Paixão e loucura – Michel Foucault

Foucault investiga o próprio movimento da nova teoria das paixões que dá possibilidade primeira à existência da loucura. Alma e cérebro não estão ligados num caminho retilíneo, mas se relacionam numa confusão entre setores do humano (alma e corpo) que parecem se entender se maneira arbitrária. Assim, o desatino se faz num movimento de irracionalidade que começa no desarranjo da imaginação frente às paixões.

Da série “Os loucos de Foucault“.

Índice

Introdução

Em suas investigações acerca da formação discursiva sobre a loucura presente em toda História da Loucura na Idade Clássica, Michel Foucault se aproxima de um ponto específico e interessante relacionado ao próprio motor do corpo e alma humana. Na literatura da época, a paixão é insistida em seu papel fundamental como causa da loucura, como elemento obstinado e, portanto, intensamente adequado aos resultados da loucura (ímpetos, raivas, delírios, surtos violentos, etc) no ser humano.

Franç Boissier de Sauvages, médico francês do século XVIII, entendia que a loucura tinha como causas os vícios mais comuns na vida de uma pessoa[1]: delírios amorosos, antipatias, gostos depravados, melancolia causada pelo desgosto, excesso de bebida ou comida, enfim, o corpo local de interação entre o objeto de desejo e o desejo desalinhado, não adequado aos fins esperados para um indivíduo compromissado com os valores morais do século XVIII ou XVII. Paixões enquanto elementos centrais nesse desalinhamento.

Seguiremos com René Descartes como referência para uma teoria que sobreviveu até os fins da Idade Clássica: as paixões são consideradas “percepções, ou sentimentos, ou emoções da alma, que relacionamos especificamente com ela e que são causadas, alimentadas e fortalecidas por algum movimento dos espíritos”[2]. Este últimos, os espíritos, precisam de uma explicação à parte: de início, partículas físicas que surgem no sangue e, através do calor humano, são movimentadas ao coração e ao cérebro. Chegando ao cérebro, as partículas menores e mais agitadas passam por pequenas cavidades que dão abertura à glândula pineal, responsável por ser parte de uma transformação em que as pequenas partículas deixam a forma de sangue e se modificam para espíritos animais. Como numa passagem do sangue físico para o espírito animal através da glândula pineal que é a principal sede da alma.


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Ou seja, partículas físicas encostam, atingem a sede da alma. “Desta forma, os espíritos animais, os quais são de natureza material, causam percepções na alma, bem como se deslocam pelo corpo e fazem com que seus músculos se movam”[3]. A paixão não faz parte de uma experiência do corpo, como numa experiência física. Ela faz parte de um acontecimento que se passa na alma, uma percepção. Assim, calor e frio, fome e sede, amor e ódio, são todos pares considerados paixões no cartesianismo, já que nenhum deles acontece sem um corpo (a base empírica de movimento do sangue) e sem uma consciência que se relacione com a experiência (algo da alma e que relacionamos a ela após sua percepção das partículas).

Todas as paixões, na medida em que passam pela percepção da alma, acontecem na própria alma e não no corpo, ou seja, um ser sem consciência não pode ter paixões. Assim, como relação inicial, pode-se dizer que o louco de Sauvages têm consciência, na medida em que as paixões são causas da loucura e na medida em que são processos de articulação entre o material e o mental, sendo a percepção da paixão um processo inteiramente não material.

Com base também no filósofo Nicolas Malebranche do século XVII e sua obra A Busca da Verdade, Foucault chega à conclusão de que a paixão privilegia um objeto e, em seu efeito, faz circular espíritos que se encontram na alma e no cérebro: o primeiro, como lugar em que a imagem do objeto é marcada; o segundo, como lugar em que o objeto é marcado no indivíduo. Cérebro e alma em relação na explicação do movimento das paixões.

O objetivo deste artigo é comentar a investigação de Foucault sobre a loucura quando relacionada às paixões ao longo da Idade Clássica. Apesar de Descartes ter sido a referência inicial, as teorias das paixões tiveram precursores na escolástica e se estenderam até mesmo à medicina do século XVIII, como no exemplo citado acima de Sauvages, desta forma, a presença das paixões não se faz como passado imperito a ser esquecido, mas como presente vivo e atuante.

As paixões

Se René Descartes entendia que conseguiu elaborar uma relação causal entre corpo e alma no movimento dos espíritos e, assim, fundamentar teoricamente as comunicações entre o plano físico e da alma, na medicina em formação dos séculos XVII e XVIII, esta interação específica passa a apresentar outra necessidade de explicação já que “mais um passo e o sistema se fechará numa unidade onde o corpo e a alma comunicam imediatamente nos valores simbólicos das qualidades comuns”[4]. A necessidade de uma explicação mecânica já não tem mais lugar. A comunicação entre corpo e alma parece dada.

A nova explicação para as relações entre corpo e alma assume a forma de uma medicina dos sólidos e dos fluidos que não estabelece uma causalidade física entre os elementos, desta forma, a passagem dos calores (ou da inveja, ou da agitação) para os sintomas da loucura é explicada a partir de elaborações discursivas:

Na verdade, não se trata mais de situar a paixão no curso de uma sucessão causal, ou a meio caminho entre o corporal e o espiritual; ela indica, num nível mais profundo, que a alma e o corpo estão num eterno relacionamento metafórico, no qual as qualidades não têm necessidade de serem comunicadas porque já são comuns, e onde os fatos de expressão não têm necessidade de adquirir valor causal simplesmente porque a alma e o corpo são sempre expressão imediata um do outro.[5]

A paixão, neste momento da história do Ocidente, tem seu lugar analítico num momento anterior à alma e ao corpo, no momento em que ainda se relacionam enquanto unidade e distinção simultaneamente. “A possibilidade da loucura se oferece no próprio fato da paixão”[6], pois a paixão, por si só, já representa uma possibilidade de desarranjo entre a união de corpo e alma e sua referência moral prática, sempre ameaçada por um desatino que se faz como recusa ética fundamental. A explicação cartesiana acerca das paixões entrega um determinismo que abre ao homem o caminho para sua própria perda, mas esta percepção de uma loucura que poderia ser explicada a partir de uma mecânica específica não tem lugar num momento histórico de silêncio da desrazão, num momento de exclusão do louco como representante do inverso moral. A explicação cartesiana, de certa forma, oferece liberdade para que a loucura apareça e se faça real, inevitável, incorrigível.

A própria vida na cidade poderia ser um foco de excitação das paixões, pela cidade fornecer uma multiplicidade de excitações por longos períodos de tempo:

Para muitos médicos, a virtude dessa multiplicidade de excitações adicionadas, prolongadas, que repercutem incessantemente sem nunca se atenuarem. Mas existe nessa imagem, com a condição de que seja um pouco intensa, e nos eventos que constituem sua versão orgânica, uma certa força que, multiplicando-se, pode levar ao delírio, como se o movimento, ao invés de perder sua força ao se comunicar, pudesse envolver outras forças em sua esteira e dessas novas cumplicidades, tirar um vigor suplementar.[7]

A loucura é possível no fato de que há paixões e em seus movimentos em contato com o corpo e com a alma, em suas expressões no corpo e no vício que causam à alma. A loucura aparece como aquilo que rompe no movimento desenfreado da paixão que se nega. Movimento violento dos nervos, dos músculos, movimento brusco que não pode ser parado em seu curso, sendo o maníaco e seus rompantes de convulsões um exemplo. No entanto, aqui já se tem, repito, um movimento de troca simultânea entre corpo e alma que já não pode mais ser expresso por uma causalidade mecânica: o curso das ideias e os movimentos exteriores ao corpo são entendidos numa amálgama discursiva através de relações qualitativas. É necessário ter em mente a recusa clássica à explicação acerca das paixões que abriria espaço para a existência livre da loucura.

Alma e cérebro

Na medida em que Foucault está reconstituindo a percepção acerca da loucura e, na investigação sobre a percepção específica de época, há a expressão de suas condições de possibilidade, o autor investiga o próprio movimento da nova teoria das paixões que dá possibilidade primeira à existência da loucura. Alma e cérebro não estão ligados num caminho retilíneo, mas se relacionam numa confusão entre setores do humano (alma e corpo) que parecem se comunicar de maneira arbitrária.

Quando o melancólico se fixa numa ideia delirante, não é apenas a alma que está em ação, mas a alma e o cérebro, a alma e os nervos, sua origem e suas fibras: todo um segmento da unidade entre a alma e o corpo, que se destaca assim do conjunto e, singularmente, dos órgãos pelos quais se efetua a percepção do real.[8]

Alma, corpo, órgãos, detalhes e materialidades específicas. A unidade entre corpo e alma é fragmentada em um conjunto disperso, um conjunto em que tudo se passa como se os termos em jogo já estivessem lá. Sua presença é óbvia, sua relação mecânica não precisa ser explicada, até mesmo por ser anacrônica. É aqui que a totalidade alma-corpo “se fragmenta”, não em suas partes metafísicas constitutivas, nem em seu fluxo mecânico de caminho do mundo externo até a percepção da alma e a geração dos espíritos animais; a fragmentação acontece de tal maneira que ideias da alma e o corpo se relacionam sem necessitarem de uma organização detalhada e explicada. A passagem da paixões pela alma e chegando ao corpo acontece como que de maneira natural.

Figuras do desatino

Considerações finais

Desta forma, reconstituindo a paixão enquanto elemento de possibilidade primeira para a loucura:

  1. Se as paixões passam pela própria alma, não meramente pelo corpo, então sujeitos sem consciência não podem ter paixões;
  2. Se a paixão é possibilidade primeira da loucura, então loucos têm consciência.
  3. A paixão representam um certo desregramento que pede adequação;
  4. Quando a adequação não acontece, temos um movimento de desregulação que passa pela alma e, no entendimento clássico, também afeta o corpo, os nervos, o cérebro (sede da alma).
  5. O louco, assim, pensa. Tem consciência. Mas sua consciência está errada. A loucura se faz como desregramento da imaginação.

Isso significa que a loucura é um movimento vivo que afeta a unidade racional entre corpo e alma. Propriamente, trata-se do desatino que, em seus movimentos bruscos, em suas violências, em seus surtos, transforma o movimento racional das ideias e das paixões em irracional. A recusa ética fundamental se une a um conjunto não determinado mecanicamente de relações entre paixão, corpo e alma e somente nesta indeterminação que se pode manter um desatino sob o olhar da recusa ética.

Quando o irracional ganha espaço, “liberta-se o irreal”[9]. Liberta-se o não-ser, a figura da loucura. O louco pensa, mas é irracional. O louco fala, mas não precisa ser escutado.


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Referências

[1] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 9ª edição, 2012, p. 226.

[2] DESCARTES, R. 1998. As paixões da alma. São Paulo, Martins Fontes, 174 p. IN PINHEIRO, Juliana da Silveira. As paixões segundo Descartes: obscuras e irrecusáveis experiências. Controvérsia – v.3, n.2, p. 07-18, jul-dez, 2007.

[3] PINHEIRO, Juliana da Silveira. As paixões segundo Descartes: obscuras e irrecusáveis experiências. Controvérsia – v.3, n.2, jul-dez, 2007, p. 10.

[4] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 227.

[5] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 228.

[6] Ibidem.

[7] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 230.

[8] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 231.

[9] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 232.

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