A lei da pertinência – Dominique Maingueneau

Entende-se que a lei da pertinência é um elemento constitutivo da prática discursiva e, por sua vez, sua existência não se faz enquanto norma, ou seja, externamente imposta aos indivíduos para que a situação da comunicação seja perfeita. Se faz enquanto condição e se realiza enquanto produto.

Índice

Introdução

Segundo o dicionário Michaelis On-line:

pertinência
per·ti·nên·ci·a
substantivo feminino

  1. [Pouco usado] Ver pertença.
  2. Aquilo que concerne ao assunto.

Neste artigo, será importante o entendimento daquilo que concerne ao assunto enquanto um elemento constitutivo da própria comunicação e, portanto, da prática do discurso. Sendo constitutivo, pode-se entender a pertinência como uma lei do discurso: ou seja, não como uma norma imposta ao estabelecimento do discurso ideal, mas como uma característica sui generis da própria prática discursiva, como sua condição de possibilidade.

Las leyes del discurso explotan la circunstancia de que todo acto de habla se desenvuelve en <<un marco jurídico y psicológico impuesto>>. Ellas permiten el cálculo interpretativo de significaciones implícitas, derivadas de significaciones literales […] Muestran que el lenguaje no funciona como un código, lo cual supondria que <<todos los contenidos expresados […] lo son de manera explícita>>.[1]

Ou seja, a pertinência será observada aqui enquanto um elemento constitutivo do discurso na medida em que a linguagem não é entendida, por este tipo de elaboração, como um instrumento que é, após a constituição do sujeito, utilizado por ele para que consiga se comunicar. A linguagem e a própria comunicação, assim, a linguagem, o próprio discurso e os sujeitos do discurso não são elementos separados radicalmente e, justamente por isso, não há possibilidade de estabelecer uma relação instrumental entre eles.

Como uma lei do discurso, a pertinência assume a forma de uma condição para a existência da situação de prática discursiva: ela não se impõe como uma necessidade, mas separa o discurso comunicável daquele que não chega ao patamar de coerência. O objetivo desta artigo é apresentar a lei da pertinência dentro do contexto da análise do discurso conforme proposta por Dominique Maingueneau.


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A partir da pertinência

Não se trata de uma categorização exterior ao sujeito e ao discurso, mas de uma matriz constitutiva ao sujeito e ao discurso que se atualiza a cada nova prática discursiva:

Intuitivamente, estipula que uma enunciação deve ser maximamente adequada ao contexto em que acontece: deve interessar ao destinatário, fornecendo-lhe informações que modifiquem a situação.[2]

Aqui,  contexto é delimitado pelos elementos 1) destinatário e 2) a conduta futura do destinatário. Há também dois elementos auxiliares: 1) o interesse (que o destinatário deve ter) e 2) a modificação (que a enunciação inicial deve provocar, ou seja, a resposta necessária ao enunciado anterior enquanto referência imediata à produção seguinte).

Para Maingueneau[3], o contexto pode ser observado a partir de uma tripla divisão:

  1. O ambiente físico da enunciação, ou o contexto situacional: em relação aos elementos identificados acima, se relaciona ao local e aos elementos físicos em relação ao enunciador e o destinatário. São os elementos que os colocam na realidade.
  2. O cotexto: que se relaciona à possibilidade de existência de uma conduta futura do destinatário e que essa conduta possa ser de modificação, além de ser o elemento que entrega os enunciados anteriores que definirão o interesse (pensado como desejo, mas também como vontade de saber[4]) a ser investido no trabalho de produção discursiva.
  3. Os saberes anteriores à enunciação: Que indicam conhecimentos que enunciador e destinatário, numa relação imaginária, podem pressupor em seu outro e podem identificar em si, como condição de existência do interesse (mesmo em forma de curiosidade) e da possibilidade de modificação (uma afirmação em negação ou uma pergunta, por exemplo).

Ou seja, a lei da pertinência é a realização da prática discursiva sendo considerada, seja num erro ou acerto, maximamente adequada aos elementos de contexto. Este contexto e a presença de seus elementos fazem parte da própria definição do gênero do discurso. Um gênero detém certa organização textual, um suporte material para exercício da prática discursiva, lugares e momentos legítimos, parceiros legítimos e, por fim, uma finalidade reconhecida[5]. Os saberes anteriores e o cotexto são elementos para se observar a pertença de um conjunto de enunciados ditos a uma certa organização textual contribuem para identificar a legitimidade dos parceiros em interação, enquanto o ambiente físico contribui na compreensão do lugar e momento legítimos. O gênero é condição e produto de uma prática discursiva coerente; o contexto, enquanto seu elemento, é condição e, em seu conjunto relacionado, produto da existência do gênero; a pertinência é a pressuposição de que o gênero se realiza a partir de uma necessidade de sentido e, no limite, adequado ao contexto, adequado aos elementos que delimitam o sentido de um enunciado. Desta forma, a pertinência é a adequação do dito com seu contexto e com o outro, com seu parceiro legítimo.

Desta forma, o enunciado “É proibido fumar nesta sala”, utilizando uma placa como suporte material e pendurado na parede de uma sala de espera de um consultório médico, é não só levado à sério como de fato modifica a situação daqueles que leem que, por sua vez, se esforçarão, no limite, para confirmar a pertinência do enunciado (“deve-se respeitar a sala de espera”, “trata-se de uma consultório médico”, etc).

A busca da pertinência

A dupla relação é importante: se a pertinência é uma condição de possibilidade, então ela não só é realizada, como sua realização deve ser buscada. Uma condição e um produto. “Toda enunciação implica sua pertinência, o que leva o destinatário a procurar confirmar essa pertinência”[6], ou seja, leva o destinatário a levar o outro à sério, desta forma, o que o outro diz, enquanto sujeito, é pertinente à conversa.

Por exemplo, no dia 03 de agosto de 2022, a página inicial do jornal Brasil de Fato contém, logo no topo, uma chamada com os seguintes dizeres: “Vitória da oposição: apesar de lobby varejista, Câmara rejeita urgência de PL que libera remédios em supermercados”. Ao se ler tal enunciado, a participação do destinatário enquanto leitor de textos políticos será a de buscar sua pertinência: se foi uma vitória, então passa a ser relevante para tais ou tais interesses políticos que podem ser meus ou não; se houve lobby varejista, então fez parte de um contexto de luta política institucional; se a luta foi pela não liberação de remédios em supermercados, então há uma questão nesta prática; por fim, se a notícia está na página inicial do jornal, então há relevância no próprio assunto.

A lei da pertinência iguala os sujeitos em sujeitos que importam. Uma negação possível da pressuposição da pertinência está no discurso do louco. Desta forma, a lei da pertinência corta a comunicação entre os que importam e os que não importam, desde que considerado que o que importa é o enunciado dito, não o sujeito da enunciação e seu núcleo psicológico. Não se trata da pertinência do sujeito, mas do dito, desta forma, o não pertinente, no exemplo utilizado, é o enunciado do louco (ou do inadequado delinquente, ou do aculturado imigrante), não o louco em seu ser – que não é objeto da análise do discurso.

Considerações finais

Entende-se que a lei da pertinência é um elemento constitutivo da prática discursiva e, por sua vez, sua existência não se faz enquanto norma, ou seja, externamente imposta aos indivíduos para que a situação da comunicação seja perfeita.

Se faz enquanto condição. A pertinência, se percebida enquanto condição (que ao ser realizada se atualiza enquanto produto), também define o dito relevante e o dito não relevante, o dito a ser considerado e aquele a ser dispensado.

Referências

[1] CHARAUDEAU, P.; MAINGUENEAU, D. Leyes del discurso IN Diccionario de análisis del discurso. 1. ed. Buenos Aires: Amorrortu, 2005. As aspas presentes na citação são de DUCROT, O. Dire et ne pas dire. Principes de sémantique linguistique.

[2] MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2004, p. 34.

[3] SIQUEIRA, Vinicius. O contexto – Dominique Maingueneau. Colunas Tortas, 2022. Acesso em 03 ago 2022. Disponível em <<https://colunastortas.com.br/o-contexto-dominique-maingueneau/>>.

[4] Observação completamente provisória e minha.

[5] SIQUEIRA, Vinicius. Os gêneros discursivos – Dominique Maingueneau. Colunas Tortas, 2022. Acesso em 03 ago 2022. Disponível em <<https://colunastortas.com.br/os-generos-discursivos-dominique-maingueneau/>>.

[6] MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação… p. 35.

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