Quando Pierre Bourdieu descreve o habitus, sistema de disposições práticas duráveis, o que está em jogo é um sistema marcado no corpo, ou seja, um sistema de práticas que não precisa de processos que passam pela reflexão na consciência para acontecer.
entendido como um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, de apreciações e de ações […] torna possível a realização de tarefas infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas, que permitem resolver os problemas da mesma forma, e as correções incessantes dos resultados obtidos, dialeticamente produzidas por esses resultados (BOURDIEU, 1983, p. 65).
Evidentemente, este sistema de disposições não anula a existência da consciência nos agentes sociais. Ela simplesmente não está posta em jogo. A teoria do habitus não é uma teoria da consciência e não tem compromisso em explicá-la. A teoria do habitus é aliada a uma teoria do senso prático. É, assim, uma teoria que envolve o corpo.
O corpo, aqui, é visto como aquilo que, ao ser marcado socialmente, produz e reproduz condutas.
A teoria da ação que Bourdieu propõe implica em dizer que a maior parte da ação humana está não na intenção do sujeito, mas no seu corpo. Naquilo que a gente tratou como disposições corporais. Então, a ação é diretamente tributária do conceito de habitus e portanto a ação é pré-reflexiva. Ela nunca é intencional. Ele chama essa ação de senso prático. O senso prático é uma visão quase corporal, é uma visão que não implica então a representação (MONTERO, 2021).
Trata-se, portanto, de uma teoria da prática que, ao busca sua lógica, encabeça uma reflexão sobre uma pré-lógica, justamente por não ser consciente. “Trata-se, então, de uma pré-lógica da lógica das práticas” (MONTERO, 2021).
Focar no corpo e não na consciência envolve um movimento duplo: 1) escapar da teoria existencialistas sobre o sujeito ou das limitações do método fenomenológico, que encampam a subjetividade como elemento central na análise de um sujeito singular e 2) escapar da descentralização radical do sujeito proposta pelo estruturalismo de Lévi-Strauss.
A teoria da ação parte dessa interrogação que atravessa toda a obra de Bourdieu: como encontrar um lugar teórico intermediário entre, de um lado, um sujeito livre dotado de livre-abrítrio, encarnado no pensamento de Sartre, e o determinismo presente no estruturalismo de Lévi-Strauss que supõe uma ação sem agente? (MONTERO, 2021).
Ou, nas palavras de Pierre Bourdieu, escapar das propostas sociológicas fenomenológicas e objetivistas. Sendo o conhecimento fenomenológico como aquele que:
Explicita a verdade da experiência primeira do mundo social, isto é, a relação de familiaridade com o meio familiar, apreensão do mundo social como mundo natural e evidente, sobre o qual, por definição, não se pensa e que se exclui a questão de suas próprias condições de possibilidade (BOURDIEU, 1983, p. 46).
Já o conhecimento objetivista como aquele que:
Constrói relações objetivas (isto é, econômicas ou linguísticas), que estruturam as práticas e as representações das práticas (ou seja, em particular, o conhecimento primeiro, prático e tácito, do mundo familiar), ao preço de uma ruptura com esse conhecimento primeiro e, portanto, com os pressupostos tacitamente assumidos que conferem ao mundo social seu caráter de evidência e de natural (BOURDIEU, 1983, p. 46-47).
Se o sujeito é o centro da análise nas pesquisas fenomenológicas, nas objetivistas ele tende a ser impensando, como no estruturalismo, que o insere na teoria enquanto um suporte da estrutura. “Bourdieu quer colocar em evidência as capacidades criadoras dos agentes, quer chamar atenção para o fato desse poder gerador da ação que não reside em algo tão abstrato como o espírito universal ou a razão humana. Esse espírito criador está na própria ação” (MONTERO, 2021).
O espírito criador não está no espírito humano universal alvo das pesquisas estruturalistas, mas não está no interior de uma consciência criativa e dominante, como nas pesquisas fenomenológicas. A criação reside na ação por meio do corpo. A ação vista enquanto aquilo que depende do corpo não é observada tendo como objeto as intenções dos sujeitos, suas reflexões, suas motivações e etc. Aqui, percebe-se até mesmo uma relação entre entre a teoria da ação de Bourdieu e a noção de estratégia sem estrategista de Michel Foucault, que preconiza a prática de poder, as técnicas de poder, sem analisá-lo inserindo o sujeito como seu criador e planejador intencional. Para Foucault, há intencionalidade no exercício do poder, mas não há um sujeito que determina os desdobramentos e a prática das relações de poder em nível macro. As intenções conscientes dos sujeitos obedecem condições de existência que estão para além de sua consciência. Isso implica em observar o poder marcando o corpo, não a consciência. Implica em entender que o poder cria condutas pois marca o corpo em vez de simplesmente entrar em choque com uma suposta consciência livre que seria reprimida.
Para Bourdieu, a teoria da ação baseada no senso prático propõe que a maior parte da ação humana não está na intenção do sujeito, mas no seu corpo. Novamente, a noção de habitus é central para este entendimento, pois a ação é pré-reflexiva. “Ela nunca é intencional. Ele chama essa ação de senso prático. O senso prático é uma visão quase corporal, é uma visão que não implica então a representação” (MONTERO, 2021). Os habitus, enquanto esquemas corporais, não são devedores de uma filosofia da consciência ou da representação:
Os esquemas corporais vão, não da representação à prática, mas da prática à prática. Não passam pelo discurso e não passam pela consciência. Pensem num jogador de tênis que antecipa onde a bolinha vai cair. Não passa pela intenção, já que ele antecipa com o corpo o lugar onde a bola precisa ser rebatida. Essa antecipação é inconsciente, é do campo do corpo, é do domínio da prática. Ele conhece, sem saber, as regras do corpo. Esse desconhecimento dos princípios que guiam nossas ações é responsável por esse sentido da evidência que abriga essa visão ativa do mundo que nós todos comportamos na dimensão do habitus. Nós temos uma visão autoevidente do mundo, que bourdieu chama dóxica. Ela é necessária para agirmos, para fazermos escolhas (MONTERO, 2021).
O senso prático, assim, é a superação da ideia de representação e da centralidade do sujeito. Mas também é a superação de uma análise estruturalistas que elimina o sujeito como ponto de reflexão.
Características do senso prático (MONTERO, 2021):
- A economia da ação: A ação é econômica, pois economiza pensamento em troca de uma prática intuitiva, valoriza mais a economia que o rigor. Uma ação consciente acontece, ainda assim, numa base não consciente de intuições operantes para determinar o campo de possibilidades da ação. “Portanto, a ação não precisa ser coerente, ela é rápida, imediata, intuitiva e não analítica, ela prefere economizar essa etapa na pré-reflexão. A ação só mobiliza a lógica necessária ao contexto específico, ela não faz uma teoria geral do contexto. Ela desconhece o contexto geral, ela faz o escaneamento intuitivo do lugar onde ela está”, afirma Montero.
- Acontece no corpo: A economia da ação existe na medida em que tal senso prático sob a forma do habitus está depositado não só na consciência, mas principalmente no corpo, nas disposições corporais para, intuitivamente, elaborar ações verbais ou não verbais adequadas a determinados contextos práticos.
- A superação das cosmologias: Em vez de uma cosmologia, a intuição é o princípio da reflexão sobre as ações dos agentes a partir da observação da pré-lógica das ações. “Essa pré-lógica, então, sacrifica as generalizações, por isso Bourdieu critica as cosmologias. As cosmologias supõem que o sujeito tem uma cosmologia na cabeça. O sujeito não tem uma cosmologia na cabeça. Ele tem uma intuição de como as coisas funcionam. Na verdade, a escolha da ação sacrifica a generalização”, diz Montero.
- A ação não é coerente. Apesar do senso prático ser devedor do princípio da classificação, do princípio da semelhança e do princípio da oposição, não é relativo a um referente. “Não explicita o referente a partir do qual ele faz essa classificação, portanto, o senso prático classifica sem explicitar seu referente. Sendo assim, não é uma classificação coerente, porque ela pode mudar esse referente a cada novo contexto. Uma hora ela classifica o claro e o escuro a partir de um referente, outra hora classifica o claro e o escuro ou masculino e feminino a partir de outro referente, portanto, a cada situação a escolha do senso prático pode ser diferente”, finaliza Paula Montero.
Considerações finais
A lógica pré-lógica da prática social se expressa sempre no corpo. O corpo é o depositário das estrutura social internalizadas, inculcadas, incorporadas. A lógica da prática é a performance. O senso prático, conforme elaborado por Bourdieu, é devedor de um entendimento específico do corpo.
Assim, entende-se que o senso prático define a cada caso concreto qual será o critério de seleção das práticas sociais qual aspecto retido para classificação e nos obriga a manter. Isso singifica que o senso prático é ambíguo, não se compromete com a coerência e está sempre em estado de mutação.
Referências
BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática IN ORTIZ, Renato (Org.). Pierre Bourdieu: Sociologia. São Paulo: Ática, 1983.
MONTERO, P. Teoria e histórias da antropologia: Pierre Bourdieu e a Antropologia. Canal do IFCH – UNICAMP no YouTube, 2021. Disponível em <<https://www.youtube.com/live/75FSp05KF8o?si=HUT2rJ6PRaF-ILIz>>. Acesso em 09 de setembro de 2024.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.