Carvalho como nó dessas relações que o próprio termo bolsonarismo as tem como implícitas.
Do pó viemos
Antes de iniciar a exposição dos pontos principais de ligação entre o bolsonarismo e o olavismo, é necessário expor um pano de fundo que fundamenta o entendimento reacionário de Olavo de Carvalho. O autor compreende que no início do século XX uma intelligentsia comunista teria se reunido, conversado racionalmente, debatido pormenorizadamente, até chegar a uma conclusão. Uma conclusão que funciona como conspiração, como plano: Lukacs, Horkheimer, Adorno e Gramsci teriam concluído que o capitalismo era pequeno demais para receber suas críticas. O novo alvo, o alvo eficiente, seria a própria civilização judaico-cristã[2].
O autor segue:
Para que aquela intuição se disseminasse em círculos mais amplos e se tornasse o eixo articulador de uma nova estratégia mundial, foi preciso chegar às décadas finais do século XX, quando o desmantelamento do império soviético deu razão àqueles pioneiros.
Hoje, é impossível não perceber a aliança mundial de neocomunistas, anarquistas, neonazistas, radicais islâmicos e até budistas contra os EUA e Israel, as últimas fortalezas da civilização condenada, contra a qual, literalmente, vale tudo.[3]
A ONU seria a expressão material da tentativa de se criar um Estado Global, evidentemente patrocinado “pelo Partido Democrata, pelas fundações Rockefeller e Ford, pelo New York Times e entidades semelhantes”[4]. Trata-se do progressismo transnacional, termo para “designar a densa cobertura retórica de ódios irracionais e calúnias desencontradas que adorna um movimento cuja unidade estratégica é, no entanto, inegável”[5].
Entre os resultados do estabelecimento de um novo Estado Global e, portanto, da instituição de uma ideologia e ordem globais, a chamada Nova Ordem Mundial seria a naturalização de barbaridades quase nazistas, como o uso de fetos abortados para a fabricação de refrigerantes[6]. Ao mesmo tempo, esta naturalização impõe uma certa cultura gayzista, que torna “obrigatório achar lindo a relação homossexual“.
Na medida em que há um individualismo metodológico inserido em seu olhar para a realidade social (aliado a um forte senso moral religioso), cabe ao autor encontrar as malícias das vontades dos indivíduos, os planos maléficos que podem ser planejados em salas escuras e aplicados para controle social. Exemplo: “Os Beatles eram semi-analfabetos em música. Não sabiam nem tocar violão. Quem compôs as canções foi o Theodor Adorno“.
A própria terra plana não foi poupada pelo filósofo, que ganhou em suas letras mais um carinhoso defensor da investigação científica: “Para mim essa questão de terra plana é como qualquer outra: ninguém tem certeza de porra nenhuma. As pessoas sensatas se divertem com a investigação, os neuróticos se ofendem com a pergunta“.
Olavo de Carvalho duvida da validade da física clássica, newtoniana. Isaac Newton teria sido um péssimo pesquisador que espalhou o ateísmo pelo ocidente através de uma suposta tese falsa de que um corpo em movimento tende a ficar em movimento (e, portanto, muda sua tendência quando entra em contato com outros corpos) e um corpo em repouso tende a ficar em repouse (saindo de sua posição de repouso através do contato e aplicação de força de outros corpos)[7].
Quando mencionei, por exemplo, as consequências nefastas que o mecanicismo newtoniano espalhou na cultura europeia – fato que já é de domínio público pelo menos desde o século 19 –, só não me xingaram a mãe porque não acreditavam que alguém capaz de atentar contra a memória do autor dos Princípios Matemáticos da Filosofia Natural pudesse jamais ter tido mãe.
Quando escrevi que o próprio Charles Darwin fora o inventor do design inteligente, hoje tão abominado pelos evolucionistas – coisa que não pode ser ignorada por ninguém que tenha lido algo mais que as orelhas de A Origem das Espécies –, fui imediatamente rotulado como fanático religioso indigno de ocupar um espaço na mídia.
Quando expliquei que sem o conhecimento do simbolismo astrológico é impossível compreender direito as concepções cosmológicas de Sto. Tomás de Aquino ou a estética das catedrais góticas – o que é a obviedade das obviedades para quem haja estudado o assunto –, passei a ser chamado pejorativamente de “astrólogo” pelos srs. Rodrigo Constantino e Janer Cristaldo, que, como ninguém ignora, são autoridades insignes em História medieval.[8]
Por fim, em sua busca incessante por culpados individuais para problemas sociais, a própria pandemia foi apresentada como mentira, o vírus, como fabricação chinesa com fins de controle social:
Só um perfeito idiota pode imaginar que a disseminação do vírus chinês no mundo foi um acidente. Mas o Ocidente está repleto de perfeitos idiotas, diante dos quais os chineses têm um justificado senso de superioridade.
— Olavo de Carvalho (@opropriolavo) April 3, 2020
O medo de um suposto vírus mortífero não passa de historinha de terror para acovardar a população e fazê-la aceitar a escravidão como um presente de Papai Noel.
— Olavo de Carvalho (@opropriolavo) May 12, 2020
Eis que, em 25 de janeiro de 2022, oito dias após receber o diagnóstico de COVID19, Olavo de Carvalho faleceu em Richmond. Uma de suas filhas – rompida com o pai -, Heloísa de Carvalho, afirmou que o vírus foi a causa de sua morte[9].
Ao pó voltaremos
O pensamento filosófico e social ultra individualista e subjetivista de Olavo de Carvalho, cuja consequência a partir de um ímpeto moral católico pré-moderno é o reacionarismo conservador perfeitamente observável no bolsonarismo, era apreciado pelos filhos do presidente, por funcionários de alto e médio escalão que eram alunos do astrólogo. De seus pupilos, o governo de Jair Bolsonaro se serviu de Ernesto Araújo e Ricardo Vélez Rodríguez como ministros das Relações Exteriores e da Educação respectivamente. Abraham Weintraub, que substituiu Vélez Rodríguez, também foi aluno de Olavo. Felipe Martins, que foi nomeado como assessor especial do presidente para assuntos internacionais também foi aluno e é seguidor das ideias do filósofo.
Carlos Nadalim, secretário de Alfabetização do Ministério da Educação (MEC), era coordenador pedagógico de uma escola infantil em Londrina e aluno de Olavo no Curso Online de Filosofia. Foi nomeado para o cargo pelo Governo Jair Bolsonaro. Murilo Resende Ferreira, diretor de Avaliação da Educação Básica do Inep, era aluno desde 2009. Adolfo Sachsida, secretário de Política Econômica do Ministério da Economia, conheceu Olavo há 14 anos: “Foi como encontrar a luz em meio às trevas”, ele relatou no Facebook.
Por sua vez, Joice Hasselmann (PSL-SP), Paulo Martins (PSC-PR), Marcel van Hattem (Novo-RS), Carla Zambelli (PSL-SP) são nomes de deputados e deputadas que publicamente expressaram seu carinho ao dito professor.
O princípio subjetivista e moralista de sua filosofia se relaciona com o projeto de homescholling de Chris Tonietto (PSL-RJ), Bia Kicis (PSL-DF) e Caroline de Toni (PSL-SC) apresentado e aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados. A pena para abandono intelectual não se aplicaria aos pais ou responsáveis que optassem pela modalidade de educação domiciliar, que surge após ondas de ações do projeto Escola Sem Partido, de aspiração olavista, posteriormente criticada pelo filósofo.
Olavo entendia que era necessário criar um clima em que a própria presença do comunismo em sala de aula seria identificado e denunciado pelos próprios alunos, por seus pais, etc. Seria necessário, primeiramente, criar um senso comum anticomunista na escola para, em seguida, propor projetos de lei relacionados à Educação no Brasil. A abertura para uma educação supostamente anticomunista, oposta ao que é apresentado na educação pública brasileira, estaria justamente no homeschooling e na desregulamentação dos critérios de ensino domiciliar.
A recusa a um programa escolar que aborde as culturas dos países africanos é condizente com seu entendimento da cultura proveniente do cristianismo como universal e universalizante e, acima de tudo, ao ser universalizante, como propulsor das identidades locais que, após primeira sujeição à cultura universal, poderiam renascer com vigor.
Para Olavo, a pessoa negra deveria entender
que sua condição de raça era apenas um fato biológico sem significação cultural por si, que a cultura a que tinham se integrado não era branca, mas universal, que era mais útil e mais honroso para o negro vencer individualmente no quadro da nova cultura mundial do que ficar choramingando coletivamente as saudades de culturas tribais extintas.[10]
Ou seja, a negritude entendida somente como cor da pele e, na medida em que somente é uma cor, não há qualquer cultura associada a ela. Desta maneira, a ausência de qualquer traço de culturas de países africanos na trajetória de ensino regular no Brasil não se faz como erro, mas como caminho óbvio de introdução de cada cidadão numa cultura universal. A existência da escravidão no Brasil é completamente esquecida pelo filósofo em sua exposição sobre aquilo que classifica como cultura negra.
E de onde vinha a força dos portugueses? Vinha da desenvoltura, do otimismo, da pujança com que, em vez de cair no ressentimento saudosista, em vez de revoltar-se contra a perda de suas “raízes” locais e raciais, em vez de buscar falsos consolos no ódio aos colonizadores, souberam se integrar criativamente no mundo cristão e tornar-se, mais que seus porta-vozes, seus soldados e seus poetas.[11]
O sentido universalista da cultura ocidental tomaria forma também no apoio político e ideológico e alinhamento econômico ao Governo Trump, nos Estados Unidos da América. Eduardo Bolsonaro foi o maior representante do conspiracionista Steve Bannon na América Latina, em defesa da cultura judaico-cristã no Ocidente[12]. Carlos Bolsonaro teve em Olavo um dos participantes e idealizador do gabinete das sombras[13].
Considerações finais
Enquanto personalização ideológica do bolsonarismo, enquanto filósofo oficial no início do bolsonarismo, Olavo de Carvalho teve um papel centralizador. A intenção de colocar nele uma maneira oficial de pensar o Brasil, de personalizá-lo enquanto filosofia e leitura política oficial não é muito diferente da tentativa de fazer de Bolsonaro a personalização da moral bolsonarista.
O olavismo não existe: o bolsonarismo existe.
O bolsonarismo se fez como realidade se apoiando na ideologia conservadora reacionária que Olavo de Carvalho representava, que o atravessava através de medos pós-ditadura, através do individualismo metodológico aliado a uma forte moral cristã, através da busca pela verdade na declaração e na autoria. Por fim, através da moralização reacionária do espaço público e do debate político.
Referências
[1] CARVALHO, Roxane. Dados Biográficos. https://olavodecarvalho.org/dados-biograficos/
[2] CARVALHO, Olavo. Ainda o golpe de estado no mundo. Disponível em <<https://olavodecarvalho.org/ainda-o-golpe-de-estado-no-mundo/>>. Acesso em 31 jan 2022.
[3] Ibidem.
[4] Ibidem.
[5] Ibidem.
[6] MORAES, Mauricio. #Verificamos: É falso que Pepsi admitiu usar células de fetos abortados em refrigerantes. Agência Lupa. Disponível em <<https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2019/12/06/verificamos-pepsi-celulas-fetos-abortados-refrigerantes/>>. Acesso em 31 jan 2022.
[7] CARVALHO, Olavo. Nas origens da burrice ocidental. Disponível em <<https://olavodecarvalho.org/nas-origens-da-burrice-ocidental/>>. Acesso em 31 jan 2022.
[8] CARVALHO, Olavo. Autoridades. Disponível em <<https://olavodecarvalho.org/autoridades/>>. Acesso em 31 jan 2022.
[9] G1. Olavo de Carvalho morre aos 74 anos. Disponível em <<https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/01/25/morre-olavo-de-carvalho.ghtml>>. Acesso em 31 jan 2022.
[10] CARVALHO, Olavo. A verdadeira cultura negra. Disponível em <<https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz201110.htm>>. Acesso em 31 jan 2022.
[11] Ibidem.
[12] FILHO, João. Agenda de Eduardo Bolsonaro como embaixador nos EUA vai ser dedicada ao bolsonarismo, The Intercept Brasil. Disponível em <<https://theintercept.com/2019/07/21/eduardo-bolsonaro-embaixador-eua-bannon-extrema-direita/>>. Acesso em 31 jan 2022.
[13] ARAUJO, Pedro Zambarda de. Olavo de Carvalho está por trás de ideia do “gabinete da sombra” na Saúde sugerido por virologista a Bolsonaro. Diário do Centro do Mundo. Disponível em <<https://www.diariodocentrodomundo.com.br/exclusivo-olavo-de-carvalho-esta-por-tras-de-ideia-do-gabinete-da-sombra-na-saude-sugerido-por-virologista-a-bolsonaro/>>. Acesso em 31 jan 2022.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.
Parabéns Vinicius, ótimo texto bem didático e ao mesmo tempo muito instigante. Não tem como deixar passar sem um aprofundamento desses dois fenômenos, mesmo pq eles morrem mas as ideias/ideário não. Parabéns!
Obrigado pelo comentário, Isa!
muito legal sua análise e sínstese deste “personagem” tão curioso, a encarnação do intelectual orgânico – só que menos intelectual do que a média histórica dos outros individuos que se assujeitaram nessa posição – irei usar algumas dessas referências como referência para analisá-lo em parte do meu mestrado! muito obrigado pelo seu conteúdo, vinícius
ps.: meu mestrado será analisar o discurso do filme 1964 – entre armas e livros, o que você acha?
ps2.: você acha que os enunciados no sentido Foucaultiano não estaria implicito e imerso no conjunto do não-dito de Pecheux? quando tento empreender uma análise do não-dito, me vejo reconstruindo todos os quatro prinicpais aspectos da função enunciativa foucaultiana, além de outros…
Olá, Raul! Obrigado pelo comentário! Que bom que irá lhe ajudar!
Explique um pouco mais a ideia do segundo post scriptum.